Na tradição jurídica brasileira da qual devemos nos envergonhar há um brocardo: “Sentença não se discute, cumpre-se”. Um despautério de fundo subserviente. Sentenças devem ser discutidas na Justiça (recursos) e fora dela (debates).
Fora dos percursos processuais, valem textos doutrinários como valem artigos de jornais; valem até os desabafos internéticos. Essa questão sobre a mitigação da presunção de inocência recém-julgada pelo Supremo Tribunal Federal é exemplar.
Há um jus sperniandi, um amplo inconformismo, ou, talvez, um inconformismo amplificado, manifestado por diversos meios. Até os ministros com votos vencidos ofertaram-se refestelados à tentação da mídia, execrando o resultado da votação.
Mas quero destacar a posição da Ordem dos Advogados do Brasil, que emitiu nota sobre a liberação de aplicação de pena de prisão após sua confirmação em segundo grau. Excertos do documento:
“A OAB possui posição firme no sentido de que o princípio constitucional da presunção de inocência não permite a prisão enquanto houver direito a recurso”. E ressalta preocupação com a “natureza da decisão executada”.
Claro, pois, reformada uma decisão, ela já terá produzido “danos irreparáveis na vida das pessoas que forem encarceradas injustamente”. E “é alto o índice de reforma de decisões de segundo grau pelo STJ e pelo próprio STF” (http://migre.me/t6MIo).
Bem, ao tempo em que trava essa luta, a OAB vai requerer ao Senado afastamento imediato do senador Delcídio Amaral no curso da investigação pelo Conselho de Ética (pedido semelhante foi feito em relação ao deputado Eduardo Cunha).
A Ordem ressalta que não faz juízo de valor quanto à culpabilidade do senador, mas que, ao se manter no cargo, o parlamentar “debocha dos cidadãos, inclusive com poder para interferir no andamento do processo”.
A instituição fundamenta seu pedido no art. 55 da Constituição, o qual estabelece que o deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar perderá o cargo. Refere, ainda o art. 319 do CPP.
Delcídio foi pego em gravação oferecendo ajuda financeira à família de um “delator premiado”, no intento de demovê-lo de contar o que sabe sobre esse submundo lulopetista que responde a processo em Curitiba.
Não tenho dúvida nenhuma do envolvimento do ex-líder do governo Dilma no Senado. E o pedido da OAB está tecnicamente correto, mas há um senão. A Ordem está atropelando a presunção de inocência do parlamentar.
Pode-se argumentar que ter o mandato suspenso não equivale a estar preso. Sim. Mas o mandato é uma expressão de vontade majoritária de um estado da federação. Não é pouca coisa. E um senador ajuda a decidir o destino da Pátria.
Como ficaria o povo do estado do senador (MS) que teria seus votos suspensos com a suspensão do mandato do seu parlamentar? Não, não me parece que o caso Delcídio seja menos significativo, de menor grandeza do que um caso de prisão.
O senador não foi julgado em instância alguma. Não havendo sentença transitada em julgado, o cidadão é pressuposto inocente. Não é essa a lógica da reação da OAB ao julgamento do STF, que restringiu o princípio da presunção de inocência?
Delcídio não sofreu qualquer condenação. Ademais, se ele deve ser afastado, também o devem mais um terço do Congresso. “A cada três parlamentares, um responde a ação criminal no STF, que vão de crimes eleitorais a até homicídio e sequestro”.
Então, coerência: a OAB deve defender que a hermenêutica mais franca do Direito seja aplicada a todos ou a ninguém. Por que só Delcídio? E os demais congressistas? E Dilma? O texto que denuncia o número de parlamentares processados alerta:
“Responder a um processo judicial não faz de ninguém culpado da acusação que lhe é atribuída. Numa democracia digna desse nome [...], em bom português, significa que todos são inocentes até prova em contrário.
Homens públicos podem ser vítimas de denúncias falsas ou exacerbadas pela sua própria condição política e social. Autoridades, felizmente, tendem a ser mais vigiadas e denunciadas do que cidadãos anônimos” (http://migre.me/t7ifZ). Cautela, pois.
Há uma contrariedade enorme do governo Dilma com o seu ex-lider nessa situação vexatória. Um problema político desagradável. Para o governo, melhor que o senador suma. Mas juridicamente a situação (ainda) é diversa.
Considero Delcídio culpado? Sim, eu o considero. Ele deve sofrer reprimenda sem julgamento? Não posso, numa democracia, pensar assim. Fico com o STF: pelo menos até a segunda instância o condenar, ele é presumidamente inocente.
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