A coleção de ensaios que Guilherme Moreira Pires e Patrícia Cordeiro reúnem nesta obra transborda sensibilidade. Sensibilidade insurgente, anarquizante e liberadora de diferenças. Os autores fogem, não amedrontados, mas corajosamente, das mesmices reprodutoras da moral cristã estadocêntrica. Fogem não como quem foge da vida, mas como quem foge para vidas criadoras abertas e entrecortadas por linhas de fuga (cf. Deleuze e Guattari, 1996). Fogem dos territórios comuns das criminalizações e dos saberes instituídos por ciências cartesianas, positivistas e impositivas. O texto flui não em diagramas pré-determinados por linguagens e narrativas formais das disciplinas acadêmicas. O fluxo é livre, transverte e subverte saberes sujeitados e reprodutores da máquina de dominação estatal.
O diálogo que estabelecemos com o abolicionismo penal e o anarquismo apresentado pelos autores se baseia em reflexões provocadas pelo pós-estruturalismo de leitura anarquizante. O título aqui faz alusão ao prefácio – Introdução a uma Vida não Fascista – que Foucault escreve para a obra Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, no qual o autor sintetiza as condutas necessárias para nos livrar do fascismo: “Não apenas o fascismo histórico de Hitler e Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas – mas também o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora” (Foucault, 2006, p. 30). Assim como Foucault buscou denunciar e liberar o indivíduo do fascismo que penetra os corpos, Pires e Cordeiro buscam denunciar e liberar o indivíduo dos castigos que atormentam os corpos. Castigos e penalizações que apresentam sua própria proximidade com o fascismo na medida em que reproduz as “velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade” (ibid., p. 32).
Destacando a contra-conduta dos insubordinados que se desterritorializam das “categorias do Negativo” e do punitivismo intrínseco ao Estado, o texto transita com desenvoltura e poesia entre os níveis molares, das instituições, e moleculares, da subjetividade, necessários para a abolição dos castigos. Sem se pautarem pelas “liberdades de papel”, os autores demonstram como o governo das condutas forma sujeitos na produção de subjetividade e no controle sobre os corpos. A governamentalidade da razão do Estado disciplina cada sujeito a reproduzir em si e nos outros a lógica dos castigos e recompensas. Como todo Estado tem a necessidade de, como discorrem os autores, produzir coesão, criar homogeneidade para justificar sua existência e facilitar o controle sobre os indivíduos, esse processo ocorre pelo disciplinamento das condutas.
Assim, o abolicionismo penal não se limita à destruição dos presídios. Implica também e principalmente a abolição do castigo em cada um. Abolição do castigo como saber dominante que se apresenta enquanto solução para situações problema, vulgarmente chamadas de crimes. Os processos de desterritorialização para criar para si um corpo sem órgãos, aproveitando a noção de Deleuze e Guattari (1996), exigem um olhar aguçado sobre si e questionamentos aprofundados para que se amplie a percepção sobre os desejos autônomos e os processos de subjetivação heterônomos.
As leis e as penalizações, em qualquer Estado, se aplicam sempre para excluir e eliminar, através de criminalizações e estigmatizações, a alguns indesejáveis. Na contemporaneidade, o processo caracterizado por Foucault como racismo de Estado (Cf. Foucault, 2010) opera a partir de sua legitimação por mecanismos fictícios de consulta das preferências populares em pleitos eleitorais e pela crença difundida de que as leis são justas, iguais para todos e servem para nos proteger. A partir daí as classificações da ordem político-jurídica-moral sobre condutas boas e más são aceitas sem muito questionamento. Esse processo atende aos objetivos do poder soberano de manutenção e fortalecimento do Estado e se firma na exigência da obediência sobre suas leis e na reprodução de vidas consideradas úteis ao sistema.
Assim, todo aparato biopolítico, de fazer viver deixar morrer, que vai surgir para desenvolver na população o bem-estar necessário para sua produção social e econômica, se complementará com o poder soberano sobre a morte e a eliminação das condutas indesejáveis (Foucault, 2015). A governamentalização, em cada indivíduo, de tal razão de Estado se faz a partir de divisões binárias bem simples com as quais os sujeitos aprendem desde cedo a discernir o bem do mal, o certo do errado, o legal do ilegal, se amparando na normatividade vigente para decidir sobre as condutas de sua própria vida. Nesse processo, eliminam-se diferentes, diferenças e justificam-se variadas formas de violência, visando a eliminação do outro, com o propósito de criar um corpo social homogêneo, patriótico, politicamente dócil e economicamente útil.
Nietzsche aponta que essa identificação polarizada do bem e do mal, do bom e do mau, é uma representação narcisista e aristocrática, que hierarquiza costumes e reproduz subalternidade: “foram os próprios ‘bons’, os homens nobres, os poderosos, aqueles que ocupam uma posição de destaque e têm alma enlevada que julgaram e fizeram a si e a seu agir como ‘bom’, ou seja, ‘de primeira ordem’, em oposição a tudo o que é baixo, mesquinho, comum e plebeu”. A conclusão não poderia ser mais evidente: foi “o sentimento geral, fundamental e constante de uma espécie superior e dominadora, em oposição a uma espécie inferior e baixa, que determinou a origem da oposição entre ‘bom’ e ‘mau’” (Nietzsche, 2009, p. 25).
Esse desprezo pela diferença reforça a busca por punições, penalizações e a eliminação do outro, solidificando o etnocentrismo narcisista presente em quase todas as civilizações ocidentais de que temos notícia. Ora, se a conduta do outro, que é tão diferente da minha, é má, toma-se por referencial as minhas próprias condutas. O mal, portanto, é uma ameaça a mim e o bem é uma imagem de mim. Convém aqui recuperar os versos de Caetano Veloso na canção “Sampa”: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto; Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto; É que Narciso acha feio o que não é espelho”.
Na medida em que a obediência proporciona determinados benefícios a quem obedece e segue as linhas retas das condutas desejáveis pela ordem político-econômico-jurídica, acaba cada assujeitado por desviar-se do que lhe seria mais pessoal e singular. A singularidade, a diferença, é evitada e até mesmo encarada como anomalia, como desvio. A superação implicaria no esfacelamento de fronteiras identitárias, precursoras do binarismo excludente e penalizante, e na valorização de condutas menores, heterodoxas, não aceitas pelos costumes hegemônicos. Ao substituir a dialética típica do Estado pelo devir, fortalece-se o múltiplo e as mestiçagens recíprocas. Ao invés de “isto ou aquilo”, pode-se dar lugar ao “isto e aquilo”, trocar “nós ou os outros” por “nós e os outros”. Substitui-se com isso as identidades que rotulam, delimitam e estigmatizam pela possibilidade sempre aberta de combinação e assimilação de diferenças, de afetar e ser afetado. Oswald de Andrade é certeiro em seu Manifesto Antropófago: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.
O desafio colocado para abdicar da lógica de eliminação da diferença contida no ser punitivo que reivindica castigos é o entendimento do outro em sua imanência, o que lhe é próprio em cada circunstância. Ao afastarmos das segmentações identitárias binárias, nos afastamos também da aceitação de valores e verdades dominantes. Abrindo-se possibilidades de distanciamento dos padrões socialmente construídos do certo e do errado, do bom e do mau, desafiando costumes, normas, leis e rejeitando punições.
Nessa busca de aceitação do outro e de desconstrução do negativo, Nietzsche (op. cit.) nos desafia a amar o inimigo. Ainda que isso não seja plenamente alcançável, o esforço por compreender e aceitar o inimigo como um diferente, reconhecendo seus méritos, implica também em um esforço não por inferiorizá-lo, mas por superá-lo. A busca da superação, ainda que inicialmente danosa pela competitividade, requer que se volte o olhar e os cuidados para si. Esse cuidado de si implica no autoconhecimento, na ampliação da autonomia sobre as próprias condutas, no desenvolvimento de suas potências criativas e no respeito aos próprios desejos. O indivíduo que está bem consigo mesmo e com o mundo em que interage, não sente necessidade de condenar ou eliminar o outro. O controle e a punição do outro podem aí ser substituídos pelo cuidado com o outro (Cf. Foucault, 2004). E aqui mais uma vez os ensaios de Pires e Cordeiro nos trazem as provocações necessárias para estimular o auto-conhecimento, a aceitação da diferença no outro e ampliar práticas de liberdade.
[1] RESENDE, Paulo Edgar da Rocha. Introdução à vida não punitiva (posfácio). In: CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
Referências
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs–capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade” in FOUCAULT, M. Ditos & Escritos V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
___________. “Introdução à vida não fascista” in Comunicação & Política, vol. 24, n.2, p.229-33, 2006.
___________. “Aula de 17 de março de 1976” in FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010.
___________. “Direito de Morte e poder sobre a Vida” in FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. São Paulo: Escala, 2009.