Porcos, gatos e cães (e vermes e répteis e galos e touros): animais como autores de crimes

21/04/2022

Coluna Cautio Criminalis

Os que defendem aumento na repressão penal de crimes contra animais geralmente dizem que o direito penal jamais se preocupou com os bichos. Essa é uma ingenuidade e um erro histórico grosseiro: os animais são objeto de interesse do poder punitivo desde, no mínimo, o século 7. Mas como autores de crimes.[1]

Os "animal trials" foram uma realidade muito comum entre os séculos na Idade Média na Europa, alcançando o ápice entre os Sécs. 13 e 18. Pesquisadores como Edward Evans, Jen Girgen, Paul Berman e William Edwald mostram centenas de documentos de julgamentos, por tribunais seculares e eclesiásticos, de toda sorte de bichos (ratos, porcos, cães, touros, gambás) que cometiam delitos contra as pessoas. Era comum que os animais fossem vestidos como humanos no julgamento, provavelmente para produzir uma simbologia mais aceitável às pessoas.

Parece que cabia mais às Cortes Eclesiásticas julgar os animais por prejuízos à propriedade dos homens; e às seculares o julgamento de danos à integridade física (Braga Lourenço). O historiador Karl von Amira dirá que, independentemente disso, os tribunais se esforçavam para aplicar o mesmo procedimento cabível para os humanos. Havia acusação formal e direito a defesa e advogados. As penas variavam entre morte, exílio, apedrejamento, sepultamento com vida e outras, e há documentação de muitas condenações e execuções.

Mas havia também as absolvições: em 1750 uma mula foi inocentada da acusação de ter mantido relações sexuais com o dono por ausência de "dolo" depois que os habitantes de Vanvres (França) apresentaram um atestado de bons antecedentes da mula. Sim, da mula.

Há registro de processos contra toupeiras (824), aves (666), galo (1474), touro (1314), porco (1499), cachorros e vacas (1300), dentre inúmeras outras espécies. Mesmo vermes, répteis e insetos se sentavam no banco dos réus. No Brasil, em 1713, foram julgados cupins que invadiram um mosteiro franciscano maranhense.

No restabelecimento da ordem social violada (Hyde), o animal era um dado lateral na "estabilização da confiança nas normas", um álibi para a reafirmação do poder penal da autoridade política. Um “sujeito competente”, se quisermos cutucar humoradamente nossos colegas do fim do Séc. 20. Reage o mais naturalmente possível quem vê e pensa: “puniam os bichos mesmo? Com pena, com tudo?”. Bom, sim. Isso nos diz uma coisa importante: o sistema penal sempre viu os vulneráveis. Animais, mulheres, pobres, minorias, nada disso nunca passou despercebido. O ponto é: os únicos olhos com os quais o poder punitivo mira são os do ataque. Os óculos da “proteção” os vestem os incautos, os românticos e os interessados. Talvez um avanço civilizatório ainda permita a alguma geração futura lobrigar os anos de hoje e pensar: “puniam as pessoas mesmo? Com pena, com tudo?”.

 

Notas e Referências

[1] Meu primeiro contato com essas informações foi através do texto A persecução e a condenação criminal de animais de Daniel Braga Lourenço, publicado na Revista Brasileira de Direito Animal. Os dados históricos que eu cito são extraídos principalmente ou dos dele ou da bibliografia que ele indicou no seu próprio trabalho.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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