É DESALENTADOR, PARA UM VELHO PROFESSOR DE DIREITO PROCESSUAL PENAL, VER ESTA “GAROTADA” DO MINISTÉRIO PÚBLICO FAZENDO ACORDOS SOBRE PENAS E REGIME DE PENAS COM CRIMINOSOS CONFESSOS, TUDO AO ARREPIO DAS REGRAS DO CÓDIGO PENAL E DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL.
Feita esta espécie de “desabafo”, vamos fazer uma reflexão de cunho mais doutrinário.
Paralelamente a outras leituras, decidi ler (ou reler) os principais trabalhos que o professor José Carlos Barbosa Moreira – para mim, o maior processualista brasileiro de todos os tempos – reuniu nos nove volumes publicados pela Ed. Saraiva, sob o título “TEMAS DE DIREITO PROCESSUAL”.
Comecei a leitura pelos estudos mais recentes do mestre. Evidentemente, pelo nosso contato na UERJ e pela leitura de seus livros, já conhecia a sua predileção pela sistemática publicista do “processo” e, por ela, fui fortemente influenciado. Talvez por isso, tenha escrito a minha dissertação de mestrado, no longínquo ano de 1981, com o título “Da Publicização do Processo Civil”, depois publicada pela antiga ed. Liber Iuris.
Hoje, o meu embate é contra a “privatização do processo penal”, que se busca através da adoção de um sistema acusatório puro ou radical, próximo do sistema adversarial, tão a gosto dos Estados Unidos e da Inglaterra (paraísos dos liberalismos políticos e econômicos), países que privilegiam o individualismo e o “darwinismo social”.
Conforme é de fácil percepção, tais importações acríticas para os países mais pobres determinam uma total injustiça social, pois o “deus mercado” não distribui riqueza mas, ao contrário, concentra aquilo que é produzido pela mão do trabalhador em papéis que fazem a fortuna de alguns poucos.
No plano jurídico, o predomínio da vontade individual retira a proteção legal aos mais “fracos” e cria, para os sujeitos processuais, poderes discricionários incompatíveis com o Direito Público.
Embora com os olhos voltados mais para o processo civil, o prof. José Carlos Barbosa Moreira, com a clareza e concisão que sempre o caracterizaram, disse o que eu gostaria de ter dito, por isso que transcrevo abaixo. Não tenho dúvida de que vale também para o processo penal:
“Já no que tange à repartição de atribuições entre o órgão judicial e os litigantes na atividade de instrução, nem ao mais superficial observador escapará a dimensão política – ou, se preferir, ideológica – da problemática. Cercear a participação do juiz e confiar às partes (ou melhor: aos advogados) a condução do mecanismo probatório é opção que transcende com absoluta o plano da técnica: põe de manifesto a adesão a um ideário liberal, tomada a palavra no sentido individualístico – no sentido em que era costume usá-la para designar o pensamento dominante na maior parte do século XIX e atualmente é lícito usá-la para designar o pensamento dominante no início do século XXI.
Esse pensamento parte de uma premissa: a melhor solução para as questões da convivência humana é a que resulta do livre embate entre os interessados, com a presença do Estado reduzida à de mero fiscal da observância de certas “regras do Jogo”. Projetada na tela da economia, semelhante idéia leva à glorificação do mercado como supremo regulador da vida social. Projetada na tela da Justiça, fornece apoio a uma concepção de processo modelada à imagem de duelo ou, se se quiser expressão menos belicosa, de competição desportiva. (TEMAS DE DIREITO PROCESSUAL. 9 série, 2007. Saraiva. P. 55-56).“
Evidentemente que é legítima a opção pelo sistema processual liberal-individualista, onde o Estado aparece como um mero árbitro do duelo entre dois jogadores e adversários.
Entretanto, parece que muitos dos que defendem tal sistema não perceberam ainda que isto está ligado a uma escolha ideológica. A minha, sendo pela justiça social, não pode prescindir da atuação efetiva do Estado, que se deseja cada vez mais democratizado e atento ao interesse da população mais pobre.
Enfim, se a base econômica da nossa sociedade é intrinsecamente liberal, refletindo tudo isso na formação cultural de nossa sociedade, nada mais natural que os nossos juristas mais novos sejam influenciados pela visão de “liberdade abstrata”, pela premissa da liberdade da vontade individual, chegando ao ponto de privilegiar os chamados negócios processuais em detrimento de normas cogentes do Direito Público.
Por mais estranho que possa parecer, em recente trabalho da lavra de um conceituado professor de Direito Processual Civil, chegou ele a aceitar que tais negócios jurídicos possam levar até mesmo à “flexibilização” de direitos fundamentais expressamente consagrados na Constituição Federal.
No célebre prefácio do seu livro intitulado “Contribuição para a Crítica da Economia Política”, Karl Marx nos fornece o que pode ser a
explicação, ao menos em parte, para o fato de que, nos dias de hoje, a grande maioria de nossos juristas apresente um discurso que eu chamaria de liberal e individualista.
Isto vale mesmo para aqueles que trabalham com o Direito Público e até para alguns juristas que se apresentam como inseridos no pensamento de esquerda. Deixou dito o grande pensador:
“...na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.”
Desta forma, ressurgindo “o velho” com roupagem nova, percebe-se que o atual e perverso sistema econômico está subvertendo o nosso razoável sistema jurídico, retrocedendo-o a períodos anteriores mesmo à Idade Média, onde o processo era concebido como “coisa das partes”, sendo tênue a intervenção do “Estado” romano.
Partindo-se de uma perspectiva pragmática e funcional, estamos tornando caótico o nosso “sistema de justiça penal”, priorizando os chamados “negócios jurídicos processuais” em detrimento das regras cogentes do Direito Público.
Na verdade, nestes acordos de cooperação premiada, a legislação é mero detalhe. O que vale mesmo é a vontade das partes, muitas das vezes viciada por aspectos diversos.
Tudo isso é muito lamentável. É um retrocesso e leva o arbítrio para o processo penal.
Imagem Ilustrativa do Post: Stasi Prison // Foto de: Claire // Sem alterações
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