Por Maykon Fagundes Machado e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino - 27/10/2016
“A justiça só pode florescer em uma sociedade aberta e democrática e incentivar formas cada vez mais democráticas de tomada de decisão[1]”
A noção de Justiça[2] que se aborda é relativamente nova e discutível no cenário acadêmico jurídico, especialmente quanto à sua aplicabilidade. Trata-se de uma visão Lato Sensu da efetividade e da pertin-ência da Justiça Ambiental a qual surge para dirimir questões pontuais e de suma importância, a saber, por exemplo, o direito da comunidade não viva, que, apesar de passar despercebida pelo cenário jurídico, tem sua relevância demonstrada para o bom funcionamento de todo o ecossistema existente. Classicamente, se tem o entendimento, desde antes da própria escritura bíblica existir, de que a natureza, os animais e a flora, ‘’está aí para servir o homem’’, nota-se uma visão antropocêntrica e arcaica predominante.
Klaus Bosselmann[3] em sua obra trará ao debate esta temática ao alertar que para trazer do ‘’mundo das idéias’’ para o ‘’mundo da vida’’ esta concepção de Justiça não será meramente fundada na retórica e no discurso público. É preciso argumentar esta questão do ecocentrismo com bases sólidas e fundamentadas, principalmente se estiverem de acordo com o princípio da sustentabilidade que trará uma versão de sustentabilidade ainda desconhecida por alguns, se referindo aos valores intrínsecos dos ‘’outros não humanos’’ que não podem ser expressos em conceitos jurídicos, e não menos, na concepção de Justiça.
Nicholas Low e Brendan Gleeson, sob o pensamento de Bosselmann[4], compreendem que a limitação da moralidade da espécie humana não é mais defensável sob a luz do progresso científico e da consciência que estão inteiramente correlacionados com a Natureza num vínculo de interdependência.
Por esse motivo, precisa-se compreender o que é a Justiça Ecológica. Segundo Bosselmann[5]: ‘’justiça ecológica significa que cada pessoa singular tem o direito de desfrutar a plenitude de sua própria forma de vida’’. A matriz de se pensar a Justiça Ecológica é a integridade da teia da vida. Essa condição não se desenvolve, tampouco é compreendida, se o Homem despreza todos os outros seres devido à escala da Evolução, ou, também, os seres e os ecossistemas existem somente pela vontade (racional) humana. Priva-se, nesse caso, o direito à existência.
Nessa linha de entendimento, demonstram-se dois princípios gerais da Justiça Ecológica para orientar a tomada de decisão. Primeiramente, ‘’todas as formas de vida são mutuamente dependentes e igualmente dependentes de formas não vivas’’[6]. Esses princípios podem causar conflito na tomada de decisões humanas – sejam individuais, sociais e institucionais -, especialmente se os seguintes argumentos preponderarem acerca do significado matriz da Justiça Ecológica, quais sejam: a) considerar que a vida tem supremacia sobre a não vida; b) de que as formas de vida individualizadas tem predominância moral sobre as formas de vida que somente existem em comunidade; c) considerar que os seres humanos possuem precedência sobre todas as outras formas existentes de vida[7].
Leonardo Boff[8] compactua com a mesma linha de pensamento. Em entrevista ressalta que a Terra não é um baú inesgotável de recursos. Percebe-se que já se atingiu o seu limite e essa condição deve ser (re)pensada a fim de se disseminar o bem viver. Lembra esse autor que é necessário nos despreender desta visão utilitarista do mundo natural, como se existisse para meramente suprir nossas necessidades. Somos parte da Natureza e todos vivem em relação de interdependência com as demais formas de vida. Todos os seres – vivos ou não - essenciais para a vida, esta rede, esta conectividade é responsável pelo equilíbrio de vida na Terra.
Bosselmann[9] entende que o debate sobre a existência ou não dos direitos de uma comunidade não viva/viva, como plantas e animais, não é debate para advogados e juristas, mas sim para filósofos. Na perspectiva jurídica, pode-se atribuir personalidade a empresas e Estados. Nesse caso, por que seria descabido atribuir personalidade jurídica aos seres e a toda a comunidade ambiental que carece de direitos? – Interesse econômico? – Infelizmente, esse é o sentido que tem prevalecido. Cabe a todos fomentar o debate e compreendê-lo para além dos interesses humanos.
Quando se pensa: “irei preservar o meio ambiente, pois o ser humano necessita de um lugar para habitar”, já se perverterá a essência da Justiça Ecológica, pois tanto a Natureza e o Ser Humano contribuem para a manutenção sadia do ecossistema. Essa relação merece amparo por meio dos Direitos Fundamentais e de um Direito Global[10].
Norberto Bobbio[11] compreende que o surgimento dos direitos de 3° Dimensão[12] que dispõem sobre o meio ambiente da seguinte maneira: ‘’[...] O mais importante deles é reinvindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver em um ambiente não poluído’’. Esses direitos transindividuais e coletivos que surgiram na Modernidade não podem incluir somente a comunidade da família humana. Nesse caso, é preciso expandir o conceito da transindividualidade para além dos paradigmas criados, e, para isto, precisa-se de uma conscientização social e institucional - que emane do judiciário e das cortes superiores, inclusive das cortes internacionais.
Se o princípio da Sustentabilidade for adotado de forma unânime e coerente em benefício de toda a teia da vida, ao invés de princípios internacionais que visem somente o interesse particular das nações, tem-se a aplicabilidade da Justiça Ecológica.
A partir dessa linha de pensamento, não basta o exercício de uma Justiça e Cidadania Ambiental[13]. Ambas as expressões se referem tão somente àquilo que se torna benéfico para a permanência intra e intergeracional do ser humano na Terra. O reconhecimento de um “meio ambiente sadio” não se manifesta pela sua condição de “ser próprio”, mas como elemento acessório para se instituir e manter a vida digna. Ressalte-se: Dignidade, nesse caso, não se refere a essa comunhão entre humanos e não humanos. A amplitude na qual deveria ocorrer – Dignitas Terrae – se circunscreve pelos limites antropocêntricos[14].
Gudynas[15] compreende que exista uma tese crítica à Justiça Ecológica que entenda que somente os seres conscientes são dominadores destes direitos, pois possuem a habilidade de postular por justiça, ora contra a injustiça. Entretanto, o autor destaca que se embora a justiça aceite como portadores de direitos, os fetos e as pessoas que carecem de síndromes e doenças que lhes tiram a capacidade de consciência, a comunidade viva/não viva também merece todo o respaldo da justiça e da lei, não em detrimento somente ao Homem, mas por si só, o biocentrismo[16] ganha força.
A necessidade desse reconhecimento, o qual se inicia por meio da Justiça Ecológica, não apenas favorece o desenvolvimento e a consolidação de expressões necessárias à convivência global, como é o caso da Sustentabilidade, mas, também, reivindica uma reflexão crítica acerca de valores os quais desprezam o mundo como “ser próprio” e negam o direito à existência. Se essa é a atitude do ser humano no qual se insere na teia da vida junto com todos os seres – vivos ou não – o que se pode imaginar sobre o aspecto relacional do Homem com os seus semelhantes?
Notas e Referências:
[1] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. Tradução de Phillip Gil França. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 125
[2] Nesse caso, a Justiça "[...] é, sim, uma vivência, uma práxis social, da qual somente podemos nos aproximar empiricamente, descrever fenomenologicamente e compreender, pela razão e sensibilidade, os sentidos constitutivos de seu sentido. Sentido este que estará sempre em aberto, dado o seu caráter de provisoriedade e incompletude". DIAS, Maria da Graça dos Santos. A justiça e o imaginário social. Florianópolis: Momento Atual, 2003, p. 112.
[3] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p. 109.
[4] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p.114.
[5] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p. 114
[6] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p. 114
[7] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p. 114/115
[8] ECOD. "Precisamos aliar a justiça social com a ecológica", defende Leonardo Boff. Disponível em: ://www.ecodesenvolvimento.org/posts/2012/abril/precisamos-aliar-a-justica-social-com-a-ecologica. Acesso em: 23 out. 2016.
[9] BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. p. 122.
[10] "[...] a força motriz do Direito já não é mais os anseios de limitação jurídica dos poderes domésticos absolutos; mas, sobremodo, a regulação de dinâmicas policêntricas relacionadas com a circulação de modelos, capitais, pessoas e instituições em espaços físicos e virtuais". STAFFEN, Márcio Ricardo. Interfaces do direito global. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2015, p. 22.
[11] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.06.
[12] Contudo, verifica-se a crítica de Gudynas sobre essa afirmação, especialmente sob o ângulo da Cidadania, denominada pelo autor de Meta-Cidadanias Ecológicas: “Se han desarrollado un conjunto de propuestas que intentan superar las limitaciones de la idea clásica de ciudadanía para incorporar de una manera más profunda los aspectos ambientales. En esta revisión se agrupan esas propuestas bajo el concepto genérico de “meta-ciudadanías ecológicas”. Con ese término se desea subrayar que esas propuestas están más allá de las posturas convencionales de ciudadanía clásica, pero que además incluyen un abordaje alternativo de aspectos ambientales. En contraste, el concepto de “ciudadanía ambiental” se mantendrá restringido a la perspectiva clásica de ciudadanía enfocada en los derechos de tercera generación”. GUDYNAS, Eduardo. Cidadania ambiental e metas cidadanias ecológicas. Revista de Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, n. 19, p. 62, jan./jun. 2009. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/made/article/view/13954>. Acesso em: 03 Mai. 2016.
[13] “[…] La idea de ciudadanía ambiental, en cambio, reconoce derechos referidos al ambiente que en buena medida son genéricos, tales como la calidad del ambiente y su protección, y por lo tanto son más o menos los mismos en un desierto que en una selva. Por lo tanto, una visión alternativa advierte que existe una enorme heterogeneidad de ambientes, y que éstos a su vez encierran diferentes interacciones sociales, y habrá meta-ciudadanías específicas para cada caso (tal como expresa la propuesta de una ‘florestanía’)”. GUDYNAS, Eduardo. Cidadania ambiental e metas cidadanias ecológicas. Revista de Desenvolvimento e Meio Ambiente, p. 65.
[14] “É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva - [...] – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação de dignidade da pessoa humana. Até que ponto, contudo, tal concepção efetivamente poderá ser adotada sem reservas ou ajustes na atual quadra da evolução social, econômica e jurídica constitui, sem dúvida, desafio fascinante [...]. Assim, poder-se-á afirmar [...] que tanto o pensamento de Kant quanto todas as concepções que sustentam ser a dignidade atributo exclusivo da pessoa humana – encontram-se, ao menos em tese, sujeitas à crítica de um excessivo antropocentrismo, notadamente naquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função de sua racionalidade [...] ocupa um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos. Para além disso, sempre haverá como sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente como valor fundamental indicia que não está em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta, ainda que se possa argumentar que tal proteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vida humana e de uma vida humana com dignidade, tudo a apontar para o reconhecimento do que se poderia designar de uma dimensão ecológica ou ambiental da dignidade da pessoa humana”. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 42/43.
[15] GUDYNAS, Eduardo. Derechos de La Naturaleza: ética biocêntrica y políticas Ambientales. Editorial Tinta Limón, Buenos Aires, Argentina, 2015, p. 140-143.
[16] “[...] el biocentrismo al reconocer los valores intrínsecos, especialmente como no-instrumentales, expresa una ruptura con las posturas occidentales tradicionales que son antropocéntricas. Es importante advertir que el biocentrismo no niega que las valoraciones parten del ser humano, sino que insiste en que hay una pluralidad de valores que incluye los valores intrínsecos. Otros aspectos se esta situación se discuten más adelante, pero aquí ya es necesario señalar que esta postura rompe con la pretensión de concebir la valoración económica como la más importante al lidiar con el ambiente, o que ésta refleja la esencia de los valores en todo lo que nos rodea. Por el contrario, el biocentrismo alerta que existen muchos otros valores de origen humano, tales como aquellos que son estéticos, religiosos, culturales, etc., les suma valores ecológicos (tales como la riqueza en especies endémicas que existe en un ecosistema), e incorpora los valores intrínsecos. Al reconocer que los seres vivos y su soporte ambiental tienen valores propios más allá de la posible utilidad para los seres humanos, la Naturaleza se vuelve sujeto. Las implicaciones de ese cambio son muy amplias, y van desde el reconocimiento de la Naturaleza como sujeto de derecho en los marcos legales, a la generación de nuevas obligaciones hacia ella (o por lo menos, nuevas fundamentaciones para los deberes con el entorno)”. GUDYNAS, Eduardo. La senda biocéntrica: valores intrínsecos, derechos de la naturaleza y justicia ecológica. Revista Tabula Rasa, n. 13, Bogotá, julio-diciembre, 2010, p. 50/51.
. . Maykon Fagundes Machado é Acadêmico de Direito do 4° período. UNIVALI. Pesquisador Bolsista PIBIC/ CNPq. Realiza atualmente estágio profissional em escritório de advocacia. E-mail: maykonfm2010@hotmail.com. .
. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.
E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.
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