Por um regime jurídico próprio para o nascituro – Por Eduardo Silva Bitti

22/08/2017

Em 2011, uma fala de um famoso apresentador de televisão, ao vivo, em rede nacional, ocasionou não só a demissão daquele, como foi o estopim para um processo judicial, que transitou em julgado em 04 de março de 2016, contendo uma condenação por danos morais. Até aí nada demais, se não fosse o fato de que, dos três autores da ação, um era nascituro e como tal, trouxe à tona a velha discussão de teorias sobre o início da personalidade.

O processo, apelação 0201838-05.2011.8.26.0100 no Tribunal de Justiça de São Paulo, com sequência recursal no Superior Tribunal de Justiça com a alcunha de Recurso Especial 1.487.089 – SP, teve julgamento na Corte Paulista baseado no voto do Relator, Desembargador João Batista Vilhena, que assim argumentou:

“Ora, no caso em estudo, o antes referido nascituro tem capacidade ativa a ele garantida pelo fato de ter a lei posto a salvo seus direitos desde a concepção, na forma do art. 2º, do Código Civil.

Esta condição legal confere ao nascituro legitimidade ativa, capacidade de estar em juízo, na defesa de tais direitos, ainda que, a princípio, o faça por intermédio de seus representantes legais, o quanto ocorreu nestes autos”.

Em outro caso, o Ministro Luis Felipe Salomão proferiu voto vencedor quando julgou o Recurso Especial 1.415.727 – SC no Superior Tribunal de Justiça, acerca do recebimento, pela mãe, de benefício de seguro obrigatório por morte de nascituro, discorrendo que “(...) a principal conclusão é a de que, se a existência da pessoa natural tem início antes do nascimento, nascituro deve mesmo ser considerado pessoa, e, portanto, sujeito de direito".

Por certo, os julgados acima adotaram a teoria concepcionista, considerando que o nascituro não só teve um direito da personalidade violado, como também a defesa daquele direito poderia acontecer antes do nascimento com vida e através de representação dos pais.

Apenas para recordar, o início da personalidade da pessoa humana é tratado, atualmente, com base em três teorias, todas elas, como recordam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[1], amparadas na imprecisão do disposto no artigo 2º do Código Civil, que preceitua que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Para a natalista, o nascituro não seria pessoa, não teria direitos, mas apenas expectativa quanto à existência de tais em caso de nascimento com vida. Já a teoria da personalidade condicional, condiciona os direitos da personalidade, quanto ao exercício representado, assim como os direitos patrimoniais, ao nascimento com vida. Por fim, a teoria concepcionista, para a qual a concepção seria o momento de início da personalidade e do exercício representado dos respectivos direitos ligados à dignidade humana.

Há quem, assim como os julgadores dos casos anteriormente mencionados, posicione-se a favor dessa teoria.

Flávio Tartuce[2], por exemplo, entende que ”os direitos da personalidade não podem estar sujeitos a condição, termo ou encargo”, linha proposta, segundo ele pela teoria da personalidade condicional, daí o fato dele compreender que esta seria, na verdade, natalista. O referido autor segue a teoria concepcionista para dizer[3] que “o nascituro é pessoa humana, ou seja, que ele tem direitos reconhecidos em lei, principalmente os direitos existenciais de personalidade”, mas deixa em aberto o que aconteceria no caso da morte[4].

Pois bem, com ele não se concorda, tampouco com os julgados.

É correto que o nascituro tenha direito à vida, considerando-se que ele é um ser humano, mantendo dignidade assegurada pela Constituição Federal no artigo 1º e 5º. Todavia, é sabido que ser humano não se confunde com a noção do que é ser pessoa, pois só o ordenamento jurídico pode defini-lo como tal, como ocorre no velho exemplo dos escravos no Brasil do Século XIX, os quais recebiam o tratamento de coisas àquele tempo. Logo, o nascituro merece, como ser humano, regime jurídico próprio não atrelado à personificação. Possui direito à vida, mas não é pessoa, sendo apenas equiparado como tal para fins de titularização de posição de sujeito de direito não personificado em situações restritas[5].

Também não se pode confundir expectativa de direito – gênero - com expectativa de direito – espécie -, como é o caso da condição como elemento acidental eficácia de negócios jurídicos. São institutos com efeitos parecidos, mas distintos.

Em verdade, voltando-se à obra de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[6], “para os teóricos concepcionistas, se o nascituro já tem direitos da personalidade é porque já dispõe da própria personalidade jurídica, mesmo que os direitos patrimoniais estejam condicionados”. Nessa linha, o próprio Flávio Tartuce[7] recorda que Maria Helena Diniz[8] divide a personalidade em formal, ligada aos direitos da personalidade, e material, vinculada ao direitos patrimoniais.

Mesmo Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[9], em seu tempo, trouxe exemplos de situações em matérias negociais, citando os casos de disposições de última vontade, nos quais “toda estipulação, a favor de terceiro nascituro, é estipulação que ou contém aquela alternação, ou há substituição a líbito do estipulante”, “ou se demonstra ineficaz, se não ocorre alternação, ou substituição”, os de pretensão a alimentos nos quais há uma natureza cautelar de alimentos provisionais, e os de doação ao já concebido, onde há validade e demonstrar-se-á, com o nascimento com vida, ou sem vida, a sua eficácia ou a sua ineficácia.

E aqui está o ponto: apenas a teoria da personalidade condicional atende, se bem interpretada, tanto a questões ligadas à dignidade como aquelas vinculadas à capacidade de adquirir direitos, sejam eles quais forem, e contrair obrigações. Não adianta o trabalho ideológico da atribuição imediata do direito da personalidade a nascituro, esquecendo-se de questões que envolvem a participação em negócios jurídicos ou que o nascituro possa vir a nascer sem vida.

Se a teoria natalista não se adequa à realidade atual, a teoria concepcionista não vincula a personalidade ao recebimento de direitos patrimoniais, o que a torna incompleta. Pudera, imagine-se o absurdo: em um fatídico acidente, no qual o pai viesse a falecer e, posteriormente o feto que estava em gestação no ventre da mãe, também presente no fato, se o nascituro tivesse personalidade, a genitora viúva teria que promover a abertura de impensáveis dois processos de inventário, sendo um por morte do marido e outro da criança em formação, onerando ainda mais a “herdeira” que teriam que pagar, por exemplo, duas vezes o imposto de transmissão causa mortis.

A incompletude da teoria concepcionista foge, portanto, da realidade, trazendo mais dúvidas do que certezas. Se não responde à questão patrimonial, não pode ser adotada da forma como vem sendo em alguns casos, como os anteriormente exemplificados.

Assim, a legitimidade do nascituro, por fato superveniente ao nascimento com vida, somente existiria após tal fato ocorrer. Em outra frente, o recebimento de benefício de seguro obrigatório por morte de feto em acidente decorre de direito próprio da mãe, com a consideração de que o falecimento do nascituro, poderia estar coberto pela garantia securitária, sem necessariamente passar pela personificação de um sujeito de direito não personificado.


Notas e Referências:

[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Parte geral e LINDB. v. 1. 13 ed. São Paulo: ATLAS, 2015, p. 260.

[2] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 1. 9 ed. São Paulo: MÉTODO, 2013, pp. 118-119.

[3] Ibidem, p. 123.

[4] Ibidem, p. 125.

[5] Tampouco concorda-se com possíveis afirmações de que a teoria concepcionista ganhou força, por exemplo, com a Lei 11.804/2008, denominada Lei dos Alimentos Gravídicos. A simples leitura do artigo 2º daquele diploma legal não deixa claro que os alimentos são destinados à mãe grávida ou, propriamente, ao feto de gestação. É literal, porém, que o artigo 1º determina que aquela “Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido”.

[6] Idem.

[7] Ibidem, p. 120.

[8] DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 11 ed. São Paulo: SARAIVA, 2005, p. 10.

[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 1, São Paulo: BORSOI, 1954, p. 181.


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