Por um processo penal garantista

20/02/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 20/02/2016

O processo penal “é sempre um drama, episódios de conflito e manifestações de poder, anseios de liberdade e desejos de punição”. [1]

A história do processo penal, já foi dito, é a história do poder. No caso, o poder mais primitivo: o poder de punir.

Como é próprio do Direito, além de constituir instrumento e manifestação de poder, o processo, também, reflete valores sociológicos, éticos e políticos. Portanto, é inegável a relação existente entre o direito processual e a ideologia dominante em determinado país. [2]

A questão do poder sempre foi extremamente complexa. Não somente o poder exercido pelo Estado, mas o poder em si mesmo. Michel Foucault[3] já alertava que o poder não se exerce sem que se custe alguma coisa. Para Foucault, a questão do poder se empobrece quando vista somente em termos de legislação, de Constituição, ou em termos de Estado ou de aparelho de Estado. Para ter uma compreensão adequada dos mecanismos do poder, de acordo Foucault, não podemos nos ater exclusivamente à análise dos aparelhos do Estado. Ainda, segundo o festejado filósofo francês, “quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica desse mesmo poder, identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição (...) uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou”. [4]

Luigi Ferrajoli assevera que tanto os poderes jurídicos e, especialmente, os poderes extrajurídicos, representam a base das desigualdades entre pessoas. Segundo Ferrajoli,o poder tem o específico efeito de produzir desigualdade, disparidade, ordenação, disciplina, relação de sujeição”. [5]

Não obstante, hodiernamente, em conformidade com a Constituição da República, o processo penal democrático não pode ser entendido como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.[6]

Geraldo Prado assevera que “as garantias do processo penal são, relativamente às liberdades públicas afetadas pela persecução penal, garantias materiais dos direitos fundamentais”.[7] Mais adiante, o sempre lúcido processualista, afirma que: “O processo penal, pois, não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas, incluindo-se nesta categoria os integrantes do Poder Judiciário”. [8]

Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, aos direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Em sua instigante obra “Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos”, Alexandre Morais da Rosa acentua que: “A história do constitucionalismo é a progressiva ampliação da esfera pública de direitos, de conquistas e rupturas”. Assim sendo, em uma concepção garantista, a Constituição “deixa de ser meramente normativa (formal), buscando resgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que se pretende e cujas linhas as práticas jurídicas não podem se afastar, inclusive no âmbito do direito e do processo penal”.[9]

Portanto, em decorrência desta concepção democrática e constitucional do processo penal – a única que serve ao Estado democrático de direito – os princípios constitucionais, entendidos aqui como “a chave de todo o sistema normativo”,[10] adquirem papel fundamental para a atual compreensão do processo penal.

Não foi sem razão que Luigi Ferrajoli[11], em seu sistema garantista, apresentou, além das garantias no âmbito do direito penal, múltiplas garantias de ordem processual penal em seus conhecidos axiomas garantistas. Dentre estas garantias destaca-se aqui a do “nulla poena sine judicio” ou “não há pena sem processo”. Neste caso, como assevera uma vez mais Geraldo Prado, processo não significa qualquer tipo de processo. “A condição de método de definição da responsabilidade penal do imputado reclama que o processo seja concebido a partir de uma perspectiva analítica que considere sua função e finalidade”.

A principal garantia do processo penal origina do axioma “nulla culpa sine iudicio” – da submissão à jurisdição - da qual derivam os demais pressupostos garantistas. Ferrajoli traz à baila o conceito de submissão à jurisdição em sentido lato e a submissão à jurisdição em sentido estrito. Segundo Ferrajoli, a primeira enunciação legal do princípio de submissão à jurisdição se encontra no parágrafo 39 da Magna Charta de 1215: “Nullus liber homo capiatur vel impresonetur aut dissaisiatur aut utlegatur aut exuletur aut aliquo modo destruatur nec super eum ibimus nec super eum mittemus nisi per legale iudicium parium suorum vel per legem terrae”. Desta formulação clássica extraem-se três garantias fundamentais: i) o habeas corpus contra restrições arbitrárias da liberdade individual e, também, para combater, de modo geral, as punições e intervenções autoritárias lesivas ao direito; ii) a reserva da jurisdição em matéria penal, ou seja, confiar a investigação e a repressão dos delitos ao “juízo legal”, imparcial e independente; iii) a presunção de inocência.[12]

De acordo Ferrajoli, “nulla poena”, “nullum crimen” e “nulla culpa sine judicio” exprimem o princípio de “submissão à jurisdição em sentido lato”. Enquanto “nullum iudicium sine accusatione”, “sine probatione” e “sine defensione” formam o princípio de “submissão à jurisdição em sentido estrito”. Concluindo, o jurista italiano afirma que: “enquanto a submissão à jurisdição em sentido lato é exigida em qualquer tipo de processo, tanto acusatório como inquisitório, a submissão à jurisdição em sentido estrito supõe a forma acusatória de processo, ainda que nela não esteja pressuposta”.[13]

Como bem salienta Aury Lopes Júnior[14], a jurisdição é um direito fundamental, trata-se de um verdadeiro princípio garantista do processo penal. Cuida de um direito fundamental de ser julgado por um juiz natural, imparcial e dentro de um prazo razoável.

No processo penal garantista e democrático o princípio da presunção de inocência -  correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária) - ocupa um lugar especial dentre os princípios processuais garantistas. Segundo Ferrajoli o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”. [15]

Em análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009 (“novo Código de Processo Penal”), o eminente processualista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[16] assevera que a mais relevante mudança trazida pelo referido Projeto é a mudança do sistema inquisitório – adotado pelo atual CPP – para o sistema acusatório, que foi abraçado pela Comissão que elaborou o Projeto para compatibilizá-lo com a Constituição da República de 1988. Observa Jacinto Coutinho que na CR está um modelo de processo penal “que só pode ser estruturado no sistema acusatório”. [17]

No que pese toda a discussão acerca do sistema processual adotado[18], na esteira de Geraldo Prado,[19] entre outros, entende-se que a Constituição da República, embora não declare expressamente, abraçou o sistema acusatório. Contudo, importante ressaltar que, infelizmente, o princípio e o sistema acusatórios são “meras promessas” que deverão ser cumpridas por um novo Código de Processo Penal.

Assim, no âmbito da democracia material (real), participativa, integradora e solidária, o processo penal não pode ser tomado apenas como instrumento de composição de litígio penal, devendo sim, especialmente, ser um instrumento político de participação, de acordo com o nível de democratização da sociedade. De tal modo, torna-se imprescindível a “coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição, porquanto, institucionalizando a proteção dos mencionados direitos, reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua plena efetividade”. [20]

Na hora em que a sanha punitiva gerada pelo poder midiático envolve a sociedade, no tempo em que o processo penal do espetáculo assume o lugar do devido processo legal, no instante em que o poder punitivo estatal - Polícia e Ministério Público - se unem em “forças tarefas” e atropelam diversas garantias processuais e, por fim, no momento em que o judiciário começa a relativizar princípios fundamentais em nome do imaginário combate ao crime, é imperioso advertir que a democracia está em risco. Em risco e com autoritarismo. Como já alertou Aury Lopes Jr. é sempre melhor risco com garantias processuais do que risco com autoritarismo”. [21]

Como observa Christiano Falk Fragoso,[22] o processo penal é um campo fértil para as diversas formas de manifestações de autoritarismo. Segundo Falk Fragoso, a abundância de habeas corpus concedidos para profligar violações a direitos do cidadão imputado é exemplo eloquente de que, no processo penal, é comum o exercício de poderes autoritários. O juiz que prende alguém durante o processo apenas em virtude da gravidade da acusação, o delegado que, contra a lei, omite fixar fiança ao preso em flagrante, e o promotor que oferece denúncia sem justa causa exercem abusivamente a autoridade que a lei lhes outorga (...)”.[23]

Desgraçadamente, o autoritarismo vem dilacerando os direitos fundamentais em nome de um insano combate ao crime e de um projeto de poder, não necessariamente nesta ordem. Projeto de poder que passa pela criminalização da política/partidária e de todos aqueles que de um modo ou outro trabalham na defesa das garantias e dos direitos fundamentais.

Não se pode olvidar, foi dito antes, que o processo penal é manifestação de poder com estreita relação com a ideologia dominante de cada país. Logo, em países autoritários e fascistas prevalecerá um sistema processual autoritário caracterizado por cerceamento de direitos e inexistência de garantias. Ao contrário, nos sistemas democráticos (democracia material) os direitos e garantias fundamentais assumem status de princípios, independente de estarem ou não expressados na Constituição.

Por tudo, é imperioso ressaltar que somente o sistema acusatório - que privilegia o devido processo legal, a imparcialidade do juiz, a separação entre julgar e acusar, a igualdade entre as partes, o tratamento digno dado ao acusado como pessoa, a publicidade, o contraditório e a ampla defesa - é que tem guarida no processo penal democrático e, consequentemente, no Estado democrático de direito.

Belo Horizonte, verão de 2016.


Notas e Referências:

[1] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[2] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

[3] FOUCAUL, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão de Roberto Machado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

[4] Idem.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volume I – 5ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[7] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[8] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos... ob. cit.

[9] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[10] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: 15. ed. Malheiros, 2004, p. 255-286.

[11] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica e alt. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[13] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[14] LOPES JR., Aury. Ob. cit.

[15] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão... ob. cit.

[16] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório e outras questões sobre a reforma global do CPP in O novo processo penal à luz da Constituição, vol. 2 Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, L. G. Grandinetti Castanho de Carvalho, organizadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[17] Idem.

[18] “[...] como é primário, não há mais sistema processual puro, razão pela qual tem-se, todos, como sistemas mistos. Não obstante, não é preciso grande esforço para entender que não há – e nem pode haver – um princípio misto, o que, por evidente, desfigura o dito sistema. Assim, para entendê-lo, faz-se mister observar o fato de que, ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro. É o caso, por exemplo, do processo comportar a existência de partes, o que para muitos, entre nós, faz o sistema tornar-se acusatório. No entanto, o argumento não é feliz, o que se percebe por uma breve avaliação histórica: quiçá o maior monumento inquisitório fora da Igreja tenha sido as Ordonnance Criminelle (1670), de Luis XIV, em França; mas mantinha um processo que comportava partes”. Disponível:  http://emporiododireito.com.br/introducao-aos-principios-gerais-do-direito-processual-penal-brasileiro-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/

[19] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[20] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[21] LOPES JÚNIOR, Aury. Ob. cit.

[22] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[23] FRAGOSO, Christiano Falk. Ob. cit.


Sem título-1

. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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