Por um Direito ao "Veto Popular" para Eleições Legislativas

27/12/2016

Por Cláudio Lucena - 27/12/2016

A crescente falta de representatividade do Poder Legislativo precisa ser uma preocupação séria de todas as democracias modernas. O Parlamento tem uma legitimidade especialmente relevante, na medida em que diversifica a presença de atores e grupos de interesse de origens distintas nas instâncias de decisão e de poder, e a crise crônica de confiança que hoje vive compromete seriamente estas instâncias.

Acredito que em algum momento de um futuro que não está muito longe, devemos encontrar uma forma de inverter mais uma vez a dinâmica histórica de atuação desse poder, calibrando ferramentas que permitam que o exercício direto das escolhas pelo povo volte a ser a regra, e a delegação de poderes a representantes apenas a exceção, em alguns casos onde a particularidade da situação torne essa delegação recomendável. Já há diversas experiências neste sentido mundo afora, e me parece evidente que é uma tendência que deve começar a se consolidar ainda durante esta geração, à medida que mecanismos vão tornando isso operacionalmente factível mesmo para democracias de maior escala.

Só que enquanto esse momento não chega, e antes que essa crise de representatividade acabe engolindo as próprias funções, descaracterizando a razão de existir de instituições parlamentares, é urgente encontrar uma forma de aprimorar a constituição do Poder Legislativo. As propostas de reforma existentes (e os próprios reformadores!) são sempre as convencionais, sempre mais do mesmo. Mesmo as mais progressistas são conservadoras demais pra induzir alguma mudança de verdade, e dificilmente têm alguma condição de dar cores novas a esse problema. É hora de arriscar um pouco mais, ousar, inverter algum eixo de rotação pra tentar fazer a máquina funcionar de maneira substancialmente diferente.

O momento de escolha de parlamentares, por exemplo, jamais contemplou um instrumento eleitoral para impedir democraticamente o acesso de alguém a uma casa legislativa contra a vontade da sociedade. O povo não tem o direito de se opor a um determinado candidato aos parlamentos, não importa o quão seja significativa a parcela da sociedade que manifeste essa oposição – nem os seus motivos. O resultado é que todos os parlamentos do mundo estão infestados de figuras insalubres, absolutamente nocivas, cujo acesso e manutenção eterna na condição de parlamentar por décadas, gerações a fio, a sociedade é obrigada a assistir sem ter absolutamente nada a fazer. Uma defesa, uma obstáculo, um recurso, uma iniciativa, nada. Simplesmente condenada a se resignar e a se conformar sem resistir.

Não tem nada a fazer porque não importa o que estas figuras aprontam ou deixam de aprontar no curso do mandato ou em suas vidas, elas agem assim a partir da convicção de que não têm contas a prestar à sociedade, já que não precisam dela, a rigor, para chegar ou se manter ali. O que precisam é apenas da aprovação de um subconjunto microscópico da sociedade, que dificilmente chega a corresponder a 1% do eleitorado – a maioria elege-se e se mantém nos parlamentos com muito menos do que isso. Pra piorar, ainda por cima há os vícios terríveis que todos conhecemos na forma, digamos, de "convencer" esse subconjunto do eleitorado a endossar seus nomes. Contra essa estratégia de apoio setorial sem direito a contraponto nem oposição, não há nada a fazer nos modelos legislativos que funcionam hoje em dia. A atual crise de representatividade que surpreende e choca o mundo inteiro acentua muito a insatisfação popular que vem dessa impotência, e a ausência de instrumentos que permitam à população exercer algum controle neste sentido já não é mais tolerável. Estes modelos já não atendem às novas necessidades de democracias, principalmente as conectadas por sociedades organizadas em rede.

Imaginem agora que para cada eleição para as casas legislativas o eleitor fosse com direito não a um, mas a dois votos. Na verdade, direito a um voto e a um “veto”. Ele escolhe um candidato que ele acha que deveria ocupar uma cadeira, normalmente, como é a tradição nos modelos eleitorais democráticos de hoje em dia, mas também aponta alguém que ele acha que não reúne condições mínimas para exercer funções de representação popular. A sociedade teria assim como perceber, medir e eventualmente impedir o acesso a funções legislativas de candidatos em relação aos quais uma parcela expressiva da população tenha manifestado o desejo de ver afastados destes espaços públicos.

Acredito que uma tal iniciativa, mesmo sem romper totalmente com os modelos em vigor, ainda assim alteraria profundamente a dinâmica das eleições para os parlamentos - e digo parlamentos porque a princípio não parece um bom mecanismo para aplicar às eleições majoritárias para cargos no Executivo, onde aparentemente avaliações contínuas de desempenho poderiam ser uma alternativa mais adequada.

De cara, já poderia ser uma esperança para a falida participação popular. Um cidadão muito facilmente não se encontra representado para o legislativo por alguém disponível, e muitas vezes por isso mesmo sequer comparece para votar. Só que mesmo sem ter um favorito para eleger, o fato de haver alguém contra quem ele acredita que precisa votar para impedir de acessar o parlamento pode dar novo fôlego e um novo significado à sua participação. Além disso, aumentariam exponencialmente as variáveis fora do controle dos candidatos, que já não têm mais como garantir os votos de apoio que recebem, que dirá a rejeição de que são alvo. Como esta rejeição provavelmente é até mais espontânea, isso no fim poderia favorecer a renovação que tanto se pretende e pela qual tão pouco de concreto se faz. Por fim, mais importante, a tendência é a de que um tal ajuste acabasse com a cegueira de alguns parlamentares em relação à opinião pública, uma vez que a renovação de seu mandato passaria não mais a depender apenas de convencer aquela parcela ínfima do eleitorado que ele precisa convencer hoje, mas também de não ser alvo da rejeição de um contingente estruturado de eleitores legítimos, que seja categórico e maciço o suficiente para fazer valer sua voz. Eleitores que hoje em dia são obrigados a conviver com atitudes e posturas de parlamentares que são inacreditavelmente desconectadas de senso de interesse público e de coletividade, e que passariam a poder impor ao Legislativo o temor eleitoral da rejeição, impossível hoje em dia.

Trata-se, obviamente, de um rascunho de ideia. Evidentemente que uma iniciativa que alterasse tanto o campo gravitacional político distorceria o sistema em alguma outra ponta. É inclusive bem possível que haja outros efeitos colaterais e desdobramentos negativos que sequer tenha havido tempo ou visão ampla o suficiente para perceber ou refletir. Mas é uma ideia efetivamente nova, que mexe nas variáveis do processo, que altera o cenário, que introduz uma alternativa que não havia sido ainda tentada, propondo uma alteração profunda na dinâmica atual para atacar um problema que na essência existe, e precisa ser enfrentado. Nada que uma discussão democrática não ajude a lapidar e a encontrar um equilíbrio adequado e mais ponderado. Muito pior é o parlamentar seguir sendo um agente eleito que não tem razão para temer rejeição, e que por isso pode se dar ao luxo de menosprezar a vontade e a necessidade de milhões de cidadãos, pode se sentir à vontade para debochar dos interesses coletivos, porque tem a certeza de que algumas centenas de pessoas vão sempre mantê-lo por ali. Se estamos em busca de aprimorar representatividade e legitimidade do parlamento, como poder constituído que deve espelhar a sociedade de forma mais plural e mais inclusiva, é um problema que é preciso discutir e uma relação que é preciso reequacionar. E aí não adianta mais do mesmo. É preciso intervir de forma criativa, inovando, transformando efetivamente, para que não seja uma reforma pro forma.

O cidadão que vive nas democracias do Século XXI tem necessidades que são novas. Os graus de transparência, de legitimidade, de representatividade que ele exige são outros, são diferentes, mais acentuados. Um sistema eleitoral que não permite uma forma de organização social coletiva para impedir que determinadas figuras eternizem-se em funções públicas não pode simplesmente continuar da mesma forma, como se estivesse atendendo muito bem a estas novas necessidades democráticas, como se estivesse tudo muito bem obrigado.

Como se a democracia, lida a partir deste século de informação, conhecimento, conexão e transparência, pudesse obrigar o cidadão a tolerar a distorção compulsiva, contínua do mandato legislativo sem instrumentos efetivos de oposição coletiva e organizada.


claudio-lucena. Cláudio Lucena é Mestre em Direito Internacional e Europeu pelo Instituto de Estudos Europeus da Universidade Livre de Bruxelas. É Professor do Departamento de Direito Privado, Centro de Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). PhD Researcher na Católica Research Center for the Future of Law. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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