Por que Trump não vencerá e por que isso importa - Por Ricardo Sanín-Restrepo

04/11/2016

Por Ricardo Sanín-Restrepo - 04/11/2016

A candidatura de Trump nos permite ver contradições domésticas que sempre existiram globalmente. 

Existe um cordão umbilical sinistro entre o interior da política e do institucionalismo estadunidense e seu exterior irrestrito e selvagem. O presidente estadunidense se assemelha ao caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Domesticamente, a instituição é ‘aparentemente’ controlada politicamente por um congresso representativo e legalmente por um sistema judicial autônomo. Mas, além de suas fronteiras e com uma crescente voracidade, o presidente é basicamente o poder executivo de um irrestrito complexo global que orquestra uma força monumental de alianças entre poderes hegemônicos ocidentais (Alemanha, Japão, Reino Unido), instituições multilaterais internacionais (FMI, Banco Mundial) e corporações transnacionais que têm um único objetivo: manter intacto o poder do sistema do mercado de capital internacional e cuja condição é a permanente espoliação do Sul Global.

Quando o eleitorado estadunidense depositar seu voto para presidente neste mês de novembro, estará legitimando uma força depredatória global que permanecerá intacta independentemente do nome, gênero, inclinação moral ou belicosidade do presidente. Há, então, um efeito ondular primordial entre a eleição presidencial e a preservação de privilégios para uma classe social mundial de um minuto que depende da disponibilidade direta da enorme maioria das pessoas e coisas do mundo. Nesse cenário, o presidente garante, através da força e do monopólio de toda linguagem normativa de que fronteiras continuam abertas para o dinheiro (paraísos fiscais), mas fechadas para imigrantes pobres. O presidente é, acima de tudo, o administrador do excepcionalismo estadunidense que destrói ecosistemas enquanto salvaguarda direitos de propriedade intelectual para gigantes da indústria farmacêutica e de companhias alimentícias no exterior.

Mas o Sul Global está em toda parte, não somente nos trabalhos forçados e campos queimados no remoto terceiro mundo, mas nas prisões em Nova Iorque, nos guetos Los Angeles e na gentrificação de Seattle. Pense como no país mais rico do mundo, um entre três homens negros nascidos hoje podem esperar passar um tempo na prisão durante sua vida, e como aquelas prisões funcionam como um pseudo apêndice de escravos de corporações, como campos de concentração neo-industriais. No final do dia estamos todos sob o mesmo abraço devastador desse filamento de violência, todo o resto é uma pura ilusão. Alea iacta est! A morte está lançada antes de o primeiro estadunidense entrar em sua cabine de votação em novembro.

O caso perdido de um projeto de Donald Trump dispara pedaços de gelo com sangue através das veias da ordem estabelecida, na qual mesmo pessoas das internas do Partido Republicano (GOP - Grand Old Party) estão ou mordendo a bala ou correndo em círculos com a casa em chamas. Todavia, se ele se tornar presidente, suas mãos estarão organizadamente atadas para causar estragos ‘domesticamente’ no mesmo sentido que as mãos de Obama estavam atadas para fazerem qualquer bem no exterior. Qualquer um que assuma a presidência é simplesmente o administrador desse complexo corporativo-militar proteano[1] com freios e contrapesos exercidos não somente nos templos de mármore do Distrito de Columbia, mas nos envidraçados em Wall Street, Houston, Vale do Silício e Ilhas Cayman. Trump, o megalomaníaco, está apenas chegando a termo com o fato de que esta verdade, esculpida na pedra da Constituição, é infinitamente maior que sua própria pessoa. Por isso, enquanto alguns progressistas sentiram isso em Berlim em 1933, o Sul Global está se dando conta de que o medo que Trump injeta no sistema é o bode expiatório perfeito para galvanizar ainda mais o poder corrosivo desse ‘complexo proteano’ e seu monumental controle sobre o mundo.

A ‘Pax Americana’, como a dobradiça de paz entre os grandes poderes, é somente uma  proteção estarrecedora que esconde a depredação que ocorre sob o radar da ética convencional e da história. Isso permite ideólogos do pensamento hegemônico como Steven Pinker1 assegurarem que estamos vivendo em tempos de paz; sim, uma paz entre aqueles que têm uma guerra abundante, porém completamente externa, contra os pobres e espoliados do mundo. Ao presidente dos Estados Unidos é confiada uma única tarefa, garantir que o Sul Global seja mantido sob o punho de metal do ‘complexo’. O presidente, como supervisor de elites neocoloniais locais2, assegura que elas estejam alinhadas com o ‘complexo’ impondo sua fórmula livremente em formas de liberalização de comércio com controles estritos de direitos civis, grandes cortes em investimentos sociais e privatizações maciças da natureza interna (genomas) e externa (safras), acelerando a agenda neoliberal para o seu clímax crítico.3 O que o eleitorado estadunidense deve entender é que interesses estadunidenses são unicamente interesses ‘corporativos’; por isso, quaisquer outras manifestações políticas, como de direitos de gênero, por exemplo, são um simples efeito colateral.

Como demonstrei em meu mais recente livro, Decolonizing Democracy: Power in a Solid State, o que sustenta toda essa lógica é o simulacro de democracia, especialmente o que exemplifica todos aqueles interesses, a eleição do presidente dos Estados Unidos. O simulacro, em um sentido estrito, é construído sob totalidades falsas como ‘nós, o povo’, que dependem da colheita de um agente externo com disposição permanente para violenta aniquilação: as ‘pessoas escondidas’ do Sul Global.4 O simulacro significa que o eleitorado estadunidense não está fazendo uma verdadeira escolha democrática, mas legalizando fraudulentamente bem o poder que seu país exerce globalmente. Por isso, há um efeito ondular primordial do centro para a periferia, qualquer coisa submetida ao simulacro de democracia possui um bandeira verde de legitimidade para operar livremente em uma escala global. A democracia é simulada internamente, então a tirania pode ser exercida globalmente. Todavia, como também está provado em meu livro, a simulação não é suficiente para acumular a impermeabilidade do ‘complexo proteano’, o que se requer é que aquele poder se torne encriptado.

A condição ontológica da política é de que absolutamente não há condições ou qualificações além da diferença para se decidir sobre o que a política significa; este é o único significado de democracia.5 O que a encriptação inibe é a simples possibilidade de comunicação de significados que não são programados a partir de um modelo transcendente (por exemplo, a Constituição), no qual o léxico político está completamente hierarquizado e seus usos totalmente predeterminados. O complexo proteano impõe um modelo de humanidade, de desenvolvimento, de razão e de estética, e a partir deste define quem está incluído e quem pode estar submetido a um permanente estado de exceção. Entretanto, o eleitorado estadunidense está falsamente incluído no modelo, especialmente através do sistema eleitoral e bipartidário. Por isso, embora sua decisão tenha um efeito ondular global, está baseada em uma falsa escolha, uma escolha cuja consequência foi determinada anteriormente, então é simplesmente a legitimação de um aparato global de espoliação. A encriptação separa a política ao privatizá-la para o domínio exclusivo de especialistas, e embora isso seja mais antigo que Sócrates nos diálogos platônicos, os EUA elevaram essa prática para novas dimensões de aperfeiçoamento através de uma forma simulada de ‘debate público’. Quando Wall Street entrou em colapso, a fábula era a de que isso foi um problema de tal complexidade que somente poderia ser entendido por poucos que pudessem ler entre as nuances de um modelo matemático esotérico, então a maioria ficaria distante da decisão. O que a encriptação garante é um absoluto controle hierárquico social e político sobre as áreas de conflito discutíveis e as bases empírica e jurídica que podem surgir em qualquer discurso normativo.

Gostemos disso ou não, os EUA seguram as rédeas do poder no mundo. O eleitorado estadunidense está conectado ao fazendeiro pobre no Sudão, ao trabalhador informal no México e ao trabalho escravo em qualquer lugar em modos que eles não podem enxergar completamente em razão da visão de túnel causada pelo simulacro e pela encriptação da democracia. O poder está encriptado quando a política e a democracia estão separadas e a democracia é simulada através da construção de falsas escolhas; o exemplo perfeito é o sistema de eleição do presidente dos EUA ancorado em um modelo de dois partidos políticos.

Este conjunto transforma uma sociedade vibrante e desigual em um homogêneo e cinza espelho polarizado disso. Isso garante unanimidade política enquanto preserva a integridade de hierarquias sociais, exercendo um controle ideológico da linguagem enquanto alcança uma forte padronização dos seus verdadeiros valores. Uma vez que encriptemos este conjunto sólido, nos damos conta de que as duas opções eleitorais são de fato uma e a mesma: a hegemonia global do complexo militar-corporativo estadunidense.

Ambos os partidos são partidos de Wall Street. Republicanos atiram primeiro e perguntam depois, enquanto democratas perguntam primeiro e atiram depois. Por isso, nessa eleição estamos diante de duas línguas que expressam a mesma regra de hegemonia dos EUA. A diferença é que uma é tão rude, tão brusca, que nos permite ver a besta asquerosa despida aos ossos. Donald Trump é simplesmente a pele despejada pela cobra, ele não é uma aberração irada que a natureza política vomitou no mundo, mas o resultado natural de um jogo doentio.

Nessa linha de argumentação, Trump é um anacronismo para o sistema enquanto Clinton é a figura inserida que conhece sua operação pelo coração. Enquanto Trump revive uma forma romantizada de capitalismo industrial, no qual ‘coisas reais estão sendo feitas’, e o lança contra uma forma etérea de capitalismo financeiro, Hillary entende esse novo modo de vida depredatória e está adaptada a ele. Trump não vencerá precisamente porque ele é ofensivo aos interesses corporativos estadunidenses, ele não entende o movimento escorregadio de fases do capitalismo de uma forma industrial para uma financeira6 e, como ele demonstra, o ‘prestígio’ por trás da depredação de massa. Se ele vencer, a ordem estabelecida conhece a fábrica simbólica de inclusão e a democracia estadunidense será vista pelo que é: um puro simulacro.

A candidatura de Trump nos permite ver contradições domésticas que sempre existiram globalmente. Seguramente, um autêntico branqueamento da sociedade estadunidense levaria não somente ao seu fechamento econômico, mas ao seu completo colapso cultural… mas isso não é no que os EUA confiaram globalmente?

Uma opção verdadeiramente democrática não teria ‘liberais’ olhando de cima a baixo o barril carregado de uma escolha forçada. Abraçando alguém que advogou pelos direitos das crianças ao mesmo tempo que advogou para o Walmart, uma pessoa que falou pelos direitos das mulheres enquanto ordenou ataques de drones que mataram civis, que votou a favor do plano de socorro financeiro de Wall Street e liderou a intensificação da guerra conhecida como a ‘explosão do Afeganistão’. O simulacro é tão asfixiante que até Michael Moore, um arquetípico estranho, uma verdadeira inspiração para a mudança, torna-se um alarmista e corre para se esconder no campo neoliberal. Eis o motivo pelo qual escolher Hillary é o ‘menor dos dois males’, mas é uma escolha que no fim garante que a opção política se mantenha fechada e que o ‘complexo’ opere a todo vapor tanto no exterior como domesticamente.

Entretanto, o ponto mais agudo é este, o mais retrógrado dos seguidores de Trump e o mais progressista dos ativistas estão isolados na mesma ilha deserta da política corrompida e de falsas dicotomias. Embora os avanços dos direitos civis nos EUA sejam enormes e devam ser celebrados  e intensificados, os progressistas devem reconhecer que ditos avanços não incomodam a destruição  daqueles presos na teia global de abuso. O progressista estadunidense está perdendo a íntima e imediata relação da sua posição doméstica com seu resultado global. O simulacro os força a pensar apenas domesticamente sobre um Leviatã que age globalmente. O fato vital para se atentar é que, talvez por meio das lentes do simulacro, os progressistas estadunidenses entenderão a paralisia em que estão e que o único caminho para serem relevantes para o sistema é abraçarem sua absoluta irrelevância dentro dele.

O eleitorado estadunidense não percebe que sua escolha é algo preconcebido, uma não escolha moral trêmula e medrosa que é a completa negação da democracia. O que acontecerá em quatro anos? De quem ele correrá para se esconder sob a asa do protetivo Moloque[2] do bipartidarismo? É urgente que todas as energias democráticas progressistas dos EUA criem uma verdadeira alternativa inovadora ao bipartidarismo; este pode ser o mais excepcional e crucial projeto democrático para a próxima eleição presidencial. Enquanto isso, o eleitorado permanecerá preso em um círculo vicioso, a cada quatro anos na mesma falsa charada ética, condenado à mesma deformação de tempo e história, na qual a democracia permanecerá uma frase de efeito decorativa que permite a poderes colossais destruir a diferença, começando com eles próprios.


Notas e Referências:

[1] Nota do tradutor: referência a Proteus, deidade na mitologia grega que muda sua forma.

[2] Nota do tradutor: referência a Moloch, deus cultuado no Oriente Médio em rituais que envolvem sacrifícios humanos.

1 PINKER, Steven. The Better Angels of our Nature. New York, NY: Viking, 2011.

2 QUIJANO, Anibal. Colonialidad del Poder, Globalización y Democracia. Caracas: Instituto de Estudios Internacionales Pedro Gual, 2001.

3 HARVEY, David. The enigma of capital and the crisis of capitalism. London: Profile Books, 2011.

4 SANÍN-RESTREPO, Ricardo. Decolonizing Democracy: Power in a Solid State. London: Rowman and Littlefield International, 2016.

5 SANÍN-RESTREPO, Ibid.

6 MASON, Paul. Postcapitalism a Guide to our future. London: Penguin Books, 2015.


Texto originariamente publicado, em 15/09/2016, na Critical Legal Thinking - Law and the Political: http://criticallegalthinking.com/2016/09/15/why-trump-wont-win-and-why-it-matters/. Tradução do original em inglês para o português por Enzo Bello: Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


ricardo-sanin-restrepo. Ricardo Sanín-Restrepo é membro da Associação Filosófica Caribenha e professor de teoria política e teoria do direito em diversas instituições na América Latina. É autor do livro ‘Decolonizing Democracy: Power in a Solid State’, publicado pela editora Rowman and Littlefield International (London, 2016). .


Imagem Ilustrativa do Post: Donald Trump // Foto de: Gage Skidmore // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/gageskidmore/8567828196

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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