Por que se teme o socialismo? Notas sobre direito de propriedade individual

22/10/2016

Por Haneron Victor Marcos - 22/10/2016

Propriedade. Devemos falar sobre ela, no socialismo. Por quê? Porque ela continua sendo o centro dos estigmas e dos discursos de ódio desde o advento do marxismo, que por sinal não inaugurava o socialismo.

Não se ignora que a ameaça à democracia e os equívocos econômicos extraídos das experiências globais do socialismo real ainda pulsem. A aparente irreversibilidade do capitalismo (com maior ou menor grau de intervenção estatal, sobre a qual se dedica o socialismo reformista) e a estabilidade ou higidez de nosso modelo constitucional democrático ainda assim não deixam de promover um temor recorrente: o de vivermos sobre um sistema político-econômico que nos imponha o trabalhar e nada, ou pouco, ter. Viver sob o mitológico encargo das danaides ou de Sísifo, na mística visão popular, acientífica, de que o resultado do trabalho individual se dissipa por completo em favor de uma vampira coletividade que não necessariamente se dedica ao mesmo esforço. Logicamente, não se está aqui a entoar uma ode à economia planificada. Tecer uma análise crítica honesta sobre os desacertos econômicos do socialismo real seria papel para um tratado que escapa da competência isolada de um jurista.

A foice e o martelo hasteados com a bandeira dos partidos comunistas brasileiros nos remetem, e com razão, ao germinal regime soviético. É um orgulho de uma referência de origem marcada pela primeira experiência revolucionária que deferiu o poder à classe trabalhadora na abertura do século XX. Todavia, de 1917 à contemporaneidade foram muitas as críticas e autocríticas (notadamente após as revelações do XX Congresso do PCUS, em 1956), reorientações teóricas (reformistas, socialdemocratas, entre outras), ou adesões a modelos encarados como mais fieis ao marxismo-leninismo após os desvios revisionistas e “sociaisimperialistas” da URSS, como o chinês e o albanês.

Mas vamos assumir que as propostas socialistas que ameaçam, ao menos no plano teórico, o modelo neoliberal reinante ainda estejam, por seus partidários, impregnadas de uma ortodoxia marxista-leninista de prática soviética. Como, nesse contexto, se comportaria o direito de propriedade, especialmente o individual? É preciso voltar na história.

O direito de propriedade na ordem soviética se desmembrava em duas categorias essenciais: propriedade social dos meios de produção (que se ramificava numa linha cooperativista e outra eminentemente pública) e propriedade individual ou pessoal. Não havia uma negação da propriedade privada, mas sim a proposta (ou a exigência) de abolição daquela que se baseava na exploração do trabalho alheio, havendo, por consequência a necessidade de harmonia entre as duas categorias, sem espaço para contradições. Para a consagração positivista do direito soviético, a propriedade socialista quebra um paradigma anterior à própria formação conceitual da propriedade. Ela impõe uma mudança das relações entre pessoas com referência aos meios de produção, e num contexto geral, uma relação entre pessoas, e não necessariamente entre pessoa e coisa.

Com a estabilização da legislação soviética (em evolução ao comunismo de guerra pós-1917), o direito de propriedade pessoal, enquanto direito fundamental dos cidadãos soviéticos, foi confirmado positivamente pela primeira vez na Constituição da URSS de 1936 como forma de propriedade individual interligada com o princípio da propriedade socialista. Ratificado pela Constituição de 1977, se fixa que a propriedade pessoal era aquela proveniente do trabalho, enumerando de forma geral, em seu artigo 13, os seus objetos: aqueles de uso, de consumo, comodidade, e conectados com a economia doméstica auxiliar; a casa de habitação e as economias procedentes do trabalho. A propriedade pessoal era, portanto, aquela destinada exclusivamente para satisfazer as necessidades do proprietário, sem que se constituam fontes de receitas não provenientes do trabalho ou que exijam a exploração de força de trabalho alheia.

Além da origem da apropriação se constituir do trabalho próprio (com algumas exceções, como a herança de propriedade pessoal), a destinação que se dá ao bem ou patrimônio é o que definia a linha entre propriedade social e pessoal.

Assim é que o direito soviético combatia em várias linhas qualquer iniciativa especulativa com a propriedade pessoal ou individual (diretiva do Comitê Executivo Central e do Conselho dos Comissários do Povo da URSS, de 22 de agosto de 1932. Concernente à luta contra a especulação, artigos 84 e 107 do Código Penal da RSFSR[1] e correspondentes artigos dos códigos penais das demais repúblicas soviéticas) tal como contra as manobras dirigidas à exploração de uma pessoa pela outra (artigo 33 do Código Civil da RSFSR). Sob esse prisma é que a legislação limitava a extensão da propriedade individual (por exemplo, em casas de habitação: Código Civil da RSFSR, artigo 182) para o fim de não permitir que essa propriedade se tornasse economicamente ativa em competição com a propriedade social e escapasse de seu traço fundamental que é o consumo e a satisfação da necessidade habitacional individual ou da família. Um automóvel, por exemplo, pode ser empregado para a satisfação da necessidade pessoal e familiar, de locomoção do empregado, ou para um transporte de passageiros mediante contratação de motorista; eis um exemplo prático da “border line” entre propriedade pessoal e social.

As leis soviéticas não tolhiam dos trabalhadores o direito de possuir uma casa (além de uma casa de praia ou de campo), automóvel, utensílios domésticos e de economia auxiliar (para uso em granjas de consumo próprio), utensílios de trabalho (para uso no labor cooperativo), depósitos bancários, entre outros direitos pessoais e reais, desde que não extrapolassem o campo ordinário da satisfação da necessidade pessoal. Porém, é certo, e até mesmo por uma característica da propriedade pessoal que é estar sintonizada com a propriedade social, que o estado soviético limitava a utilização de tais bens e mesmo sua proporção, como o tamanho das residências de acordo com a necessidade familiar.

Outro traço característico dessa propriedade pessoal é o seu resultado da remuneração obtida pelo trabalho pessoal (complexamente variada e atendendo à produção e à especialidade), com algumas exceções, como era o caso da herança de propriedade pessoal, das pensões próprias da assistência social, bolsas de estudo e abonos estatais, rendimentos obtidos com a locação das datchas (compreendida como verba de manutenção), entre outras poucas formas autorizadas. E, quando se fala em obtenção pelo trabalho pessoal, isso não se resume ao retorno direto do emprego, por exemplo, podendo advir da renda de produções agrícolas ou artesanais dos terrenos anexos às casas, ou de outros serviços prestados à população baseados no trabalho pessoal e de seus familiares.

Considerando que a terra era propriedade estatal, um destaque deve ser dado às residências. Importante saber que o direito soviético desconhecia a divisão das coisas móveis e imóveis; o regime de diferentes tipos de bens dependia de outros indícios, sendo a fundamentação mais importante para a classificação das coisas, segundo os indícios da sua finalidade econômica, justamente a divisão entre meios de produção e bens de consumo.

O direito à habitação era um direito social no ordenamento soviético, sendo vastíssima a legislação pertinente. A plena habitação foi um dos objetivos primários do regime soviético, com ritmo de construção nunca antevisto. O apoio do Estado se dava de maneira direta ou através da disponibilização de créditos a fundos cooperativos de construção.

Para a obtenção de uma residência, o cidadão soviético poderia construir ou a obter diretamente por permuta ou compra (não num mercado imobiliário livre, mas residual, com ofertas admitidas pela lei, como no caso de herança recebida por aquele que já detinha uma propriedade), através da promoção de eventual política governamental, da herança de uma propriedade pessoal, da participação num kolkhose[2], ou através da participação numa cooperativa construtora de habitações. Neste último caso, os cidadãos aceitos e que contribuíram com sua cota, estavam na condição de copropriedade parcelada. O apartamento – tipo de residência preconizado de acordo com o cenário deficitário habitacional – não era sua propriedade pessoal como membro da cooperativa, mas sim a quota na organização segundo as disposições estatutárias. Era possível ao soviético, inclusive concomitantemente, participar de cooperativas dessa natureza para a construção de casas de campo.

Similar à participação nos fundos, no sentido da coletividade, é o lar ou residência kolkhoziana. Na Constituição de 1936 se consagra o direito à propriedade pessoal de um lar kolkhoziano sobre a economia agrícola auxiliar existente no terreno anexo à casa, assim como a casa de habitação, o gado, as aves domésticas e os instrumentos agrícolas (artigo 7º). As relações de propriedade do lar kolkhoziano eram reguladas pela lei numa série de casos distintas das relações da propriedade pessoal, na base do direito de propriedade conjunta, excetuando aqueles bens que integram a propriedade individual, guarnecidos pela residência (roupa, mobília, equipamentos eletrônicos, etc.).

A posse, o usufruto e a administração dos bens de uma quinta kolkhoziana eram exercidos de comum acordo pelos seus membros. A decisão, por exemplo, sobre o terreno anexo à residência no qual era mantida a economia agrícola auxiliar era tomada por assembleia geral dos membros do kolkhoze, levando sempre em consideração o número de membros da família e a participação nos trabalhos de produção.

A residência pessoal, no modo mais tradicional, foi mantida incólume desde que não atentasse ou competisse contra a propriedade social; ou seja, não fosse utilizada como meio de produção e destinada fosse apenas para a necessidade pessoal ou familiar de habitação. Excetuando as possibilidades patrimoniais que assumissem um caráter social, até mesmo um turista poderia ser proprietário de bens pessoais.

Alguns limites ou intervenções estatais encontrados sobre a residência privada podem ser destacados: contrato de compra e venda não poderia ser concluído mais de uma vez em três anos; as reformas substanciais necessitavam de registro nos respectivos Comitês Executivos dos Sovietes; estabelecimento de uma metragem padrão para a residência (normalmente 60 metros quadrados) assim como do lote de terra a ser cedido pelo Comitê (300 a 600 metros nas cidades e de 700 a 1200 fora das cidades), tudo dentro da perspectiva de desenvolvimento da região. A legislação do setor, como já adiantado, era vastíssima e poderia sofrer diferenças acessórias nas repúblicas associadas, desde que respeitados os princípios vindos da cúpula, como, por exemplo, decreto do Presidium do Soviete Supremo, promulgado em 1948, que dispunha que “cada cidadão e cada cidadã da URSS têm o direito de comprar ou construir, para suas necessidades pessoais, uma casa de moradia, térrea ou de um andar, cujo número de peças será de uma a cinco, nas cidades, ou fora delas”. As restrições, ainda que por razões diversas, não são incomuns aos ordenamentos jurídicos ocidentais, que sempre tiveram suas limitações com os planos diretores de cada cidade, por ordem de preservação histórica, ambiental, etc.

Assim, além de uma casa para domicílio e de uma datcha, ao cidadão soviético era livre o direito de obter toda ordem de bens de consumo, como automóvel, motocicleta, barco, eletrodomésticos, animais e tudo mais que respeitasse o princípio da propriedade social. Além da previsão constitucional, a propriedade pessoal era garantida pelos códigos civis e protegida pela legislação penal.

Centrados num panorama comparativo jurídico-positivista (e distantes de discussões ideológicas e de factibilidade econômico-financeira), ao cidadão médio brasileiro, que passará toda sua existência financiando seu único imóvel de residência e angariando alguns bens pessoais, sob o prisma do direito de propriedade individual, o discurso de ódio ou rasa intolerância se esvazia de sentido.


Notas e Referências:

[1] República Socialista Federativa Soviética da Rússia.

[2] Cooperativa agrícola na qual seus membros produziam em terras do Estado com usufruto perpétuo e gratuito, seguindo a planificação da economia e repassando parte dos resultados ao mesmo.

ANACHQUINE, G. et al. A propriedade social e a liberdade individual na URSS. São Paulo: Editora Fulgor, 1963.

KHÁLFINA, Raissa. O direito de propriedade pessoal da URSS. Moscou: Edições Progresso, 1979.

KIMURA, Hiroshi. Personal property in the Soviet Union, with particular emphasis on the Kruschev era: an ideological, political and economic dilemma. Sapporo: Hokkaido University Collection of Scholary and Academic Papers – HUSCAP, 1969.

PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

SHARLET, Robert. Stalinism and soviet legal culture. In: TUCKER, Robert C. (Edit.). Stalinism. Essays in historical interpretation. Nova York: W. W. Norton & Company Inc., 1977.

SUVORÓVA, M, ROMANÓV, B. Que é propriedade? Moscou: Edições Progresso, 1987.

VYSHINSKY, Andrei Y. The law of the soviet state. Nova York: The Macmillan Company, 1948.


haneron-victor-marcos. Haneron Victor Marcos é Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires, Mastère Spécialisé en Management de l’Innovation pela Ecole Nationale Superiéure des Mines – Saint-Etienne, Procurador-Chefe do Contencioso da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (haneronmarcos@gmail.com). .


Imagem Ilustrativa do Post: Red flag // Foto de: Gotardo González // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/unclegott/5964726554

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura