POR QUE NÃO ESTUDAR A REALIDADE DE MADAGASCAR?

18/10/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

A coluna de hoje pretende enfatizar a importância de comparar diferentes realidades. Isso porque, em geral, ficamos presos às coisas que vivenciamos no nosso dia a dia, vendo as coisas que acontecem em outros países sob a nossa perspectiva, como se fôssemos as pessoas mais importantes do mundo e como se devêssemos ser seguidos por todos.

Ficarmos enclausurados em nossa realidade é o pior que pode acontecer porque perdemos a capacidade de criticar a nós mesmos, repetindo os nossos erros indefinidamente. 

Em verdade, a comparação a ser feita, além de permitir um olhar mais atento sobre a realidade estrangeira, igualmente autoriza uma percepção sobre as nossas próprias características, inclusive propiciando a análise e a crítica sobre peculiaridades tão arraigadas em nossa rotina que, a rigor, quase passam despercebidas.

Portanto, é importante perceber que apenas é possível aperfeiçoar o nosso sistema a partir do momento em que conseguimos enxergar as suas virtudes e os seus defeitos, sendo essa tarefa enormemente facilitada a partir do momento em que as suas características passam a ser comparadas com as características apresentadas em outras realidades.

Em nossos estudos no Doutorado, estamos comparando duas realidades específicas existentes no Brasil e nos Estados Unidos, países nos quais o Direito atua como um dos principais modeladores das relações sociais, o que facilita o nosso trabalho.

Mas há uma reflexão prévia à comparação a ser feita entre dois países, a qual se refere justamente à importância do Direito nas realidades a serem comparadas, uma vez que é plenamente possível que o Direito tenha importância em um dos países e não a tenha em outro país, o que torna muito mais complexa a comparação.

Veja-se que, dependendo dos países a serem examinados, a referida comparação há de ser ainda mais cuidadosa porquanto o Direito pode não representar o único ou o mais importante modelador das relações sociais, apresentando uma função verdadeiramente subsidiária ou mesmo quase supérflua.

Um bom exemplo disso pode ser extraído quando se vê envolvido na comparação um país do Extremo Oriente, no qual o acesso à justiça é considerado uma desonra aos bons cidadãos, na medida em que, diante de um conflito, se espera que eles busquem resolver a questão adotando processos conciliatórios, sem a necessidade de levar o conflito de interesses ao Judiciário.

Nesse caso, a comparação entre a realidade brasileira e a realidade japonesa, por exemplo, seria bastante complexa, já que exigiria comparar sistemas que sequer têm como premissa a mesma importância conferida ao Direito e, por consequência, a mesma importância conferida ao acesso à Justiça.

Dessa maneira, o que se percebe é que uma das importantes funções da comparação entre distintas realidades é justamente esclarecer o significado do Direito para os países a serem analisados e, por consequência, viabilizar a percepção quanto à forma através da qual o Direito é colocado em prática.

É a mencionada ótica prática que pode revelar como as experiências adotadas por um país podem ser úteis em outra realidade, ou seja, de que maneira as práticas inseridas em um contexto podem ajudar a solução de questões que se apresentam em outras realidades, seja para afastar a aplicação das mesmas diante da constatação de sua pouca utilidade, seja para potencializar a sua aplicação diante da percepção de sua importância para a solução dos conflitos.

Outro ponto importante a ser destacado é no sentido de que a comparação deve levar em conta as normas em vigor nos países a serem comparados, mas não deve ficar refém das mesmas, na medida em que sempre será possível a sua alteração ou mesmo a sua revogação.

Nesse sentido, é fundamental perceber não apenas o que dizem as normas vigentes nos países a serem comparados, mas também o quadro no qual são ordenadas as regras, o significado dos termos que elas utilizam e os métodos usados para a fixação de seus sentidos e para a sua harmonização.

Aliás, o perigo de o pesquisador ficar refém das normas em vigor foi destacado por René David, no momento em que se referiu ao jurista e filósofo alemão Julius Hermann von Kirchmann, o qual, em 1848, afirmou que três palavras do legislador e bibliotecas inteiras podem desaparecer.

Na nossa ótica, é fundamental perceber e conferir importância às realidades a serem comparadas, mas sempre com e preocupação de inseri-las em um contexto maior, para que não pareçam ser as únicas realidades existentes em todo o mundo.

Um bom exemplo disso pode ser extraído dos muitos textos existentes que comparam as famílias civil law e common law, cuja existência é referida aos estudantes desde que se matriculam na Faculdade de Direito.

Em uma menor ou maior profundidade, os estudantes e os profissionais do Direito são apresentados às características das famílias civil law e common law, mas, na verdade, pouco se estuda sobre as demais famílias existentes no mundo, o que leva à falsa percepção no sentido de que o mundo se divide em apenas duas partes.

Nesse contexto, apesar de as famílias civil law e common law terem maior destaque doutrinário, sendo abordadas, de uma forma geral, por grande parte dos autores que se dedicam ao tema, não custa lembrar que ambas não esgotam as realidades existentes em todos os países.

Em verdade, existem países cujas realidades não se adaptam às principais características das famílias civil law e common law, impondo uma classificação diferenciada, sob pena de realidades significativamente distintas serem tratadas, de forma equivocada, como se possuíssem as mesmas bases.

Portanto, vale o registro no sentido de que existe, com características próprias, a família dos direitos socialistas, cujo berço foi a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, desenvolvendo-se a partir da Revolução Russa de 1917.

Além disso, é preciso reconhecer que, embora as famílias civil law, common law e socialista sejam, verdadeiramente, as mais importantes famílias de Direito que existem no mundo contemporâneo, não se pode ter a ilusão no sentido de que as mesmas consigam abranger rigorosamente todos os países.

Embora tenham merecido menor atenção da doutrina, os países que não se adaptam às três mencionadas famílias não deixaram de ser examinados por René David, o qual teve a preocupação de enfatizar as sociedades sobre as quais não se têm tantas informações, mas cujo número de pessoas que abrangem, por si só, impõe a sua consideração.

Vale mencionar a seguinte passagem: Os princípios aos quais as pessoas se reportam, nas sociedades não ocidentais, são de duas ordens. Algumas vezes é atribuído ao direito um valor eminente, mas este é concebido de um modo diferente do ocidental; outras vezes, pelo contrário, a própria noção de direito é rejeitada, e é fora do direito que se procuram regular as relações sociais. O primeiro modo de ver predomina no direito muçulmano, no direito hindu e no direito judaico; o segundo é o do Extremo Oriente e também o da África e de Madagascar[1].

Registre-se que, enquanto para alguns o Direito é o conjunto de regras a serem observadas e cuja aplicação é feita pelos tribunais, para as realidades muçulmana, hindu e judaica, o Direito está relacionado a uma religião ou pode corresponder a um certo modo de conceber a ordem social, não se negando, contudo, a sua importância.

De outro lado, nos países do Extremo Oriente, o Direito é repudiado, sendo visto como instrumento de arbítrio e um fator de desordem, prevalecendo, na China e no Japão, por exemplo, o entendimento segundo o qual os conflitos devem ser dirimidos longe dos tribunais, através de métodos conciliatórios.

Na mesma medida, na África subsaariana[2] e em Madagascar[3], o Direito tem pouca importância, uma vez que prevalece a cultura segundo a qual a manutenção ou a restauração da harmonia tem mais importância do que propriamente a observância das regras impostas.

Por isso, o que pretendemos enfatizar é a importância de os nossos estudos não ficarem reféns do trivial, daquilo que ordinariamente é estudado, deixando-se de comparar a nossa realidade com as outras realidades existentes. É preciso que igualmente nos dediquemos a temas pouco explorados e que podem nos trazer importantes informações, inclusive, sobre a nossa própria realidade. O olhar sobre o outro pode iluminar o nosso olhar sobre nós mesmos. Afinal, por que não estudar a realidade de Madagascar?

 

Notas e Referências

[1] DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 29.

[2] A África subsaariana, também chamada de África negra, corresponde à parte do continente africano situada ao sul do Deserto do Saara, sendo constituída de 48 países, quais sejam, Angola, Burundi, República Democrática do Congo, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Kenya, Nigéria, Rwanda, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Uganda, Sudão, Sudão do Sul, Djibouti, Eritreia, Etiópia, Somália, Botswana, Comores, Lesoto, Madagascar, Malawi, Maurícia, Moçambique, Namibia, Seychelles, África do Sul, Suazilândia, Zâmbia, Zimbabwe, Benim, Mali, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mauritânia, Niger, Senegal, Serra Leoa e Togo.

[3] Madagascar é um país independente que ocupa a maior ilha do continente africano, sendo a quarta maior ilha do mundo. Uma pesquisa realizada em 2012 estimou a sua população em 22 milhões, sendo que 90% das pessoas vivem com menos de US$ 2 por dia.

 

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