Por que as juventudes não são um público prioritário de cuidado e atuação no período da pandemia da Covid-19?

05/10/2021

  Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Por que as juventudes não foram e não são tratadas como público prioritário de cuidado e atuação no período da pandemia da Covid-19? Eis uma reflexão e preocupação que tenho alimentado ao longo destes dias e meses de crise sanitária ocasionada pela disseminação global do coronavírus (Sars-Cov-2). O contrário ocorreu com as crianças e adolescentes. No dia 13 de julho de 2020, o governo federal, por intermédio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, lançou o Plano de Contingência para Crianças e Adolescentes, prevendo um total de 125,6 bilhões de recursos para proteger as crianças e adolescentes vulnerabilizados no período da pandemia[1]. Por que não se fez algo parecido para as juventudes? Não são os/as jovens os/as que morrem e adoecem mais devido esta doença, assim como não são as crianças e adolescentes, mas continuar a ser sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, e tiveram as suas trajetórias e condições de vida afetadas pela pandemia e as medidas adotadas para enfrentá-la, ainda que maneira diferente e desigual entre as diversidades juventudes existentes no país.

Durante algum tempo, nesta pandemia que ainda vivemos, as únicas informações que eram noticiadas na grande mídia envolvendo as juventudes estavam relacionadas com : (1) a paralisação das escolas e universidades, e os desafios/dificuldades do ensino remoto: (2) a organização e/ou participação em festas clandestinas, reforçando, neste último caso, os ideários de sujeitos “irresponsáveis” ou “rebeldes”, o que habilita a frutificação de práticas repressivas para buscar “corrigir” os/as jovens sob o apelo da crise sanitária; (3) o extermínio, ou a “pandemia do extermínio”[2], que se acirrou contra as juventudes negras por meio de operações policiais em favelas e comunidades negras carentes, reforçando o racismo estrutural e a descartabilidade de vidas negras em tempos de pandemia.

Em todo caso, sem discutir mais a fundo como a sociedade e o Estado estavam (e estão) lidando com o público juvenil e, sobretudo, com suas demandas surgidas ou redefinidas em tal período, ante os imperativos do isolamento social e dos cuidados de higiene, e posteriormente com as estratégias adotadas para a retomada da vida social e das atividades econômicas. Um ponto central são as medidas sanitárias adotadas e de que forma foram comunicadas, assumidas ou confrontadas pelas juventudes.

Carles Feixa foi um dos que atentou para isto. Em uma entrevista publicada no dia 22 de outubro de 2020, no jornal El País, ele refletia, a partir da análise dos contextos vividos na Espanha e outros países europeus, de que “os poderes públicos se esqueceram dos jovens durante o confinamento... [e] quando chegou o desconfinamento... O erro tem sido não contar com eles para uma estratégia de responsabilização e cogestão do desconfinamento. Tê-los tratado de maneira infantilizadora, por um lado culpando-os e por outro com broncas. Isso não funciona com a juventude”[3].

Mas o que funciona, então? Penso, em primeiro lugar, a tarefa de escutar as juventudes. Esta escuta pode ser feita de muitas formas, entre elas a da pesquisa. Foi por meio de uma pesquisa, conduzida pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) e um grupo de organizações sociais, e denominada “Juventude e Pandemia do Coronavírus”[4], que se chegou a dados relevantes sobre como as juventudes têm vivenciado esta pandemia.

O caráter “relevante” desta pesquisa está, por um lado, em sua abrangência territorial – ainda que muito concentrada no Sudeste e Nordeste – e na quantidade de participantes na primeira edição em 2020 (34 mil jovens) e na segunda edição em 2021 (68 mil jovens). Por outro, ante a fotografia obtida na análise continuada deste período e de como as demandas foram se alterando (ou não) em decorrências das distintas etapas gerais vividas na pandemia (as ondas de contaminação/morte e o antes e depois do início da vacinação), tornadas mais complexas nas diferentes e desiguais formas de se viver a juventude.

Esta pesquisa apresenta dados que precisam ter uma incidência nas políticas públicas das juventudes e junto aos gestores públicos. Quero ressaltar só alguns deles. O primeiro, é a identificação de que os principais efeitos da pandemia na saúde mental das juventudes é, para 61% dos participantes, a ansiedade (sendo que entre as mulheres foi indicado por 67% das participantes), seguido pelo uso exagerado das redes sociais (56%) e pela exaustã0 e/ou cansaço constante (51%). Aliás, a saúde mental é uma dimensão transversal na pesquisa, e vai aparecer em todos os campos abordados, de forma direta ou indireta, mostrando que este é um tema central deste nosso período pandêmico e no pós-pandemia, também. Outro dado interessante da pesquisa é que 68% dos participantes indicaram que não frequentaram festas durante a pandemia.

Por último, quero ressaltar os dados preocupantes, presentes no relatório da pesquisa, sobre o desemprego juvenil que a pesquisa apresenta, revelando que o quadro juvenil é muito pior do que o cenário amplo da população – e ganha recortes de maior exclusão quando trabalho em recortes interseccionais de raça, classe e gênero, assim como os impactos sentidos no campo educacional, em que a identificação de que 57% dos participantes preferem manter o ensino remoto durante a pandemia é seguida pela constatação de que somente 26% deles/delas pretendem fazer o Exame Nacional do Ensino Médio em 2021, o que revela a frustação com o desempenho nos estudos, mas também pode apontar para outros aspectos subjetivos e sociais que estejam motivando este desestímulo com o percurso educacional.

Quando leio documentos como este, minha primeira inquietação é com a baixa institucionalidade das políticas públicas de juventudes no Brasil, e quanto dados como este deveriam estar servindo para balizar a construção do Plano Decenal de Juventude – obrigação constitucional, até hoje não efetivado pelo Congresso Nacional – ou, minimamente, um Plano de Contingência da Covid-19 para as Juventudes no Brasil, algo que nunca foi materializado, ao menos até agora, em termos de governo federal.

Ao mesmo tempo, são informações que buscam traçar um recorte do público juvenil e de suas demandas, mas nisto que faz o recorte também produz outras invisibilizações de cunhos identitários e temáticos. Por exemplo, sobre as juventudes indígenas, o relatório só informa o quantitativo racial de jovens que se autodeclaram indígenas que participaram da pesquisa, isto é, 1%, o que se presume que seja um número próximo de 681. Mas na hora de depurar os dados para análise, trabalha com uma categoria mais ampla, de “jovens rurais”, o que gera uma invisibilização étnica das juventudes indígenas e a perda de análises que pudessem evidenciar as especificidades de suas realidades e demandas. No caso das juventudes LGBTIA+ ou com deficiência, nem mesmo há suas identificações.

Em todo caso, a partir de levantamentos como este, podemos trabalhar uma discussão mais ampla, junto ao Estado, para que possa rediscutir o papel das juventudes no contexto da pandemia da Covid-19. Não custa lembrar que o sujeito jovem tem a garantia da prioridade absoluta do cumprimento dos seus direitos, como reza o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Então, a pergunta que fica é: quando vamos começar a levar a sério as juventudes e a prioridade de seus direitos para discutir a pandemia?

 

Notas e Referências

[1] Matéria oficial do lançamento do Plano consta no link: https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/07/governo-lanca-plano-de-contingencia-para-criancas-e-adolescentes#:~:text=O%20Plano%20de%20Conting%C3%AAncia%20para,%E2%80%9D%2C%20destacou%20a%20ministra%20Damares.

[2] Usando aqui termo elaborado por Simone Sampaio e Gustavo Meneghetti, em artigo que discute a manutenção do extermínio da juventude negra durante a pandemia, e pode ser acesso via link: https://www.scielo.br/j/rk/a/zD86k4Rfnd5gDwh6jG8Jgqq

[3] Tradução minha. A matéria completa pode ser acessada pelo link: https://elpais.com/educacion/2020-10-21/carles-feixa-antropologo-con-los-jovenes-no-funcionan-las-broncas-sino-hacerles-ver-que-los-perjudicados-seran-sus-abuelos.html

[4] O relatório da pesquisa e outras informações sobre as juventudes brasileiras podem ser obtidos no link: https://atlasdasjuventudes.com.br/juventudes-e-a-pandemia-do-coronavirus/

 

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