Populismo penal é ruim pra cachorro: uma análise da ‘Lei Sansão’

08/10/2020

Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Fundamento normativo para se promover a punição de condutas que submetam os animais a situações cruéis não falta. Basta uma leitura do art. 225 e parágrafos da Constituição Federal para encontrar um dos poucos mandados expressos de criminalização do seu texto e a vedação expressa a práticas que submetam os animais a crueldade. No entanto, quando se fala em criação de tipos penais ou incremento de punição, devemos dar ouvidos a Paulinho da Viola e seu velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar.

Infelizmente, em tempos onde o populismo penal navega de vento em popa, episódios onde esse conselho é absolutamente ignorado são comuns. Semana passada tivemos um desses episódios quando o mesmo Presidente da República – que há aproximadamente um ano sancionava a Lei n. 13.873/19, dando uma nova demão de legalidade às Vaquejadas – , sancionou a Lei 14.064/20 – a Lei Sansão –, bradando aos sete ventos a necessidade de se proteger os animais.

Neste brevíssimo ensaio, será arguido que a Lei 14.064/20, ainda que bem-intencionada, não passa do reflexo de uma governança centrada no combate ao crime, mas que ignora as finalidades (declaradas) do direito penal em um Estado Democrático de Direito e, por isso, carece de legitimidade. Paralelamente, como se trata de uma norma vigente até que uma nova lhe retire do ordenamento ou lhe seja declarada a inconstitucionalidade, farei um breve apanhado das alterações promovidas e seus impactos no sistema de justiça penal.

 

1. Por que “Lei Sansão”?

Sansão é um pitbull branco de 02 anos, morador de Confins, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No dia 06 de julho deste interminável ano de 2020, Sansão, como todo cão sapeca eventualmente faz, fugiu momentaneamente de sua residência, pulou o muro que dava acesso à propriedade vizinha e lá arranjou confusão com outro cachorro. Essa não seria uma ocorrência digna de atenção, se não fosse a reação de um funcionário da empresa dona do imóvel vizinho.

Segundo consta, sabe-se lá por qual motivo, esse funcionário, juntamente com um terceiro não identificado, teria imobilizado sansão, amordaçado ele com arame farpado e decepado suas patas traseiras com uma foice[1], deixando-o ali para morrer.

Felizmente, Sansão foi socorrido e após passar por cirurgia, sobreviveu e hoje anda com auxílio de uma espécie de cadeira de rodas.

Dada a brutalidade do caso, Sansão virou um ícone da luta pelos direitos dos animais não só em Minas Gerais, mas no Brasil inteiro. Em razão da repercussão dada ao caso de Sansão, o Poder Legislativo, em um movimento típico do populismo penal, onde o conhecimento especializado é descartado, substituído por debates alimentados emocionalmente e pelo senso comum, acelerou o trâmite do Projeto de Lei 1.095/2019, incluindo o parágrafo 1-A no art. 32 da Lei 9065/98, que já entrou em vigência com a seguinte redação:

Art. 32. (...)

§1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caputdeste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.     (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)

 

2. Histórico Legislativo

Originalmente, o projeto protocolado pelo Deputado Fred Costa (Patriota/MG), era destinado a aumentar a pena para o delito previsto no art. 32 da Lei 9.065/98. Se aprovado nos termos propostos, ao invés de detenção, de três meses a um ano, e multa, o delito passaria a ter pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa. Além disso, o projeto também inseria um parágrafo terceiro ao art. 32, com a seguinte redação:

§3° Os estabelecimentos comerciais ou rurais que concorrerem para a prática de crimes previstos neste artigo poderão incorrer nas seguintes sanções:

I – multa no valor de 1 a 40 salários mínimos;

II – interdição parcial ou total do estabelecimento;

IV – suspensão ou cancelamento da licença ambiental do estabelecimento;

V – perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pela União.

Vê-se que a intenção do propositor era coibir não apenas a prática de maus tratos a animais por indivíduos, mas efetivamente fomentar a punição de estabelecimentos comerciais que, de qualquer forma, concorressem com a prática dos crimes. Isso porque, sabe-se que, na prática, muitos pet shops avalizam e incentivam monetariamente a conduta de canis que funcionam como verdadeiras fábricas de filhotes[2], promovendo a reprodução em loop desses animais em detrimento de sua saúde.

O Relator do Projeto da Câmara dos Deputados, Deputado Celso Sabino (PSDB/BA), após fazer uma longa digressão sobre o passado legislativo da proteção ambiental no Brasil concluiu que tanto a ‘modalidade de sanção prevista, quanto o seu montante, passaram a se tornar injustos, na medida em que não punem adequadamente o infrator, já que foram insuficientes para frear tal prática criminosa, que teve um aumento de grandes proporções’. Contudo, em uma verdadeira bola curva, sem explicar a finalidade ou motivação, o Deputado Celso Sabino propõe que o agravamento da pena se limite aos casos de maus tratos de cães e gatos:

Após análise de sugestões apresentadas por nobres pares desta Casa, realizamos alterações no texto original para adequar a Proposição à pluralidade de ideias abarcadas em um parlamento tipicamente democrático, como o brasileiro.

Assim, por meio do consenso, buscamos garantir a transformação desta proposição legislativa em lei ordinária, de forma que o avanço na legislação de crimes contra os animais ocorra, neste momento, para proteger, especificamente, os animais que mais comumente são adotados como de estimação e estabelecem relação de intimidade com os seres humanos, ou seja, os cães e gatos.

O texto substitutivo foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 16.12.2019 e encaminhado ao Senado, onde aprovado e enviado para sanção presidencial sem alterações.

O parágrafo 3º sugerido pelo propositor, visando punir estabelecimentos comerciais ou rurais que fomentassem as práticas coibidas foi suprimido sem que uma linha de justificativa fosse apresentada.

 

3. Alterações

Após a adoção das alterações propostas durante os debates legislativos, a única inovação promovida pela Lei 14.064/20 foi incluir o parágrafo 1-A no artigo 32 da Lei 9.605/98, criando a figura dos ‘Maus-Tratos Qualificados’.

Essa nova figura não traz nenhum elemento normativo novo à conduta descrita no caput. Ela apenas destaca que se as condutas do caput forem praticadas contra cães ou gatos, a pena será de 02 a 05 anos de reclusão. Assim, as condutas proibidas continuam sendo praticar ‘ato de abuso’, ‘maus-tratos’, ‘ferir’ ou ‘mutilar’ animais.

Como se sabe, essa redação peca, desde sua origem, pela utilização de tipos penais excessivamente abertos e a lei nova nada fez para melhorar essa falha. A respeito, há tempos Guilherme Nucci castiga a violação do princípio da taxatividade com a inaplicabilidade das duas primeiras figuras do art. 32 da Lei 9.605/98:

A infeliz redação provoca a sua inaplicabilidade, devendo o magistrado zelar por isso, jamais aceitando interpretações forçadas, para aplicar um tipo penal inapropriadamente redigido. (...) Entendemos ser impossível aplicar as duas primeiras formas: praticar atos de abuso e maus tratos contra animais silvestres.[3] 

Apesar de não discordarmos, o fato é que a doutrina majoritária dá uma definição, ainda que casuística, aos termos criticados, o que é aceito pela jurisprudência. Assim, de acordo com a lição de Luís Flávio Gomes e Silvio Maciel, ‘ato de abuso’ seria submeter o animal a trabalhos excessivos ou transportá-lo de maneira inadequada, ao passo que ‘maus-tratos’ consistiria na causação de sofrimento ao animal, colocando em risco sua integridade física.[4] e [5]

Quanto ao destinatário das condutas proibidas, o objeto material do tipo, novamente destaca-se uma certa divergência na doutrina. Enquanto o prof. Luiz Flávio Gomes entendia que o objeto material do tipo englobava tanto os animais silvestres quanto os animais domésticos, Guilherme Nucci, por exemplo, entende que o art. 32 limita-se à punição das condutas praticadas contra animais silvestres, ainda que estes tenham sido domesticados[6]. Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça não adotou a limitação proposta por Nucci, admitindo a aplicação da lei em casos de maus tratos a cães (HC 596.472/SP).

A alteração promovida pela Lei 14.064/20 põe uma pá de cal no assunto, afinal, refere-se expressamente à aplicação de pena mais gravosa nos casos em que as condutas forem praticadas ‘cães ou gatos’.

Por fim, em relação ao bem jurídico tutelado, os debates são muito mais profundos e a conclusão depende do ponto de partida filosófico. Enquanto antropocentristas reconhecem nos bens ambientais recursos em favor do homem, protegendo tais bens de forma a garantir que possam continuar satisfazendo nossas necessidades, os biocentristas reconhecem a senciência dos seres vivos, extraindo o bem jurídico ambiental do próprio direito dos animais à proteção de sua integridade física.

Considerando o disposto no art. 225 da Constituição Federal e as demais disposições da Lei 9.605/98, o antroposcentrismo parece ser a hipótese adotada pela legislação[7]. Aliás, o Código Civil, mesmo sancionado em pleno Século XXI, estabelece em seu art. 83 que os animais são considerados bens móveis e não sujeitos de direito. Nesse contexto, a proteção aos animais é levada a cabo de maneira indireta e a nova lei não teve o poder de mudar isso.

Interessantemente, e aí talvez resida a maior incongruência e populismo da nova lei, o legislador aparentemente escalonou a importância dos animais para o meio ambiente em duas categorias valorativamente distintas: a) cães e gatos; b) todo restante da fauna brasileira.

Isso porque, partindo do pressuposto que, para o legislador, mais pena equivale a maior proteção, ao limitar o escopo do parágrafo 1-A aos maus tratos de cães ou gatos, cominando uma pena mínima oito vezes maior do que a do caput, a mensagem é uma só: cães e gatos são mais importantes do que outros animais.

Veja! Após a entrada em vigor da Lei Sansão, cães e gatos, cujo habitat natural é o sofá e cuja contribuição para o ecossistema  é encher sua casa de pelo e seu coração de alegria, são mais importantes para o meio ambiente do que as abelhas, por exemplo, cuja sobrevivência é crucial para vida humana na Terra.

Mesmo o Presidente Jair Bolsonaro, do alto de seu tecnicismo e profundo conhecimento da legislação percebeu a incongruência, mas, cedendo a pressões, sancionou o projeto após cogitar uma enquete no Facebook sobre o tema[8].

 

4. Impactos das Alterações

Logo de início, pode-se apontar que a alteração da espécie da pena privativa de liberdade de detenção para reclusão permite que, nos termos do art. 33, caput, do Código Penal, seja possível doravante fixar o regime fechado para início do cumprimento da reprimenda. Evidentemente isso ocorreria apenas em casos extremos, mas, o fato é que é possível.

Outrossim, a alteração da espécie de pena privativa de liberdade também impacta na modalidade de Medida de Segurança que seria porventura imposta. Isso porque, nos termos do art. 97 do Código Penal, se o fato previsto como crime for punível com detenção, o Juiz, reconhecendo a tipicidade e antijuridicidade do comportamento, deveria determinar a submissão do inimputável a tratamento ambulatorial. Em se tratando de imputação de fato punido com reclusão, é possível determinar a internação em hospital de custódia e tratamento. Não ignoramos que a Lei 10.216/01 impõe restrições à internação, redirecionando (ao menos em teoria) os inimputáveis acusados de crimes ao modelo tratamento ambulatorial, mas, na prática, o tratamento ambulatorial nem sempre é a medida mais conveniente ao Juízo.

Prosseguindo e passando aos efeitos dos novos limites mínimos e máximos de pena, destaca-se que, com a alteração da pena máxima para 05 anos, os ‘Maus Tratos Qualificados’ saem dos Juizados Especiais e passarão a ser processados pelo Rito Ordinário, conforme estabelecido no art. 394, §1, I, do CPP.

Devemos nos atentar que não se trata de mera alteração procedimental, uma vez que a norma é penal e as consequências processuais são reflexas. Ademais, em decorrência do incremento na pena, a transação penal e a suspensão condicional do processo não poderão ser oferecidas. Assim, não há que se falar em aplicação imediata aos processos em curso, nos termos do art. 2, do CPP.[9]

Quanto aos fatos praticados a partir da vigência da nova lei, não haverá possibilidade de transação penal ou suspensão condicional do processo, uma vez que os novos limites mínimos e máximos cominados superam o estabelecido nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95, respectivamente. O Acordo de Não Persecução Penal, no entanto, será cabível nos termos do art. 28-A do CPP.

A alteração na quantidade de pena também impactará também o regulamento das medidas cautelares. Isso porque, desde o advento da Lei 12.403/11, o art. 313 estabelece como sua primeira condição à decretação da prisão preventiva que o crime seja doloso e punido com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos.

Como a punição máxima da figura do caput do art. 32 é de três meses a um ano – o que, reforça-se, não foi alterado – não era possível a decretação da prisão preventiva, salvo casos absolutamente excepcionais. Doravante, ao menos em relação à figura qualificada, esse requisito encontra-se preenchido, já que a pena máxima é de 05 anos.

Igualmente, no que tange à fiança, a partir do momento em que a pena máxima supera 04 anos, não será mais permitido ao Delegado de Polícia arbitrar a fiança, havendo, a partir da semana passada, reserva de jurisdição nos termos do art.322 do CPP. Demais disso, o valor mínimo arbitrável a título de fiança passa a ser 10 salários-mínimos com fundamento no art. 325, II, do CPP.

Por fim, cabe menção a perda da guarda do animal. Talvez a única alteração que faça sentido, desde que, evidentemente, haja um serviço público instituído para dar acolhida aos animais. Afinal, não há como imaginar que o poder Público abandonaria esses animais nas ruas ou os sacrificaria apenas em nome da proteção formal ao bem jurídico.

 

5. Conclusão

A nova lei parece ser bem-intencionada. No entanto, como muitas iguais a ela, padece de uma mácula em sua origem consistente na crença de que o agravamento de penas possui efeito dissuasório.

Pior que isso, como toda norma penal simbólica e populista, produzida a toque de caixa e batizada com um nome midiático, ela simplesmente não se encaixa nas finalidades do próprio direito penal. Veja, quem busca catarse é psicólogo. Norma penal deve ser fruto de um processo racional, reflexivo e cauteloso destinado à proteção de bens jurídicos. Ao se deixar essa finalidade de lado, a norma penal padecerá de um déficit de legitimidade, transformando toda punição dela decorrente em exercício arbitrário de poder. 

Mais além, deve ser apontado que o aumento descomunal da pena tornou o tipo penal ainda mais desproporcional do que ele já era. Assim, se a finalidade da norma penal é a proteção de bens jurídicos e se existe um escalonamento valorativo desses bens jurídicos, é difícil justificar a legitimidade de uma norma de proteção aos animais que possui uma pena 800% maior do que uma norma paralela destinada à proteção de seres humanos (art. 136 do CP).

Espero que meu cachorro não fique bravo comigo por estas considerações. Buweiser é rancoroso.

 

Notas e Referências

GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Meio Ambiente – Lei 9.605, 12.02.1998. in GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (coord). Legislação Criminal Especial. 2ª Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas - Vol. 2. 7ª Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013.

BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Competencia Criminal. 2ª Ed. Juspodivm: Salvador, 2013.

[1] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/07/08/cao-pitbull-tem-patas-traseiras-decepadas-em-confins-na-regiao-metropolitana-de-belo-horizonte.ghtml

[2] Segundo informações da Polícia Militar do Estado de São Paulo, somente no ano de 2018, foram registradas 4.670 denúncias de maus-tratos contra animais em canis em todo o estado, uma média de 13 por dia. fonte: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2019/02/19/policia-ambiental-recebeu-mais-de-46-mil-denuncias-de-maus-tratos-em-canis-no-estado-em-2018.ghtml

[3] Op. Cit. 551

[4] Op. Cit.  875.

[5] Aliás, essa foi a definição adotada pelo Poder Legislativo, já que o Deputado Celso Sabino expressamente a menciona em seu parecer e proposta de projeto substitutivo.

[6] Op. Cit. p.554.

[7] O STJ possui entendimento recente em sentido contrário, ainda que não constitua entendimento majoritário: (...) Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. (REsp 1713167/SP)

[8] Segundo reportagem, o Presidente teria apontado que achava a pena excessiva, mas que precisava ouvir a população. Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/09/10/bolsonaro-contesta-pena-maior-para-maus-tratos-a-animais-e-diz-que-fara-enquete.

[9] Nesse sentido: Renato Brasileiro de Lima, op. Cit., p.27.

 

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