1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa apresentar diversos pontos de vista sobre as apreensões de grande quantidade de dinheiro vivo com base em mera suspeita pela prática de crime, pois o ato de portar consigo esses valores por si só não constitui crime, portanto seria necessário provas adicionais ou ordem judicial.
Além disso, embora o uso de dinheiro digital tenha se tornado um meio mais comum e seguro, muitos ainda não possuem certa familiaridade com essa tecnologia, o que deve ser reconhecido pela PL 3.951/2019, para que garanta mais eficiência a norma, respeitando os direitos constitucionais.
2. ASPECTOS PROPEDÊUTICOS SOBRE O PORTE DE DINHEIRO EM ESPÉCIE
De início, cabe esclarecer que portar uma grande quantia de dinheiro em espécie, por si só, não é considerado crime. Contudo, com o exponencial crescimento do processo de “digitalização” do dinheiro, mediante a utilização de cartões de crédito e de débito, TED, DOC e, mais recentemente, o PIX, e assim por diante, a operação e o porte de dinheiro em espécie tem-se tornado cada vez menos usual.
Por essa razão, a priori, e de forma não legal, o porte e a utilização de dinheiro em espécie possui o condão de levantar suspeita quanto à prática de crimes. Nesse aspecto, há de se atentar no que se refere à legalidade de apreensões judiciais de grande quantidade de dinheiro sem origem aparente com base em meras suspeitas de crime, dado que isso necessitaria de um comando judicial fundamentado para tal ato, em conformidade ao princípio da presunção de inocência disposto no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República e o princípio da legalidade definido no artigo 1º do Código Penal.
Eventualmente apreensões de dinheiro em espécie são realizadas com o pretexto de se instaurar inquérito policial para a averiguação de crimes de tráficos de drogas, corrupção, lavagem de dinheiro, entre outros. Nessa situação, o dinheiro permanece retido em contas judiciais do Estado.
Quando o crime correlacionado com a apreensão de dinheiro versar sobre matéria de competência da Justiça Federal, esses valores deverão ser depositados na Caixa Econômica Federal[1]. Por sua vez, tratando-se de as moedas estrangeiras, essas deverão ser depositadas no Banco Central do Brasil (BACEN).
3. TENTATIVA DE COMBATER A LAVAGEM DE DINHEIRO DEFINIDA NO PROJETO DE LEI N. 3.951/2019
A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), por meio do Projeto de Lei n. 3.951/2019, o qual continua em tramitação no Congresso Nacional, tem trabalhado com o objetivo de dificultar o crime de lavagem de dinheiro. Constatou-se que em diversas operações do Ministério Público e da Polícia Federal, o repasse de valores em espécie é uma das principais formas de lavagem de dinheiro e um dos principais instrumentos de circulação de propinas.
Isso ocorre em razão da difícil tarefa de se rastrear esses recursos, de identificar as origens e o destino. Como justificado no PL, o trânsito de dinheiro em espécie facilita a lavagem de dinheiro oriundo de atividades de corrupção, de sonegação fiscal, além de oportunizar a prática de crimes como roubos e furtos, entre outros.
Entre as iniciativas propostas, pretende-se proibir a circulação de dinheiro em espécie acima de R$ 100 mil reais (ressaltando os transportes realizados por empresas) e a posse (até mesmo residencial) de quantia acima de R$ 300 mil reais.
De forma semelhante, essas medidas já são adotadas em países estrangeiros, como nos Estados Unidos da América, em que as instituições financeiras são obrigadas a comunicar à Unidade de Inteligência Financeira (UIF) todas as transações em espécie acima de 10 mil dólares, assim como, no Canadá e na Austrália. Já em alguns países Europeus, além da comunicação, há restrições ao uso de dinheiro vivo.
4. ENTENDIMENTOS DOS TRIBUNAIS SOBRE O ASSUNTO
Em casos de transporte de volumosa quantia de dinheiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado favorável quanto à legalidade da apreensão dos valores, quando o agente abordado não possui justificativa para tal conduta, visando a efetividade da abertura de inquérito policial, como observar-se-á:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO. RECORRENTE ENCONTRADO COM MAIS DE UM MILHÃO DE REAIS EM ESPÉCIE. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA QUE NÃO SE MOSTRA FLAGRANTE. FISCALIZAÇÃO DE ROTINA REALIZADA PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. APREENSÃO DE AUTOMÓVEL, DINHEIRO E CELULAR QUE DECORRE DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIO DA PRÁTICA CRIMINOSA. AFASTAMENTO. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE NA VIA ESTREITA. 1. O trancamento de inquérito policial ou ação penal pela via eleita é medida excepcional, cabível apenas quando demonstrada, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a manifesta ausência de provas da existência do crime e indícios de autoria. 2. Hipótese em que o próprio recorrente informou aos policiais que dispunha de uma quantia em dinheiro no interior do veículo, tendo os agentes rodoviários federais agido dentro do dever de fiscalização regular, inerente às funções legais. 3. Em se tratando do flagrante de transporte de vultosa quantia em dinheiro e não tendo o recorrente logrado justificar o motivo de tal conduta, não há que se falar em ausência de justa causa para as investigações. Ademais, conforme informado pelo Juízo de primeiro grau, as diligências necessárias encontram-se em pleno andamento, faltando a perícia no celular apreendido, e pendem as informações solicitadas à Receita Federal, circunstâncias que demonstram ser prematuro o trancamento do inquérito policial. 4. A apreensão dos bens (automóvel, celular e valores em espécie) decorre da própria investigação, não havendo possibilidade de restituição enquanto não afastada a ocorrência de crime. 5. Afastar a possibilidade da prática do crime de lavagem de dinheiro, para fins de trancamento das investigações, demandaria reexame de provas, inviável na via eleita. 6. Recurso em habeas corpus improvido.
(STJ - RHC: 142250 RS 2021/0033041-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 28/09/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/09/2021 – grifo nosso)
Portanto, observa-se que, antes mesmo do PL ser aprovado, já existe entendimento jurisprudencial discutindo esse assunto, porém, ainda não há uma regulamentação certa de qual a quantidade que não poderia circular, sendo levado apenas pelo contexto dos fatos, o que gera uma lacuna acerca do tema e uma insegurança jurídica.
Na prática, faz-se necessário um juízo de valor pelo agente policial sobre os motivos que levaram o indivíduo a estar circulando com determinada quantia em dinheiro vivo, analisando a possível suspeita de crimes relacionados. Se julgar fundamentada suspeita, deve-se instaurar a abertura de inquérito policial junto a apreensão do dinheiro encontrado.
Vale ainda destacar que em fases investigativas o Ministério Público e a polícia somente podem realizar apreensões em caso de flagrante delito ou via decisão judicial, isto para que limite os poderes investigativos estatais resguardando assim os direitos fundamentais do indiciado.
Pois o Ministério Público e a polícia deverão buscar outras provas que corroborem, sendo somente a quantidade de dinheiro encontrado, por si só, não caracteriza crime e sim mera suspeita, portanto não deve ser feita a apreensão por não haver decisão judicial e tão pouco ser situação de flagrante delito.
Nesse aspecto, em uma análise prática sobre o Projeto de Lei n. 3.951/2019, pode-se questionar algumas situações que podem gerar certas condutas temerárias. Como exemplo, suponha-se que um empresário acabou de sair do fechamento de caixa de sua empresa e transporta consigo uma quantia de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais). Nessa hipótese, o artigo 7º do PL determina a vedação do trânsito de recursos em espécie em valores superiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Nota-se aqui que o empresário deverá se equivaler da segunda parte do caput do referido artigo, justificando a origem e a destinação lícita do dinheiro. Não obstante, dependerá da agilidade dos agentes públicos que atuaram na investigação para que liberem o dinheiro, causando assim diversos danos e prejuízos na empresa pela falta do caixa.
Mais a fundo, verifica-se que a um certo tipo de coação ou indução para que a pessoa que tenha mais de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) guardados em casa, mantenha o seu dinheiro armazenado em uma instituição bancária, pois, caso contrário, o valor será confiscado por força do § 4º, do artigo 8°, do PL, podendo causar os mesmos efeitos do exemplo anterior.
5. CONCLUSÃO
Conclui-se que os valores só poderão ser apreendidos quando houverem outras provas que corroborem com a suspeita de prática delituosa, em razão de que somente o fato de encontrar grande quantidade de dinheiro em espécie não é um crime. Logo, o simples fato da suspeita de crime não é suficiente para gerar uma apreensão indevida dos valores portados pelo indivíduo.
Por mais que com o avanço da tecnologia o uso do dinheiro digital ficou usual e, de certa forma, mais seguro, não pode ser descartado que determinadas pessoas não possuam familiaridade com os meios digitais. Dessa forma, não seria legítimo obriga-los a guardar o seu dinheiro em uma instituição financeira sob pena de apreensão.
Por conseguinte, o Projeto de Lei n. 3.951/2019 é de certa forma eficaz ao estabelecer limites de circulação de dinheiro em espécie, viabilizando a abertura de inquérito policial quando se há suspeita de crimes. No entanto, a apreensão deverá ocorrer somente quando corroborada com outras provas já obtidas ou mediante determinação judicial. Caso contrário, tais normas irão de encontro ao princípio in dubio pro reo, que não cabe ao indivíduo apresentar destinação do dinheiro e sim aos agentes públicos demonstrarem uma real suspeita.
Notas e referências
[1] art. 1º, inciso I, e art. 2º do Decreto-Lei nº 1.737, de 20 de dezembro de 1979.
BRASIL. Projeto de Lei n. 3.951, de 2019. Senado Federal: Brasília, 2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7977364&ts=1674175438415&disposition=inline&_gl=1*br11rb*_ga*MTUyODYyNDIwNS4xNjg2NjIzMDM4*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5MDc2MDA0MS4yLjAuMTY5MDc2MDA0MS4wLjAuMA... Acesso em: 30 de jul. de 2023.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC: 142250 RS 2021/0033041-8. Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 28/09/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/09/2021. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1298978610>. Acesso em: 30 de jul. de 2023.
Imagem Ilustrativa do Post: Dinheiro. // Foto de: Artur Luiz // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/artur_fotos/19680388513
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode