Por Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth – 17/04/2017
“Las personas malvadas existen. Nada es útil, excepto separarlas de las personas inocentes.”
J. Q. Wilson
1 INTRODUÇÃO: A POLÍTICA CRIMINAL ATUARIAL, AS NOVAS TECNOLOGIAS E A NOÇÃO DE EFICÁCIA NA PERSECUÇÃO CRIMINAL
Na história do pensamento penal da humanidade forjam-se diversas teorias e discursos, desde aqueles que negam qualquer justificativa à coerção penal do indivíduo, denominadas doutrinas abolicionistas, até as que procuram justificar, a partir de perspectivas absolutas (retribucionistas) e relativas (utilitaristas), o jus puniendi estatal.
Numa síntese apertada pode-se referir que as chamadas teorias absolutas dão à sanção penal a finalidade de retribuição ou resposta ao delito, justificando a atividade penal estatal a partir da necessidade de apresentação de reação coerciva frente às condutas consideradas delitivas: punitur quia peccatum est (pune-se porque pecou). As teorias relativas tratam a medida sancionatória como instrumento voltado a prevenir os atos delituosos: punitur ut ne pecetur (pune-se para que não se peque). Por isso também são chamadas de doutrinas utilitaristas ou preventivas, as quais podem ser enquadradas em duas grandes orientações: prevenção geral e prevenção especial.
Nas doutrinas da prevenção geral compreende-se que a pena deve ser aplicada ao indivíduo objetivando a intimidação da sociedade (prevenção geral negativa) ou buscando a adesão social ao ordenamento (prevenção geral positiva). As doutrinas da prevenção especial carregam a ideia central que a pena dirige-se ao indivíduo: num sentido positivo (transformador) ou num sentido negativo (neutralizador).
Importante referir que na Modernidade tais doutrinas de justificação da sanção penal e mais especificadamente da pena privativa de liberdade foram construídas, bem como (des)legitimadas, acompanhando o movimento de ideias filosóficas e criminológicas que transcorrem num vínculo indissociável com a organização do poder político e econômico. É neste sentido que se pode agregar, na contemporaneidade, a estas concepções clássicas, aquilo que pode ser chamada de “nova penalogia” que vem sendo delineada pelo modelo neoliberal, fazendo surgir a chamada Política Criminal Atuarial que, na visão de Brandariz García (2007, p. 81) se afigura como “la teorización que mejor ha captado, y analizado, el sentido de buena parte de las respuestas que en materia de control social se dan a los retos sistémicos del presente”.
Com efeito, o modelo neoliberal apoia-se na lógica econômica. A partir de números e estatísticas que permitem a avaliação mesurada de objetivos quantitativos, e que lhe proporcionam vislumbrar uma decisão totalmente racional, busca-se por meio da pena atingir objetivos econômicos.
Assim, se no modelo clássico o crime era visto como uma desautorização do soberano (ou de Deus) e, no modelo social o crime é compreendido como o fruto de um espírito doente, de um determinismo social, no modelo neoliberal a criminalidade é compreendida enquanto fruto de um erro de cálculo, de um erro de antecipação. Como assevera Garapon (2010), o presente deixa de ser o tempo de referência, cedendo lugar ao futuro, mas um futuro antecipado e planejado nas suas mais negras possibilidades.
O surgimento da Política Criminal Atuarial revela, então, a passagem de um modelo que buscava punir, intimidar ou reabilitar indivíduos – conforme a doutrina clássica de justificação da pena seguida – para um modelo que tem por objetivo “utilizar a pena criminal para o sistemático controle de grupos de risco mediante neutralização de seus membros salientes, isto é, a gestão de uma permanente população perigosa, pelo menor preço possível.” (DIETER, 2013, p. 100, grifos do autor).
No modelo anterior, a ideia de punição estava relacionada à intenção de aperfeiçoamento da ordem social por meio do desenvolvimento do trabalho de integração social, ou seja, buscava-se a mudança nos valores e atitudes dos delinquentes de maneira a (re)alinhá-los aos códigos normativos vigentes. Na contemporaneidade, a ordem social é abordada como um problema de integração do sistema, de modo que não são mais as pessoas que precisam ser integradas, mas os processos e arranjos sociais nos quais habitam. Logo,
em vez de tratar de seres humanos e de suas atitudes morais ou disposições psicológicas, as novas criminologias tratam das partes integrantes dos sistemas e das situações sociais. Elas imaginam como as situações podem ser redesenhadas de forma diferente ao fito de criarem menos oportunidades para o crime; como os sistemas interativos (transportes, escolas, lojas, áreas de lazer, habitação, etc.) podem convergir para criar menos pontos vulneráveis ou situações visadas do ponto de vista criminológico. Para estas correntes, a ordem social é uma questão de alinhar e de fazer interagir as diversas rotinas e instituições sociais que compõem a sociedade moderna. É um problema de assegurar a coordenação – fazer os trens andar na hora certa – e não de construir um consenso normativo. (GARLAND, 2008, p. 388).[1]
Dentro dessa lógica, parte-se da constatação de que há poucos delinquentes habituais de existência inevitável e natureza incorrigível, que são os responsáveis pela maioria dos crimes registrados. Paralelamente, desaparece a ideia de que a criminalidade é uma patologia que pode ser afrontada com “tratamentos” adequados e prioriza-se a compreensão de que a delinquência é um fenômeno social normal. Nesse quadro, as palavras de ordem são “gestão” e “distribuição” de riscos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007).
Em um contexto tal, assume relevância apenas construir um perfil dos criminosos (perigosos), de modo que eles possam ser identificados e classificados pelos agentes da repressão penal e, reflexamente, neutralizados pelo maior período de tempo possível dentro do sistema prisional, o que promoveria uma drástica redução dos índices gerais de criminalidade sem que reformas estruturais ou grandes investimentos em segurança pública fossem necessários. Basta, nesse sentido, viabilizar a incapacitação física de segurança máxima para os criminosos reincidentes e a vigilância virtual e tecnológica de baixo custo para os delinquentes eventuais (DIETER, 2013).
Na realidade norteamericana – onde os discursos atuariais foram gestados e “vendidos” ao restante do mundo como panaceia para a gestão da criminalidade – esse câmbio de perspectiva foi o grande responsável por “salvar” a prisão, mais uma vez, de suas contradições performáticas: a penitenciária volta a se afirmar “como instituição indispensável para o controle social exclusivo dos piores membros das classes perigosas, desta vez ressignificados pela retórica do risco.” (DIETER, 2013, p. 102)[2]. A lógica econômica que subjaz a este pensamento é evidente: a partir da ideia de incapacitação dos criminosos habituais de alto risco, evita-se que as vagas nas prisões sejam ocupadas pelos delinquentes eventuais ou habituais de baixo risco. Para tanto, basta que perfis seguros sejam traçados. Não se mostra imprescindível nenhuma alteração legislativa ou investimento público substancial em matéria de segurança.
Isso significa que, da ideia de “má intenção”, o Direito Penal neoliberal passa a se preocupar majoritariamente com a “imprudência”, o “defeito de vigilância”, o que significa, em última análise, a preocupação com a falta de antecipação do controle. Garland (2008) observa que, se no passado a criminologia oficial se preocupava com o crime de modo retrospectivo e individual, de modo a isolar o ato ilícito individual e atribuir-lhe uma pena ou um tratamento, hoje o crime é visto de modo prospectivo, e em termos agregados, como forma de calcular riscos e estabelecer medidas preventivas. Segundo Garapon (2010), a partir dessa perspectiva, se uma lei é transgredida, o dano objetivo a que visa o Direito Penal neoliberal é um suposto resultado de uma má avaliação do risco, de uma falta de vigilância.
A Política Criminal Atuarial, nesse sentido, aplica aos comportamentos humanos as técnicas estatísticas desenvolvidas para as finanças e os seguros para calcular os riscos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007; GARAPON, 2010). De acordo com o estudo realizado por Dieter (2013, p. 139, grifos do autor) acerca do tema,
o prognóstico atuarial [...] fundamenta-se na vinculação de um sujeito a um grupo de risco pelas características que compartilham, apostando-se na provável reprodução dos padrões de comportamento dessa coletividade com a qual foi associado em função da regularidade geral do comportamento humano, quantitativamente demonstrada: em vez de sintomas, os atuários procuram fatores salientes que determinam estatisticamente o maior risco de um comportamento.
A ideia é viabilizar a neutralização eficiente dos grupos considerados perigosos, ou seja, “os violentos com forte tendência à reincidência”, que passam a ser considerados – novamente na léxica norteamericana – “predadores sociais” e que se transformam, em razão disso, em “alvo prioritário de todo o aparelho punitivo.” (DIETER, 2013, p. 113-114). Como pano de fundo dessas práticas, evidencia-se a preocupação cada vez maior com o “custo” da justiça e com a necessidade de contenção dos gastos públicos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007), afinal, “ao contrário dos profissionais de saúde, os atuários não têm, em princípio, compromisso ético com o tratamento do sujeito e, por isso, não precisam explicar a prática de atos violentos. Basta prevê-los.” (DIETER, 2013, p. 140).
Essa nova penologia que se funda sobre a Política Criminal atuarial consiste em encontrar as características recorrentes de um comportamento humano para melhor preveni-lo. Adota-se uma perspectiva gerencialista que perpassa por três etapas: primeiramente, é preciso identificar os indivíduos com “perfil de risco”; em segundo lugar, é necessário classificar esses indivíduos em busca dos que efetivamente podem ser considerados “perigosos” ou de “alto risco”; por fim, é imprescindível a criação de mecanismos para neutralizar esses indivíduos pelo maior período de tempo possível, sem se preocupar com questões relacionadas à sua ressocialização (DIETER, 2013).
Nesse sentido, se o perfil do predador sexual, por exemplo, é predefinido por uma dezena de características objetivas, a polícia e demais órgãos que integram o sistema punitivo irão se concentrar sobre esses perfis e relaxar a vigilância sobre os demais. Esse exemplo evidencia a tônica da Política Criminal Atuarial: ao aplicar aos comportamentos humanos as mesmas técnicas de previsão que aquelas desenvolvidas para analisar os riscos, ela postula que os criminosos devem ser tratados como seres racionais, o que significa um apagamento antropológico do criminoso (GARAPON, 2010).
De fato, assiste-se a uma repristinação das teses da “escolha racional” que há muito haviam sido descartadas pelas teorias positivistas e sociológicas do crime. A conduta criminosa deixa de ser compreendida como produto de influências sociais ou psicológicas que tornam o indivíduo não totalmente senhor de seu comportamento para idealizar o crime como resultado de uma conduta calculada, utilitária, que resulta de um processo ativo de escolha individual. O problema do crime passa a ser visto como uma questão de oferta e demanda, na qual a pena opera como um mecanismo de regulação do preço. Os delinquentes são vistos como “oportunistas racionais ou contumazes, cuja conduta é irregularmente sofreada ou impulsionada de acordo com a manipulação de incentivos – abordagem que faz das penas intimidatórias um instrumento evidente de redução do crime.” (GARLAND, 2008, p. 278).
Com efeito, na medida em que transfere ao Direito Penal o modelo do mercado, o neoliberalismo atualiza um sentido muito antigo da pena, que se inscreve dentro da dialética da dívida e do pagamento. Os autores contemporâneos propõem repensar a pena de acordo com o modelo do mercado. Ela é compreendida como o preço de certas ações, particularmente arriscadas, preço que deve ser fixado pelo Direito Penal e por uma aplicação previsível da lei pelos tribunais, para permitir ao delinquente fazer escolhas estratégicas (GARAPON, 2010).
Nessa lógica, não se nega peremptoriamente a existência de dimensões extra-econômicas no homem. No entanto, considera-se que estas dimensões não são suscetíveis de uma mínima racionalidade e que, por isso, devem ser ignoradas. Assim, abandona-se qualquer pretensão normalizadora dos sujeitos, uma vez que a Política Criminal Atuarial “desatiende las causas personales o sociales de su comportamento y renuncia a las medidas de tratamiento. Su finalidad fundamental es la gestión del riesgo, y para ello, se concentra en la neutralización de la peligrosidad de determinados sectores.” (BRANDARIZ GARCÍA, 2007, p. 86).
Aqui reside aquilo que Garapon (2010) considera a grande catástrofe do método atuarial, qual seja, a completa descontextualização e a-historicização dos eventos, o que permite falar no surgimento de uma “criminologia do fim da história”, já que a criminologia neoliberal não tem mais a ambição de reabilitar os criminosos, configurando-se como um modelo que perdeu toda a esperança de mudar o mundo e que demanda aos indivíduos apenas “adaptação”. De modo diferente ao modelo disciplinar que era ao mesmo tempo segregativo e assistencialista, a governança neoliberal repousa sobre um modelo adaptativo e eficientista.
2 PENAS AMBULATÓRIAS: NOVAS TECNOLOGIAS E A IDEIA DE VIGILÂNCIA E INCAPACITAÇÃO SELETIVA DOS PREDADORES
Se uma das características principais da penalogia neoliberal é a antecipação de um futuro planejado nas suas mais negras possibilidades, não se pode desconsiderar que, paralelamente a isso surge no bojo dos discursos atuariais a necessidade de cada vez mais se utilizar no campo da persecução penal inovações tecnológicas que permitam, em primeiro lugar, elucidar crimes e, em segundo, tornar a pena mais eficiente em seu intuito de incapacitação seletiva dos criminosos considerados perigosos e incorrigíveis.
Garapon (2010) refere, como exemplo privilegiado desse processo, a larga utilização do detector de mentiras, que configura, na sua ótica, o tipo ideal de inovação que agrada ao neoliberalismo, porque encarna o reforço mútuo entre mercado, verdade e justiça. A relação é de retroalimentação: a necessidade de justiça estimula o mercado, que a seu turno melhora a eficácia e a fiabilidade da prova. Os bancos de perfis genéticos criados para fins de investigação criminal – que serão analisados na sequência – também podem ser compreendidos como uma manifestação desta lógica.
De antemão, várias questões podem ser suscitadas: quem pagará por essas provas cada vez mais caras? Não serão elas responsáveis pelo aumento da desigualdade entre as partes em um processo? Não configura ingenuidade crer que elas irão fazer minguar o debate judiciário?
De fato, além do incremento da seletividade punitiva – considerando-se que poucos acusados efetivamente poderão dispor de provas onerosas em seu favor – as provas obtidas por meio dos avanços tecnológicos não permitirão jamais fazer economia do debate judiciário: como observa Garapon (2010), elas no máximo trocarão apenas o objeto desse debate, que será colocado sobre a fiabilidade dessas novas ciências, o que se pôde observar, recentemente, no Brasil, a partir da utilização de um detector de mentiras no depoimento de Leandro Boldrini, médico acusado de arquitetar e executar, juntamente com sua companheira, a morte do filho. Trechos da conversa entre o acusado e o “técnico em veracidade” Mauro Nadvorny diante do detector de mentiras foram amplamente divulgados pela imprensa. Neles, o réu afirma sua inocência ao reiterar que não foi o mentor do crime e que tampouco não sabia dos planos da sua companheira (madrasta da vítima). O debate que se travou acerca da prova reside justamente na fiabilidade do método utilizado: o inspetor Demétrio Peixoto, perito em veracidade do Gabinete de Inteligência da Polícia Civil e responsável pelo uso do único detector de mentiras da corporação, mencionou que o equipamento consegue determinar quase 100% das situações em que o entrevistado fala a verdade e 95% das que fala mentiras. Mas nesse caso específico o inspetor estranhou que tanto o médico quando os demais acusados pela morte do menino tenham se recusado a se submeter ao detector durante o inquérito que investigou o caso. Entrevistado, o inspetor afirmou que “para nós fica gritante que oficialmente não quiseram se submeter ao detector e agora não sabemos como surge uma oferta à Justiça de material colhido por iniciativa particular [...]. Como não faz sentido, para nós é caso de descrédito.”[3]
Mas a Política Criminal Atuarial não se limita a utilizar das novas tecnologias na fase investigativa. É cada vez maior, também, a utilização de inovações tecnológicas na sugestão de “novas penas”, invariavelmente voltadas à incapacitação seletiva dos delinquentes considerados perigosos. Particularmente nos casos envolvendo delitos sexuais essa tendência já é realidade em alguns países.
Com efeito, o objetivo da proteção contra uma periculosidade intrínseca, encarnada pela figura do “predador sexual” ou “pedófilo”, suplanta o de retribuição moral de um ato passado bem como o de educação dos desviantes. Seu único objetivo, em uma palavra, é a neutralização. A reação mais inteligente não consiste na anulação das consequências de um ato, mas sim fazer tudo para preveni-lo. A pena neoliberal, nesse sentido, não tem por finalidade a retribuição, a vingança, a educação ou a eliminação: sua finalidade – observa Garapon (2010) – é de ordem preventiva.
A possibilidade de “castração química” – expressão que designa uma regulação medicamentosa da libido[4] – é um excelente exemplo desse processo, dado que a pena consiste em inibir o centro do poder masculino mas sem tocar o corpo, porque ela usa para isso a ciência. Em realidade uma neutralização máxima, a castração química cumula as funções repressiva e preventiva da pena: ela é ao mesmo tempo uma medida de segurança e punição. Nesse caso, o medicamente não visa ao cuidado, mas à inibição temporária do sintoma. O efeito esperado da pena resulta de uma causalidade na natureza (a química) e não de um compromisso, de uma promessa. Quer dizer: a pena não fala mais à razão, nem faz mais apelo ao senso moral, mas localiza a sede do mal que será assim o alvo da prevenção: o desejo. A causa do comportamento perigoso é pesquisada no excesso de testosterona, ao que se induz uma resposta de ordem molecular; não há mais nenhuma dimensão moral: o crime é trazido de volta a uma causa estritamente fisiológica. E tudo isso é coerente com o postulado neoliberal que situa a determinação do comportamento dentro do orgânico ou da genética (GARAPON, 2010)[5].
Além disso, no caso dos delinquentes sexuais, uma das medidas utilizadas pelo governo norteamericano para a prevenção eficaz desse delito é a criação do registro nacional compulsório de todos os indivíduos que foram processados ou condenados por crimes sexuais. Bancos de dados online contendo dados dos delinquentes sexuais foram criados e estão à disposição de todos para consulta irrestrita na Internet[6]. O estopim da criação desses bancos foi o estupro e a morte de uma menina norteamericana, Megan Kanka, por um vizinho que morava em frente à sua casa e possuía antecedentes pela prática de crimes sexuais sem que ninguém na vizinhança soubesse. A chamada “Lei de Megan”, em vigor desde 1994 no estado de Nova Jérsei – e que serviu de justificativa para uma emenda na Lei Wetterling, que tornou obrigatório o registro de pessoas condenadas por crimes sexuais em todos os 50 estados norteamericanos – , dispõe que “o rol de delinquentes sexuais deve estar disponível para consulta online, permitindo que qualquer cidadão tenha acesso aos dados pessoais (nome, altura, peso, tatuagens e sinais particulares, etc.), certidão de antecedentes, fotografias e endereço dos cadastrados”, com o objetivo de que “todos possam saber se no seu bairro ou rua residem pessoas com passagem pelo sistema de justiça criminal em função de crimes de natureza sexual”, sendo que “no caso de indivíduos considerados de alto risco a notificação dos futuros vizinhos sobre a iminência de sua saída do sistema prisional é compulsória.” (DIETER, 2013, p. 127).
Além disso, Dieter (2013) menciona a criação de stands em feiras estaduais e grandes eventos públicos que objetivam ensinar a população a utilizar esses bancos de dados, bem como sites que permitem o envio de mensagens instantâneas (SMS) ao celular do ex-condenado por delitos sexuais “sugerindo” que ele evite determinados locais ou pessoas, sob ameaça de ser denunciado à polícia. O sobredito autor também menciona o surgimento das chamadas “zonas livres de criminosos sexuais”, ou seja, políticas de urbanismo que proíbem que pessoas condenadas por delitos sexuais residam em determinadas áreas e que submetem os interessados na aquisição de imóveis a um rigoroso processo de seleção[7].
Resultado desse processo é uma extrema exposição, humilhação e perseguição pública dos indivíduos que praticaram delitos sexuais, que os conduz à escolha de uma dentre as seguintes opções: a) assunção do rótulo e reincidência delitiva; b) viver na ilegalidade para não ser reconhecido e evitar a execração pública; c) suicidar-se diante da impossibilidade de coexistência em sociedade. Como assevera Dieter (2013, p. 128-129), “a prática decorrente da medida de controle social pode muito bem favorecer a reincidência, pois apenas a última opção não redunda em novo encarceramento; última opção, aliás, que melhor realiza a vontade final de neutralização reitora da política pública de registro compulsório.”
Uma outra medida que pode ser analisada como exponencial dentro do marco da Política Criminal Atuarial é a utilização do monitoramento por braceletes/tornozeleiras eletrônicas. Isso porque esses mecanismos são compreendidos como uma maneira de resolver a equação posta pelo aumento da repressão, por um lado e, de outro, para manter as prisões habitáveis, não muito lotadas, contendo, reflexamente, os orçamentos, o que evidencia, novamente, a lógica econômica que subjaz à penologia neoliberal. Efetivamente, o monitoramento eletrônico viabiliza o acompanhamento de um detento em sua residência, além de traçar todos os seus deslocamentos[8], com o mínimo de esforço e dispêndio financeiro possível.
No Brasil, desde junho de 2010, quando foi publicada a Lei nº 12.258/2010, admite-se a utilização dessa tecnologia. Referida lei, além de provocar mudanças nas regras de saída temporária de presos, alterou a redação da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), de forma a permitir o monitoramento eletrônico de condenados do regime semiaberto quando em saída temporária, bem como dos que estiverem em prisão domiciliar.
Embora muito diferentes, estas medidas apresentam muitos pontos comuns: elas são penas que não causam sofrimentos físicos, e que minimizam a interferência com a mobilidade do indivíduo. São penas que seguem o rastro do indivíduo, que aderem à sua pele e até mesmo penetram em seu organismo. São penas incorporadas. O sujeito não pode se separar de sua pena. Elas são penas não localizadas e ambulatórias, que seguem o indivíduo, que o acompanham o tempo todo (GARAPON, 2010).
O fato é que, em todos os casos, a liberdade se converte em um instrumento de dominação – o que se evidencia na verdadeira “caça às bruxas” que se verifica na realidade norteamericana no que concerne ao processo de estigmatização dos “predadores sexuais”. Isso permite constatar o surgimento de uma nova espécie de “morte social” do indivíduo que, como se demonstrará na sequência, é potenciada quando se permite a utilização de bancos de perfis genéticos para fins de investigação criminal, sem critérios jus-filosóficos apropriados para mensuração das condições de possibilidade para o manejo adequado dessas informações.
3 ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS ACERCA DA CRIAÇÃO DE BANCOS DE DADOS DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL: SEUS CONTORNOS BIOPOLÍTICOS, A TENSÃO ENTRE EFICIÊNCIA NO EXERCÍCIO DO JUS PUNIENDI ESTATAL E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO ACUSADO A PARTIR DA LÓGICA DA IMUNIZAÇÃO
A possibilidade de utilização de bancos de dados de perfis genéticos na investigação criminal pode ser considerada como uma das inovações na seara das práticas punitivas que melhor atende aos postulados da lógica atuarial. Em primeiro lugar, porque viabiliza um grau de certeza na identificação dos autores de fatos delituosos até pouco tempo inimaginável; em segundo lugar, porque pressupõe uma economia considerável de tempo e de dinheiro, em comparação ao investimento necessário para a investigação por métodos tradicionais; por fim, porque serve para a criação de “perfis” de determinados delinquentes, o que viabiliza um maior controle sobre estes estratos, com um mínimo de esforço.
Com a finalidade de identificar os autores de fatos delitivos tem sido criados bancos de dados genéticos em diferentes países, como nos Estados Unidos, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte, Suécia, Holanda, França, Itália, Áustria, Eslováquia, República Tcheca, Bélgica, Hungria, Suíça, Croácia, Polônia, Alemanha e Espanha. As experiências até o momento realizadas nesses países em sede de investigação criminal tem apresentado resultados bastante positivos no que se refere à identificação de pessoas, tanto as desaparecidas, quanto de delinquentes e vítimas.
No Brasil, a identificação genética foi viabilizada por meio da Lei nº 12.654/2012, que alterou as Leis nº 12.037/2009 e 7.210/1984, ao prever a possibilidade de coleta de material genético como forma de identificação criminal.
No caso da Lei nº 12.037/2009, foi incorporado um parágrafo único ao art. 5º para viabilizar a utilização da identificação por meio do DNA. Outrossim, o art. 5º-A foi incorporado ao texto legal para regulamentar o armazenamento e tratamento dessas informações. O caput do dispositivo reza que “os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.” Os parágrafos 1º a 3º do dispositivo em comento preconizam que as informações genéticas armazenadas “não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero”. Além disso, estabelece-se que os dados constantes dos bancos serão mantidos em sigilo, bem como que “as informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.” Os arts. 7º-A e 7º-B, também incorporados à Lei nº 12.037/2009 pela Lei nº 12.654/2012 estabelecem, respectivamente, “a exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito” e que “a identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.” O regulamento em questão se deu por meio da instituição, por meio do Decreto nº 7.950/2013, do Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos.
No que se refere à Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais), houve a incorporação do art. 9º-A, que estabelece que os condenados por crime dolosamente praticado com violência de natureza grave contra pessoa, bem como os autores de crimes considerados hediondos (nos termos do art. 1º da Lei nº 8.072/1990) serão compulsoriamente submetidos à identificação genética, mediante extração de DNA com o emprego de técnica adequada e indolor. O parágrafo primeiro reitera o disposto no art. 7º-B da Lei 12.037/2009 e o parágrafo segundo dispõe que “a autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.”
É importante referir, aqui, que o genoma humano constitui o conjunto de todo o material genético, ou seja, de todos os fatores hereditários da pessoa contidos nos cromossomos, entendendo-se que todas as células do organismo humano contêm essa informação. Trata-se de uma informação genética de caráter “tridimensional”, pois abarca ao mesmo tempo um aspecto individual, familiar e universal.
Como salienta Nicolás Jiménez (2006), o genoma de um indivíduo abarca tanto um elemento material – qual seja, a base física (molécula de DNA) – quanto um elemento imaterial – que são as informações que esses genes portam. A informação genética, por ser única, distingue uma pessoa das demais, revelando características específicas de um indivíduo que o singularizam frente a qualquer outro, permitindo sua identificação. Além disso, essas informações podem revelar características da família biológica do investigado, ou seja, sobre suas gerações anteriores e posteriores. É possível, com isso, caracterizar determinados grupos de pessoas (comunidades étnicas). Deve-se somar a isso o fato de que os dados genéticos, além de estar presentes em praticamente todas as células do organismo, são imodificáveis, ou seja, permanentes e inalteráveis, acompanhando o indivíduo ao largo de sua vida (e até mesmo após a morte), salvo no caso de mutações genéticas espontâneas ou decorrentes da engenharia genética (GUERRERO MORENO, 2008).
Em razão dessas características, a informação genética, juntamente com os avanços científicos, faz com que os seres humanos se tornem mais vulneráveis e transparentes. Essa transparência, quando tais informações são manejadas de modo inadequado, “posibilita claramente el control de los individuos, con el consiguiente menoscabo de su autonomía y derechos, fundamentalmente por las posibilidades de utilizar el perfil genético para discriminar a las personas en las más diversas facetas de su vida.” (GUERRERO MORENO, 2008, p. 224). Tratam-se, portanto, de dados que têm uma especial incidência na vida privada, e que podem representar um risco para práticas discriminatórias (GARRIGA DOMÍNGUEZ, 2004).
Quer dizer: por detrás da utilização desses dados, há sempre um receio de criação de castas ou grupos de exclusão com base em deficiências genéticas e/ou criação de perfis de indivíduos com maior propensão à prática de uma determinada modalidade delitiva (o que poderia significar um adiantamento da intervenção do sistema penal no sentido de evitar que esse “risco” se converta em situações concretas de perigo). Exsurge desse contexto o alerta de Álvarez González (2007) no sentido de que frente às vantagens da utilização de bancos de perfis genéticos existe a necessidade de se construir limites a essa utilização, quando se considera que “los datos genéticos son datos extremadamente sensibles, pues no solo informan acerca de las posibles enfermedades y características de un individuo, sino que constituyen probablemente uno de los aspectos más íntimamente relacionados con su dignidad, su identidad y con su personalidad.” (ÁLVAREZ GONZÁLEZ, 2007, p. 20).
Em função disso, se por um lado, o desenvolvimento das tecnologias da informação e de conhecimento sobre o genoma humano e sua aliança com o Direito Penal pode redundar em resultados positivos no que se refere à identificação de delinquentes e vítimas, por outro lado, se esses dados não forem utilizados de forma adequada, colocam-se em risco os direitos e garantias fundamentais do ser humano. Afinal, qualquer tipo de prova contra o réu que dependa (ativamente) dele – e no caso da Lei nº 7.210/1984, como se demonstrou, a coleta do material genético é obrigatória – só vale se o ato for levado a cabo de forma voluntária e consciente. A garantia de não declarar contra si mesmo encontra-se, dentre outros documentos internacionais, no art. 8º, 2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Já no âmbito interno, esse direito encontra-se expressamente previsto na Constituição Federal (art. 5º, inc. LXIII).
Além disso, a Política Criminal Atuarial, ao se apropriar da técnica de coleta de dados genéticos para fins de aprimorar a persecução penal representa o nascimento de uma nova versão do “biopoder”, ou seja, o controle/poder sobre a vida, que se revela, in casu, a partir do acesso ao DNA das pessoas, vasculhando-o para fins de produção probatória no processo penal.
Com efeito, na concepção de Foucault (2010, p. 201), a biopolítica, ou seja, a “assunção da vida pelo poder” ou “estatização do biológico” representa um câmbio importante em relação à teoria clássica da soberania: se na teoria clássica da soberania o soberano, ao deter o poder em relação à vida e à morte do súdito, poderia fazê-lo morrer ou deixá-lo viver, a biopolítica é o fenômeno que vai completar esse velho direito de soberania “com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer.” (FOUCAULT, 2010, p. 202).
Na mesma linha de raciocínio, “pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte.” (FOUCAULT, 2012, p. 150). Trata-se de um poder que “gerencia a vida”, um poder que tem por objetivo o saneamento do corpo da população de modo a depurá-lo de todas as infecções internas. O biopoder é exercido sobre a vida, fixando-se ao longo de todo o seu desenrolar. É por isso que, segundo Esposito (2006, p. 7), em sua formulação mais genérica, a biopolítica refere-se à “implicación cada vez más intensa y directa que se estabelece, a partir de cierta fase que se puede situar en la segunda modernidad, entre las dinámicas políticas y la vida humana entendida en su dimensión especificamente biológica.”
Segundo Foucault (2003, p. 80), foi o desenvolvimento do capitalismo que ocasionou essa “entrada” da vida humana na história. No sistema capitalista de produção, instrumentalizar o saber sobre a vida é imprescindível, uma vez que viabiliza tanto o controle quanto a inserção das pessoas nos processos de produção. Há, com isso, um ajuste dos fenômenos naturais (nascimento, reprodução, morte) aos processos econômicos. O objetivo é controlar as consequências dos fenômenos naturais de modo que elas signifiquem ganhos econômicos. Segundo Barbosa (2013, p. 5), “em lugar da morte, o poder passa a gerir a vida, de forma positiva, para que cresça e se multiplique, sob controles precisos e regulações de conjunto.” O acoplamento entre a biopolítica e o capitalismo, assim, é viabilizado/evidenciado: por meio de controles diversos sobre a vida (demografia, higiene pública, projetos de urbanismo, e, no caso do presente texto, controle dos “desviantes”) transforma-se os indivíduos em população, ou seja, produz-se um grande – e produtivo – “corpo mecânico”.
É nesse momento que se percebe “a potência da vida humana que é ‘aproveitada’ pelo Estado e pelas instituições como elemento de poder”, ou seja, passa-se a incluir a vida humana nos cálculos do poder, sendo a lógica do biopoder justamente “cuidar da vida humana a fim de que ela seja produtiva.” (BOFF, 2008, p. 193). Trata-se, em última análise, de uma gestão calculista da vida.
O refinamento da tese foucaultiana reside justamente nesse ponto: a biopolítica enquanto forma encontrada pelo Estado para “gerir a vida da população” não pode ser ingenuamente compreendida pelo seu “caráter humanitário” de administrar, por meio de intervenções políticas, as condições de vida da população. Há um aspecto violento desse controle, denunciado pelo autor e que vem ao encontro da discussão ora empreendida, que reside justamente na exigência contínua e crescente da morte (não apenas no sentido literal, mas também no sentido de “neutralização”[9]) em massa do “outro”, enquanto instrumento privilegiado para a garantia de melhores meios de sobrevivência de uma determinada população. Nessa lógica, “o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida.” (FOUCAULT, 2012, p. 149).
Portanto, na medida em que o biológico passa a refletir-se no político, toda forma de eugenia, de cisão entre o que é considerado normal e o que é considerado anormal, passa a ser justificado. Isso porque o biopoder, em nome da proteção à vida da população, encontra legitimidade para a eliminação de todo perigo a que esta vida possa estar exposta. Segundo Esposito (2006, p. 10-11), “el bíos es artificialmente recortado, por una serie de umbrales, en zonas dotadas de diferente valor que someten una de sus partes al dominio violento y destructivo de otra.”
Como ressalta Agamben (2010, p. 127), “uma das características essenciais da biopolítica moderna (que chegará, no nosso século [século XX], à exasperação) é a sua necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora.” Para o autor (2010, p. 135), é como se toda valorização e toda politização da vida “implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante” e passa a ser somente “vida sacra”, que, como tal, pode ser impunemente eliminada: “toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus ‘homens sacros’.”
Em um contexto tal, pelo menos potencialmente, a vida humana é convertida em um terreno de decisões que dizem respeito não somente a seus umbrais externos (como, por exemplo, o que distingue a vida animal da vegetal), mas também a partir de seus umbrais internos, o que significa dizer que “será concedido o, más bien, exigido a la política el decidir cuál es la vida biologicamente mejor y también como potenciarla a través del uso, la explotación, o si hiciera la muerte de la vida menos valiosa biologicamente.” (ESPOSITO, 2006, p. 11). O ponto de decisão reside justamente em definir em que momento uma vida deixa de ser política (e economicamente) relevante e, consequentemente, pode ser eliminada do tecido societal.
Aqui reside um dos pontos fundamentais: a criação de “castas” por meio de perfis genéticos é uma ferramenta que, caso não seja devidamente controlada, pode servir para potenciar/facilitar a realização dessas cesuras. Afinal, ainda de acordo com a lição de Foucault (2010, p. 52-53), o racismo de Estado é exercido pela sociedade sobre ela mesma, ou seja, “sobre seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos”; trata-se de um “racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social.”
O quadro esboçado permite, então, a afirmação de que a união entre a Política Criminal Atuarial e as inovações tecnológicas aplicadas à investigação/persecução criminal se inserem nesta lógica, porque potencializam as possibilidades de cesuras entre a vida politicamente relevante e a vida descartável (homo sacer). E mais: passa-se a admitir que “pequenas doses de mal” – por meio da utilização das medidas de neutralização/incapacitação seletiva já analisadas, v.g., castração química, monitoramento eletrônico, etc – sejam injetadas na sociedade com o objetivo de tornar a persecução penal o mais eficiente possível, o que acaba por consolidar aquilo a que Esposito (2006, p. 10) denomina de “paradigma imunitário”. Com efeito, assim como se busca prevenir o contágio pela injeção de uma porção de mal no corpo que se quer salvaguardar, “también en la inmunización social la vida es custodiada en una forma que le niega su sentido más intensamente común.”
O resultado disso é que o Direito – in casu, o Direito Penal – acaba se transformando em um “dispositivo imunitário inoculado na sociedade como antídoto que combate com aquilo que ameaça.” (RUIZ, 2012). Nesse quadro, a única garantia do Direito é a violência, o que significa dizer que a violência passa a funcionar como dispositivo imunitário que defende com o mesmo que ameaça, o que implica a multiplicação da violência na sociedade.
Em um país no qual o sistema punitivo foi histórica e sistematicamente utilizado como um importante mecanismo de contenção e disciplinamento de uma clientela “tradicional” composta pelas camadas subalternas da população esse debate se impõe com maior vigor. Isso porque, a par da cegueira provocada pelo deslumbramento das medidas que, dentro da lógica atuarial, oferecem eficiência a todo custo na seara das práticas punitivas, não se pode desconsiderar que essas práticas são responsáveis pela criação de sucessivas cesuras que são típicas de um modelo racista-biologicista que servem para fragmentar o contínuo biológico ao qual se dirige o biopoder. E as práticas nazistas, nesse sentido, são a lição histórica mais clara do que isso pode significar[10].
Notas e Referências:
[1] No mesmo sentido, Brandariz García (2007, p. 83) evidencia a obsolescência “de los discursos normalizadores, resocializadores, en el ámbito penal, hoy vistos como tan quiméricos cuanto disfuncionales para orientar el control social contemporáneo. Si resulta carente de sentido intentar superar la criminalidad, es igualmente ilógico diseñar la Política Criminal operando sobre el infractor individual, a partir de tesis sobre las causas del delito, pretendiendo incidir sobre las disfunciones que generan esas conductas criminales.”
[2] Como assevera Garland (2008, p. 59), “em nítido contraste com a sabedoria convencional do período passado, a opinião dominante agora é a de que ‘a prisão funciona’ – não como um mecanismo de reforma ou de reabilitação, mas como instrumento de neutralização e de retribuição que satisfaz as exigências políticas populares por segurança pública e punições duras.”
[3] Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/06/02/interna_nacional,535323/uso-de-detector-de-mentira-no-caso-bernardo-e-criticado.shtml>. Acesso em: 25 jun. 2014.
[4] Entende-se por castração química a utilização de substâncias que, por meio do bloqueio do hormônio sexual masculino (testosterona), cessam a libido, controlando o desejo e o impulso sexual. A primeira proposta de utilização desse método surgiu nos Estados Unidos e pevia a injeção de uma substância que impedia de forma irreversível a ereção. No entanto, o método não impediria que o indivíduo tivesse os impulsos sexuais compulsivos. Buscando uma “melhor” solução, pesquisadores chegaram a sugerir a remoção dos testículos, responsáveis pela produção de quase 95% da testosterona. Mas partindo de estudos na área neuroquímica, chegou-se à conclusão de que a “anomalia” se dá pela quantidade de hormônios masculinos acima do normal. Desse modo, a castração química mais aceita atualmente é a inibição da produção da testosterona, que é feita com a introdução de Depo-Provera, uma versão sintética da progesterona (hormônio feminino pró-gestação). Todavia, este procedimento pode gerar efeitos colaterais como o desenvolvimento de diabetes, fadiga crônica, alterações na coagulação sanguínea e ocorrência de depressão. Informações disponíveis em: <http://www.ibccrim.org.br/site/noticias/conteudo.php?not_id=13853>. Acesso em: 25 jun. 2014.
[5] No Brasil, já foram apresentadas na Câmara dos Deputados propostas para punir o estupro com castração química. A proposta do deputado Sandes Júnior (GO) foi rejeitada e devolvida ao autor por desobedecer a Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”), segundo a qual “não haverá penas cruéis” na legislação brasileira. No Senado, versando sobre o tema, há o PL 552/2007, que está arquivado.
[6] No site <http://www.nsopw.gov/?AspxAutoDetectCookieSupport=1> é possível obter informações sobre o paradeiro de “predadores sexuais” em todos os estados norteamericanos. Em alguns links nele disponibilizados, também é possível localizar o paradeiro de indivíduos condenados por outros crimes, mas considerados de “alto risco”. Acesso em: 25 jun. 2014.
[7] No site <http://www.cga.ct.gov/2007/rpt/2007-R-0380.htm> pode ser consultado um resumo de leis estaduais norte-americanas que restringem o direito de moradia de condenados por delitos sexuais. Acesso em: 25 jun. 2014.
[8] O monitoramento eletrônico de condenados já uma realidade em vários países, a exemplo da Inglaterra – onde a medida existe desde 1999, tendo sido instituída pelo Programa Home Detention Curfew – de Portugal – onde existe desde 2002 – da Austrália, da Suécia, da Escócia, da Argentina e dos EUA, entre outros. O estudo da autoria de Carlos Roberto Mariath intitulado “Monitoramento Eletrônico: Liberdade Vigiada” (disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={57DC54E2-2F79-4121-9A55-F51C56355C47}&BrowserType=NN&LangID=pt-br) detalha essas experiências. Acesso em: 25 jun. 2014.
[9] Nesse ponto, é importante consignar que, por “tirar a vida” não se compreende, na perspectiva foucaultiana (2010, p. 216), unicamente o assassínio direto, mas também tudo que pode ser considerado assassínio indireto: “o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição.”
[10] De acordo com Esposito (2006, p. 12), o totalitarismo do século XX – sobretudo o nazista – pode ser compreendido como ápice do paradigma imunitário: “la vida del pueblo alemán se convierte en el ídolo biopolítico al cual sacrificar la existencia de cualquier otro pueblo y en particular del pueblo judío que parece contaminarla y debilitarla desde adentro. Nunca como en este caso, el dispositivo inmunitario señala una absoluta coincidencia entre protección y negación de la vida. El potenciamiento supremo de la vida de una raza, que se pretende pura, es pagado con la producción de muerte a gran escala. En primer lugar, la de los otros y, al final, en el momento de la derrota, también de la propia, como testimonia la orden de autodestrucción transmitida por Hitler assediado en el búnker de Berlín. Como en las enfermedades llamadas autoimunes, el sistema inmunitario se hace tan fuerte que ataca el mismo cuerpo que debería salvar, determinando su descomposición.”
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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth é Doutor em Direito Público (UNISINOS). Professor dos Cursos de Direito da UNIJUÍ e UNISINOS. Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Editor-chefe da Revista Direitos Humanos e Democracia (Qualis B1). http://lattes.cnpq.br/0354947255136468
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