Na nossa coluna de 18 de julho passado indagávamos se a Constituição do presente poderia ser efetivada com a polícia do passado. Pois bem, dando continuidade ao debate, neste mês de agosto foram publicados pelo Fórum de Segurança Pública, em parceria com o DECODE, os primeiros resultados de um estudo especial denominado Política e Fé entre os Policiais Militares, Civis e Federais do Brasil. O estudo aborda as preferências, símbolos e pautas ideológicas destes profissionais a partir de um exame das redes sociais.
É relativamente comum encontrar manifestações de membros das forças de segurança sobre diversos temas nas redes, especialmente sobre o funcionamento de outras instituições do país ou questões que envolvem opções e exercício das liberdades públicas. A pesquisa colhe quase 3 milhões de manifestações de um universo significativo de policiais, mais de 140.000, conforme dados obtidos no Portal da Transparência e que foram publicados pela Revista Piauí na sua última edição. [1]
Partiram os autores de uma realidade: pouco se conhece quem são e o que pensam e/ou no que acreditam esses profissionais. Isso acontece porque, dentre outras causas, não existe um órgão responsável para produzir conhecimento sobre as instituições policiais.
A análise aponta que não há clareza sobre as competências e atribuições de cada um dos entes federativos em matéria de segurança pública, algo que a nosso juízo merece algum reparo, mas que não retira seu mérito em momento algum. Em outras oportunidades temos afirmado que em matéria de segurança as competências demarcadas constitucionalmente, como qualquer outra atribuição a qualquer ente público, precisam ser extraídas a partir da leitura do texto normativo atendendo à sistematicidade e unidade da Carta. Se a interpretação não está assentada em rigorosos critérios hermenêuticos é claro que se caminha para a confusão, como já advertimos naquela nossa coluna de julho. E essa confusão traz consequências graves porque conjugada ao volume, características dos casos atendidos, atores envolvidos e outros fatores gera, por sua vez, incertezas sobre os padrões operacionais de policiamento nos diversos Estados da federação. Isto se traduz em espaços e aberturas para arbitrariedades, abusos de poder e o distanciamento ainda maior entre a atividade policial e os direitos humanos.
O mais relevante do Estudo consiste na sua conclusão: 42% dos policiais militares, entre oficiais e praças, interagem em redes sociais que reproduzem a pauta do governo atual, que são os chamados “ambientes bolsonaristas radicais”, conformado por páginas como “Heróis do Brasil com Bolsonaro” ou “Michelle Bolsonaro Fans”. Na Polícia Civil essa interação cai para os 8% e na Polícia Federal não chega ao 10%. Nos comentários dos policiais militares, 27% são dirigidos a manifestar sua discordância com a agenda LGBTI; 24% são dirigidas a fazer elogios ao presidente e 13% são comentários favoráveis ao fechamento do Congresso e do STF. Somente 2% dos policiais militares dizem estar de acordo com ações para conter a violência policial. O apoio ao presidente é também de 23% nos comentários de membros da Polícia Federal e 15% na Polícia Civil. O restante dos percentuais, que não detalharemos, mas que estão ao alcance dos leitores na Revista, se refere a críticas à imprensa, apoios às ações contra a corrupção e críticas a governadores e à esquerda.
Sob a perspectiva que traz a pesquisa a questão posta é: os membros das polícias devem ser contidos e controlados para que não reproduzam seu pensamento nas redes sociais? Podem, pelo contrário, não somente postar suas opiniões senão expressar apoios ao governo, com independência da sua agenda política? Tendo em vista o governo atual, que defende a maior militarização da vida social, a venda quase indiscriminada de armas e uma pauta conservadora nos costumes, podem os membros da polícia assumir uma visão contrária aos direitos humanos?
As respostas se desprendem tanto da interpretação dos fatos como dos textos normativos constitucionais e legais, bem como da maneira como se percebe o contexto brasileiro atual à luz dos valores e fins expostos em 1988, que resistem bravamente a investidas, as escancaradas e as sutis.
Nos termos constitucionais as polícias são estruturas responsáveis pela segurança pública. Há pouquíssimos trabalhos no Brasil que abordem a segurança como um autêntico direito fundamental, mas vale lembrar que como todo direito fundamental está ligada à preservação da dignidade humana e está conectada – interdependência dos direitos - à inviolabilidade da vida, das liberdades públicas e da concretização da cidadania.
A segurança pública é, ademais, um dever do Estado. As polícias são corpos que fazem parte do rol taxativo do artigo 144, da Constituição Federal, ou seja, são uma criação do constituinte e a ele devem obediência. Sua missão consiste em defender a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Esse dever é, de fato, tão relevante para a sociedade que o exercício do direito de greve, outro direito fundamental, é limitado a todos os membros servidores públicos que atuem nessa área.
O conceito de ordem pública implica que a polícia tenha condições de atuar para coibir aquilo que possa ocasionar dano à comunidade, que consiga atender situações em que a sociedade está em risco, sem discriminações, em que o património social e que a vida das pessoas se encontre em perigo. Entretanto, como bem aponta o Coronel Ibis Pereira em alentado artigo, a mãe de todas as inseguranças é negar ao homem, como direito humano básico, a possibilidade de ser mais. Nessa inconsciência, na qual chafurdam sociedades hierarquizadas,[2] sociedades divididas em classes, polarizadas pelo medo interno - em que uns “os de bem” correm dos outros, “os maus”, estes últimos regularmente identificados como “pobres, de cor de pele, características e comportamentos “típicos” capazes de qualquer coisa porque não tem nada a perder - as blindagens, a concepção de tropa armada, se sobrepõe a qualquer padrão operacional exposto em regulamentos que nos falem de preparo psicológico e técnico.
Policiais, como qualquer ser humano, estão juridicamente protegidos pela Constituição e há que zelar porque a estrutura à qual pertencem tenha as condições de oferecer estabilidade e que lhes sejam garantidos todos os direitos sociais para uma vida digna. Contudo, como qualquer pessoa, podem ter direitos fundamentais restringidos tendo em vista que alguns deles são incompatíveis com o rol que desempenham socialmente, como o caso do direito de greve.
Examinemos, assim, a Lei Complementar Nº 893 de 9 de março de 2001, que institui o Regime Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa Lei consigna no artigo 7º que dentre os valores determinantes da moral policial-militar está a dignidade da pessoa humana. No artigo seguinte a Lei estabelece como deveres éticos “Cumprir e fazer cumprir, dentro de suas atribuições legalmente definidas, a Constituição, as leis e demais ordens legais das autoridades competentes, exercendo suas atividades com responsabilidade (...); proceder de maneira ilibada na vida privada e pública”; “exercer a profissão sem discriminações ou restrições de ordem religiosa, política, racial ou de condição social”; “observar os direitos e garantias fundamentais, agindo com isenção, equidade e absoluto respeito pelo ser humano (...)”.
Depois, os parágrafos 3º e 4º do mesmo artigo 8º determinam: “§ 3º - Aos militares do Estado da ativa são proibidas manifestações coletivas sobre atos de superiores, de caráter reivindicatório e de cunho político-partidário, sujeitando-se as manifestações de caráter individual aos preceitos deste Regulamento. § 4º - É assegurado ao militar do Estado inativo o direito de opinar sobre assunto político e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo a matéria pertinente ao interesse público, devendo observar os preceitos da ética policial-militar e preservar os valores policiais-militares em suas manifestações essenciais”.
O fundamento desta normatividade se entrelaça, logicamente, como a missão que devem cumprir. Há sim restrições própria da natureza do cargo, como existem também para juízes ou membros do Ministério Público, do ponto de vista moral, jurídico e ético. São restrições razoáveis se levamos em conta a natureza da sua ação. São agentes públicos, que exercem poder público, armados, sob diretrizes de autoridades públicas.
Não há dúvida de que sem que exista ainda um debate suficientemente amplo sobre unificação das polícias ou sobre como deve-se tratar a segurança pública, elas foram ganhando espaço no espectro político nacional e, também, foram se transformando em corporações com considerável nível de autonomia operacional , o que não raro, infelizmente, tem dado azo a arbitrariedades.
Assumir uma forma de compreensão da vida nas redes sociais para muitos policiais pode ser uma prática libertária. Entretanto, se a concepção que orienta a sua existência é a adesão subjetiva à barbárie e a essa demanda punitiva que tomou conta de setores descompromissados com a democracia, ao autoritarismo e à falta de compromisso com os direitos, em particular com os direitos humanos, então esta paira como uma espécie de sombra em cada uma das suas atuações. Por isso, facilmente, pode se passar de membro da estrutura a militante armado. Dificilmente os preconceitos e as formas vulgares de compreender o papel das pessoas na sociedade, as discriminações raciais, o machismo e a homofobia lhe permitiriam tomar distância em situações que exigem de atitudes rápidas. O risco sempre será que em lugar de interpretar a situação para embasar a atuação racional, o agente público parta da ideia preconcebida que conclui com um desfecho irracional. No caso, até prevenção e repressão são a mesma coisa na prática. [3]
Por isso, concordamos com que não há exagero impondo-se formas de controle a manifestações em redes sociais e em estabelecer vigilância diante das visões que demostram repudio pela legalidade e o Estado Constitucional de Direito. O pior que pode acontecer é que estas concepções não sejam apenas individuais, senão institucionais, porque no caso se trataria de corpo armado que protagoniza e defende uma ruptura como as pretensões constitucionais legítimas de democracia, paz e segurança para todos. É dizer, por supuesto, uma força que, criada pela Constituição, atua à margem dela.
Notas e Referências
[1] https://piaui.folha.uol.com.br/tropa-de-choque-de-bolsonaro/
[2] Coronel ibis Pereira. Os lírios no nascem da lei. in Bala Perdida. Bernardo Kucinski et al. São Paulo: Boitempo. 2015.
[3] Sobre o particular, os comentários de Vera Malaguti Batista no texto Estado de Polícia, na obra Bala Perdida.Pp. 91-96.
Imagem Ilustrativa do Post: Martelo da Justiça e Algemas // Foto de: Fotografia cnj // Sem alterações
Disponível em: https://flic.kr/p/y49zVZ
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode