Poderes e Estado: entre Polícrates e Aracne – Por Leonel Pires Ohlweiler

18/02/2016

As notícias veiculadas nos periódicos nacionais estão recheadas de episódios sobre os poderes do Estado, tanto ressaltando aspectos positivos, como negativos. É o exercício de competências administrativas para fiscalizar a utilização do dinheiro público e evitar práticas de corrupção, para interditar estabelecimentos comerciais vendendo para a população alimentos inapropriados para o consumo humano, multando bares por não respeitarem a lei do silêncio, etc. Em contrapartida, pululam notícias sobre o uso indevido da máquina pública em época de eleições, favorecimento de parentes em cargos de provimento em comissão, utilização de poderes para fraudar concursos públicos, cobrança de propinas no exercício de cargo público e tantas outras. A vida cotidiana, portanto, lida com as esferas de poder da Administração Pública. Segundo Georges Burdeau, o poder é o fenômeno social de realização do bem comum, capaz de impor aos membros da comunidade a atitude que ele ordena[1]. Destare, Mário Stoppino refere que a expressão poder, considerada de forma geral, relaciona-se com a capacidade de produzir efeito, mas sob um sentido social, pode significar desde a capacidade de agir, até a capacidade de o homem determinar o comportamento de outro homem[2].

As notícias aludidas, bem como as noções acima indicadas remetem para a reflexão das possibilidades e dos perigos de utilização dos poderes, como nas estórias de Polícrates e Aracne.

Polícrates e os Limites do Poder.

É conhecida a estória de Polícrates[3], tirano e senhor de toda a Jônia, que começou governando a ilha riquíssima tomada à força de seus irmãos. Detentor de grande poder, exercia-o sem limites e dominado pela arrogância de quem tudo conseguia. No entanto, aconselhado pelo Rei Amósis a sacrificar um dos seus mais ricos tesouros para aplacar a ira dos deuses, jogou no mar valioso anel de esmeraldas. Uma semana após, o pobre pescador da vila lhe deu de presente um peixe. Quando aberta a barriga, para surpresa de todos, lá estava o anel. Sorte? Nem tanto. Não escutando as advertências, interpretou aquilo como sinal de ventura e embarcou para a Pérsia para mais conquistas. Sucumbiu na guerra e acabou crucificado.

A breve narrativa pode muito bem servir para ilustrar algumas esferas de poder no Brasil

Há agentes públicos que passam sua vida tentando construir impérios de poder, com práticas não republicanas e o interesse público relegado para segundo plano. Trata-se daquilo que Ronald Dworkin denominou de insinceridade hermenêutica. Um dos grandes problemas está em não ter a capacidade de enxergar os limites e o hábito de cultivar virtudes!

As notícias cotidianas confirmam que alguns administradores deveriam ter lido a fábula acima descrita. Polícrates somente reverenciava a própria imagem e não fazia sacrifícios com a boa intenção de ajudar os cidadãos, mas de acalmar a ira dos deuses.

As condenações pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o famoso Caso do Mensalão, comprovam que o poder que ingressa nos partidos políticos em troca de vultosas quantias é como o anel de Polícrates. Para os que são dotados de arrogância similar, bem como de crença cega em seus poderes, igualmente, perdem a capacidade da leitura sobre os sinais da vida, a necessária virtuosidade constitucional para centrar o ímpeto de dominação e respeito pelo ethos institucionalizado. O Estado, quando necessário e respeitando direitos e garantias individuais, deve agir. Quanto a isso não há dúvida, mas o problema por vezes decorre da síndrome de Polícrates.

Outra questão: eliminar o poder dos campos político, jurídico e administrativo é impossível.

O que resta para aqueles que ingressam em tais esferas é a sabedoria de lidar com uma força tal que assim como foi capaz de lhe dar ingresso, pode ser responsável pela gloriosa queda. Não se pode esquecer, por exemplo, os inúmeros episódios de corrupção em contratos celebrados com a Administração Pública. Muito embora a regra constitucional do processo de licitação, o acesso à esfera pública e a execução posterior de verbas públicas abre-se para os pretendentes contratados e aos administradores pelos canais do poder, dos jogos de trocas simbólicas. O acesso é visto como anel de esmeraldas. Não é por outra razão, que a Lei nº 12.813/2013 dispôs sobre o conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo Federal.

O exercício das funções administrativas, especialmente relacionadas aos contratos da Administração Pública, olvidando a própria concepção de res pública, igualmente se sujeita a relações personalistas. Por mais que se queira defender uma espécie de constitucionalidade de autonomia, é inegável que Polícrates sempre estará presente, escondido nas cláusulas contratuais.

Dessa forma, não compreender as intrincadas armadilhas do poder e do tempo que leva para ele cobrar sua dívida, é passo firme em direção à derrocada. Ao menos este é o fim que se espera para todo aquele que busca construir blindagens de poder e espaços ímprobos. Um dia o anel de Polícrates será devolvido, por mais que o dono queira se livrar.

Nem que seja por meio de operações da Polícia Federal ou de algum pobre pescador. 

Aracne e as Redes de Poder

É extremamente interessante para os debates sobre o exercício dos poderes o antigo mito de Aracne[4], aquela que possuía grande talento para tecer, mas se enredou em seu orgulho. Os seu talento era inegável, pois tecia coisas maravilhosas com a agulha. Ao tentar desafiar Atena, a deusa que ensinara os homens a tecer, mergulhou em desgraça por causa da vaidade, tornando-se a primeira aranha da terra.

Hodiernamente o mundo dos poderes públicos, seja na esfera administrativa, legislativa ou judicial, tornou-se uma grande teia, mergulhado em seus caminhos obscuros, cheio de armadilhas e pronto para aprisionar a primeira vítima desavisada. Grandes sulcos brotam de trilhas abertas pela falta de respeito pelas virtudes constitucionais por parte de algumas instituições. As mesmas instituições que servem para controlar alimentam o descontrole.

Obviamente que também acabam caindo nas malhas destas redes tecidas pelos arquitetos do poder, vítimas acostumadas a andar por outras teias, além de terem grande habilidade em recantos cheios de lama. Mas, uma teia nunca é igual à outra... A burocracia alimenta-se da própria complexidade! No entanto, muitos esquecem o seguinte: é possível ludibriar alguns por algum tempo, mas que não se pode fugir das teias durante todo o tempo.

É claro, os desenhos imaginativos, engenhosamente tecidos ao longo dos anos, são resultados de algum talento, não se pode negar, mas nem o talentoso está imune à queda. Na estória de Aracne, ela julgava-se tão especial, tão esperta, que nada podia afetá-la. Ledo engano. No quotidiano exercício dos poderes também é assim. Os discursos de constitucionalidade, de moralidade, de controle sério são construídos em um dia, mas no outro a Aracne acaba caindo na própria teia, ficando por um fio o poder que se julgava absoluto.

É interessante a vida. Algumas instituições que com suas ferramentas poderosas ajudam a tecer o eterno tecido de possibilidades do jurídico e do político, quando se sentem aprisionados pelos longos fios, são os primeiros a quererem terminar com a teia. Deve-se acrescentar à estória que Aracne não apenas foi capaz de velar a própria vaidade, mas olvidou a dimensão do tempo. O tempo que se ajuda a construir é o mesmo que mais cedo ou mais tarde cobra suas dívidas.

No caso, a sociedade será o principal cobrador!


Notas e Referências:

[1] Traité de Science Politique. Tome I, p. 216.

[2] Dicionário de Política. 10ªed. Brasília: UNB, Volume 2, p. 933.

[3] GRENE, Liz e SHARMAN-BURKE, Juliet. Uma Viagem Através dos Mitos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 141.

[4] GREENE, Liz e SHARMAN-BURKE, Juliet. Uma Viagem através dos Mitos, p.139.

BURDEAU, Georges. Traité de Science Politique. Tome I. Paris: LGDJ, 1949.

STOPPINO, Mário. Dicionário de Política. 10ªed. Brasília: UNB, Volume 2, 1997.

GRENE, Liz e SHARMAN-BURKE, Juliet. Uma Viagem Através dos Mitos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.


 

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