Poder Punitivo, Guerra e Excepcionalidade: o que se esconde por trás do fundamento do STF para suspender o mandato eletivo de Eduardo Cunha

14/05/2016

Por João Marcos Braga de Melo - 14/05/2016

A projeção aos fins é a marca que distingue a ciência jurídica moderna como iminentemente instrumental (racionalidade instrumental)[1]. É em Ihering que se inaugura a fase dogmática do pensamento jurídico, sobretudo com a publicação de O Fim no Direito (1877)[2]. No âmbito da Dogmática do Direito Penal, a instrumentalização do Direito aos fins é inaugurada por Franz von Liszt, a partir da publicação de A ideia de Fim em Direito Penal (1883)[3] e se encontra, hoje, manifestada em diversos modelos teóricos, como, p. ex, a fundamentação político-criminal de Claus Roxin.

No âmbito da dogmática brasileira, Nilo Batista e Eugênio Rául Zaffaroni inauguraram a denominada teoria agnóstica da pena, cuja finalidade é a de contração do potestas puniendi ou poder punitivo. Essa postura agnóstica apresenta-se como uma alternativa teórica capaz de propor, criar e potencializar instrumentos jurídicos, não necessariamente jurídico-penais, para minimizar a incidência negativa da sanção criminal na sociedade[4]. Isso porque a crítica criminológica, em especial as teorias abolicionistas, demonstrou que o poder de punir padece de legitimidade empírica.

Essa teoria encontra antecedente histórico em Tobias Barreto, que já em 1884 afirmava que quem procurasse o fundamento jurídico para a punição deveria também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra[5]. Para o autor o centro de gravidade do direito criminal está na pena, como o do direito civil está na execução[6]. Acrescenta que a pena, considerada em si mesma nada tem que ver com a ideia de direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que há de mais alheio à vida jurídica, isto é, em nome do que há de mais alheio à vida jurídica[7].

Mais adiante, para ilustrar a sua perspectiva teleológica redutora, Zaffaroni retoma a identificação das práticas punitivas cotidianas com os atos de guerra. Se ambos fenômenos têm existência real, e se a pena, assim como a guerra, não se legitima no direito, mas é uma das expressões violentas da política, cabe à dogmática a função humanitária de contrair suas hipóteses de incidência[8]. Como a guerra é um exercício de poder que está deslegitimado inclusive normativamente, mas que possui uma existência concreta, o poder punitivo deve ser enfrentado como um dado da realidade, como um fato político, como um fato de poder[9]. A tarefa redutora compreende, pois, “redefinir o direito penal da mesma forma que o direito internacional humanitário, concebendo-o como um discurso para limitar, para reduzir e, eventualmente, se possível, para cancelar o poder punitivo[10].

Os atos políticos punitivos, para que possam ter sua juridicidade reconhecida necessitam de uma redução de irracionalidade. Isso porque a decisão criminalizante do Judiciário é sempre “má”, mas é menos “má” do que as das outras agências de criminalização secundária[11] e, por isso, deve impor padrões de racionalidade a essas últimas. Pode-se dizer que a decisão judicial somente é válida na medida em que reduza o grau de irracionalidade no exercício do poder punitivo.

Daí ser importante o conceito de formalização de Winfried Hassemer, para quem o sistema jurídico-penal tem como tarefa aperfeiçoar a capacidade de formalização, para satisfazer os direitos humanos dos participantes em conflitos desviantes graves e que, por isso, são colocados em perigo[12]. Para o Professor de Frankfurt, a formalização é entendida sob dois aspectos: por um lado, transparência, clareza (e com isso possibilidade de controle dos instrumentos jurídico-penais)[13]; por outro a observância de determinados princípios valorativos: a clareza e possibilidade de controle se correspondem em essência com o clássico princípio da legalidade. Esse último preceito é um importante limite ao poder punitivo, na medida em que corresponde ao princípio político segundo o qual toda a atividade do Estado, especialmente o exercício da violência punitiva, tenha a legitimidade na lei e nela encontre o seu limite[14].

No caso da suspensão de mandato parlamentar ao Presidente da Câmara dos Deputados, imposta na AC 4.070/DF, tratou-se de medida que não atende aos pressupostos jurídicos de formalização do conflito social manifesto no crime.

Inicialmente porque as cautelares substitutivas da prisão, previstas no Código de Processo Penal, não abarcam o mandato eletivo, como vem ressaltando a doutrina especializada. Ou seja, o inciso VI do art. 319 do CPP – “suspensão do exercício de função pública (…) quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” – tem sua aplicação rejeitada pela doutrina no caso de parlamentares detentores de mandato[15].

O próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 644-MC/AP, destacou as especificidades das situações envolvendo detentores de mandato eletivo. Na ocasião ressaltou que “a subtração do titular, ainda que parcial, do conteúdo do exercício de um mandato político é, por si mesma, um dano irreparável”. O Ministro Sepúlveda Pertence, entendeu que “os mandatos republicanos são essencialmente limitados no tempo e improrrogáveis: por isso, a indevida privação, embora temporária, do seu exercício é irremediável, por definição”.

A Constituição da República, no art. 15, estabeleceu que a suspensão dos direitos políticos só se dará nos casos de: (i) cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; (ii) - incapacidade civil absoluta; (iii) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; (iv) recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; (v) improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º. Não poderia o Supremo ter empregado analogia em material de cautelar penal, para abarcar situação não prevista de forma expressa na lei. Em suma: estabelecer limite aos direitos políticos passivos não abarcado pela Constituição viola o preceito da taxatividade das restrições de direito.

Além do mais, as cautelares penais, assim como todo ato de exercício do poder punitivo, devem ter expressa previsão legal “não podendo o juiz afastar-se do princípio da legalidade, nem mesmo se entender presentes circunstâncias e/ou situações que coloquem em risco a efetividade do processo e da jurisdição penal[16].

Não se encontrava presente, também, o requisito da cautelaridade para a deflagração da medida. Por meio da análise dos andamentos da AC 4.070/DF, percebe-se que ela foi protocolizada há quase 5 (cinco) meses. Já que era urgente, por qual motivo a medida não foi tomada antes? É possível perceber, também, que os atos pelos quais o STF afastou Eduardo Cunha são muito antigos, datam da CPI da Petrobrás. Dos 15 (quinze) atos apontados na decisão monocrática em que se deferiu a cautelar contra o parlamentar, nenhum deles é de atrapalhar as investigações desenvolvidas pelo Supremo.

Em síntese: pode-se concluir que não se encontravam presentes o requisito para a cautelar. Mas, poderia o Supremo Tribunal Federal argumentar pela excepcionalidade da medida, em face da gravidade da acusação e das ações do Presidente da Câmara dos Deputados?

Acredito que não, pois as decisões tomadas no âmbito do Direito Penal e do Processo Penal apenas podem ser legítimas se passarem pelo crivo da formalização da linguagem jurídica. Apenas assim haverá redução de irracionalidade da decisão judicial. Da mesma forma como ocorre na Guerra, no Direito Penal, sempre existirão oportunidades para que se adotem medidas extremas. Casos criminais, em regra, são dotados de forte apelo moral.

Nesse contexto, argumentar pela excepcionalidade do caso concreto, para afastar a incidência da lei, nunca é uma boa saída. Pode-se dizer que quando os conflitos sociais são traduzidos para a linguagem jurídica, os direitos previstos em lei atuam como barreiras protetivas do indivíduo, ou como verdadeiros diques à irracionalidade do poder punitivo, como bem ilustra Zaffaroni.

Não pode o Supremo Tribunal Federal avocar para si a função moralizante de atuação dos Deputados no Parlamento e expandir o exercício do poder punitivo sem autorização legal. Apenas a Câmara dos Deputados detinha competência para suspender o mandato eletivo de Eduardo Cunha. A garantia ampla concedida aos Parlamentares, pela Constituição da República, se justifica, sob a perspectiva histórica, pelos trágicos eventos ocorridos na Ditadura Militar, em que Deputados tiveram seus mandatos eletivos cassados por terem convicções conflitantes com o Regime. Apesar de ser questionável a extensão da garantia oferecida pelo constituinte, ela apenas poderia ser reduzida por meio de emenda constitucional.

Embora o afastamento possa ter parecido moralmente interessante, ele não encontra fundamento jurídico. Não estarem presentes os requisitos legais para a cautelar é medida que torna a decisão puro ato de poder, em síntese, uma decisão política que muito pouco – ou quase nada – se diferencia da opinião política do Parlamento. Com todo respeito, no atual contexto de guerra política, envolvendo membros do Poder Executivo e do Legislativo, deveria o Poder Judiciário se lembrar de que o seu papel, no processo criminal, é o de conter as irracionalidades do poder punitivo e não o de moralizar o país.


Notas e Referências:

[1] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 150.

[2] Segundo o autor, o direito existe para e em razão dos fins, ou seja, “o Direito não é mais do que uma criação única do fim (...). O homem que pensa, que medita, encontrará sempre, no terreno do Direito, o fim de cada uma das instituições. A investigação deste fim constitui o objetivo mais elevado da ciência jurídica, tanto do ponto de vista da dogmática do Direito, quanto da sua história” (Ihering, Rudolf Von. O fim do Direito. p. 9. Apud: CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 150).

[3] O citado autor estrutura a concepção dogmática a partir da ideia de proteção do mundo dos bens jurídicos, nesse sentido: “[a] ideia de adequação ao fim, que nos conduziu felizmente até aqui, deve seguir sendo nossa guia. Nossa concepção de pena como proteção jurídica de bens exige, inexoravelmente, que, no caso concreto, a pena aplicada (em conteúdo e alcance) seja a necessária para que, através dela, se proteja o mundo dos bens jurídicos. (LISZT, Frans Von. La idea de Fin em Derecho Penal, p. 80. Apud: CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 150).

[4] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 150.

[5] BARRETO, Tobias. Fundamentos do Direito de Punir, p. 650. Apud: CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 160.

[6] BARRETO, Tobias. Polegômenos do Estudo do Direito Criminal, p. 110.

[7] BARRETO, Tobias. Fundamentos do Direito de Punir, p. 649-650. Apud: CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 161.

[8] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª edição. 2015. p. 150.

[9] ZAFFARONI, Sentido y Justificación de la Pena. p. 38.

[10] ZAFFARONI, Qué Hacer con la Pena? p. 109.

[11] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. 2001. p. 254.

[12] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. 2005. p. 417.

[13] HASSEMER, Winfried. Derecho Penal y filosofía del Derecho en la República Federal de Alemania. In: Persona, Mundo y Responsabilidad. 1999. p. 8.

[14] R. PASTOR, Daniel. Acerca del Derecho Fundamental al plazo Razonable del Processo Penal.

[15] Nesse sentido é a lição de Gustavo Badaró, in verbis: “A medida alternativa de suspensão não é aplicável em caráter cautelar às funções públicas decorrentes de mandatos eletivos. A lógica da situação legislativa não permite que um mandato decorrente de investidura popular seja suspenso ou perdido senão a título de pena, em virtude de sentença condenatória definitiva por crimes praticados no exercício da função. Seria inadequado à proeminência do princípio democrático que o exercício de um mandato popular pudesse ser suspenso, com base numa cognição sumária, a título de medida cautelar ou preventiva em processo penal, mas somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 15, inciso III, da CF), pois seria uma cassação, de fato, do mandato eletivo, sem o devido processo legal previsto na Constituição Federal”. (Cf., a propósito, BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Medidas Cautelares Alternativas à Prisão, In VV.AA. Medidas cautelares no processo penal. Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. Coord. Og Fernandes. São Paulo: RT, 2011, p. 182.)

[16] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal – 13ª edição –, 2010, p. 524.


João Marcos Braga. João Marcos Braga de Melo é Bacharel em Direito pela UnB. Pós-Graduando em Direito e Processo Penal pelo IDP e em Direito Penal pelo IBCCRIM-Coimbra. Membro da Comissão de Assuntos Criminais da OAB/DF. Advogado Criminalista em Brasília, associado ao Escritório TTB Advogados Associados. .


Imagem Ilustrativa do Post: Eduardo Cunha preside sessão da Câmara dos Deputados // Foto de: Agência Brasil Fotografias // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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