PODE O JUIZ CONDENAR MESMO DIANTE DO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FEITO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO?

27/09/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Em geral, eu e Ana Paula Couto conversamos sobre os assuntos a serem abordados nesta coluna, ponderamos os nossos pontos de vista e, então, passamos a escrevê-la abordando os aspectos que entendemos mais relevantes.

Quase sempre, não divergimos de forma radical e apenas alinhamos as nossas ideias. Como temos a mesma formação acadêmica e compartilhamos os mesmos ideais, normalmente as nossas ideias convergem, mas não é fácil um Juiz de Direito e uma Advogada compartilharem sempre o mesmo ponto de vista.

O assunto de hoje não permitiu a convergência. Muito ao contrário, temos pontos de vista radicalmente diferentes, o que é bom e ruim, ao mesmo tempo. Ter uma Advogada ressaltando entendimentos diferentes dos meus sempre me leva à reflexão, para afirmar ou alterar o meu ponto de vista. Isso é bom. O ruim é que a coluna de hoje só tem a minha assinatura, já que a resposta da Ana Paula Couto à indagação que serve de título a esta coluna é uma só: para ela, não pode o Juiz condenar diante do pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público – de jeito algum.

Então, combinamos o seguinte: esta coluna é de minha exclusiva responsabilidade.

A questão que se coloca, portanto, diz respeito à vinculação do Juiz a um eventual pedido de absolvição formulado pelo Parquet em suas alegações finais. Imagine-se que o Ministério Público tenha oferecido a denúncia requerendo a condenação do réu e que, após toda a instrução probatória, no ponto de vista ministerial, não foram trazidas aos autos provas suficientes para embasar o pedido de condenação.

Nesse caso, evidentemente, o Promotor de Justiça não está obrigado a requerer a condenação do acusado. Isso porque o art. 127, § 1º, da Constituição Federal, garante a sua independência funcional, em razão da qual ele deve atuar de acordo com a sua convicção à luz das provas produzidas em juízo.

A prática forense demonstra que, em muitas situações, atuam dois Promotores de Justiça diferentes. Um deles elabora a denúncia, enquanto o outro atua no curso do processo, cabendo-lhe elaborar as alegações finais. Sobretudo quando não se trata de prisão em flagrante, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, a denúncia é formulada pelo Promotor de Justiça que atua na Promotoria de Investigação Penal. Oferecida a denúncia e deflagrado o processo criminal, o Promotor de Justiça que atua na vara criminal, para a qual a denúncia foi distribuída, passa a ser o responsável pelo processo.

Além disso, também pode ocorrer de o Promotor de Justiça subscritor da denúncia ser removido ou estar de férias no momento das alegações finais, o que forçará outro Promotor de Justiça a elaborar as alegações finais.

É claro que o ideal seria o mesmo Promotor de Justiça oferecer a denúncia e acompanhar todo o desenrolar dos atos processuais, inclusive elaborando as alegações finais ministeriais. Todavia, mesmo nesse panorama ideal, o Promotor de Justiça não se vincula ao pedido de condenação feito inicialmente na denúncia, sendo totalmente possível que ele, após a produção de todas as provas em juízo, altere o seu entendimento para, nas suas alegações finais, requerer a absolvição do réu.

Mas é outra a questão a ser abordada nesta coluna. O problema que se apresenta é o seguinte: se o Promotor de Justiça alterar o seu entendimento e requerer, nas alegações finais, a absolvição do réu, o Juiz poderá proferir a sentença de condenação?

O art. 385, caput, do CPP, não podia ter uma redação mais clara: Nos processos de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

É possível criticar a constitucionalidade deste dispositivo, sob o argumento de que o sistema acusatório seria desrespeitado diante da condenação sem pedido condenatório ministerial formulado em alegações finais.

Na minha compreensão, o pedido a ser considerado no momento do julgamento é aquele formulado na denúncia. Após toda a instrução probatória, o Ministério Público apenas emite uma opinião em suas alegações finais. É claro que se trata de uma importante opinião a ser considerada pelo Juiz. É claro que a atuação do Ministério Público é importantíssima. É claro que a vida forense demostra que os Promotores de Justiça quase sempre trazem, em suas alegações finais, ponderações e raciocínios de grande valia para o julgamento.

Mas o Juiz não se vincula à opinião do Promotor de Justiça.

É certo que parte da doutrina tem afirmado o seguinte: O art. 385 do CPP não foi recepcionado pela Constituição da República. Não está mais autorizado o juiz a decidir, em desfavor do acusado, havendo pedido do Ministério Público em sentido contrário.[1] E mais: Logo, devem ser considerados substancialmente inconstitucionais todos os dispositivos do CPP, como os arts. 5º, 127, 156, 209, 234, 311, 383, 385 etc, que violem as regras do sistema acusatório constitucional.[2]

Em sentido contrário, parte da doutrina tem afirmado o seguinte: Nenhuma quebra de regra existe no fato de o juiz poder condenar tendo o promotor pedido a absolvição em suas alegações finais, pois, como é intuitivo, a correlação é feita com a imputação da denúncia, e não com alegações finais.[3] E mais: Afinal, no processo penal, cuidamos da ação penal pública nos prismas da obrigatoriedade e da indisponibilidade, não podendo o órgão acusatório dela abrir mão, de modo que também não está fadado o juiz a absolver o réu, se as provas apontam em sentido diverso (art. 385, CPP). [4]

Em se tratando de jurisprudência recente, é preciso enfatizar que, enfrentando o tema, em julgamento realizado no dia 28 de maio de 2019, em acórdão de relatoria da Ministra Laurita Vaz, o Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no Agravo em Recurso Especial de nº 1.275.084/TO, assim decidiu: É sabido que o fato do Parquet manifestar-se pela absolvição do acusado, como custos legis, em alegações finais ou em contrarrazões recursais, não vincula o órgão julgador, cujo mister jurisdicional está permeado pelo princípio do livre convencimento motivado, conforme interpretação sistemática dos arts. 155, caput, e 385, ambos do CPP.

Em julgamento menos recente, realizado no dia 04 de setembro de 2018, em acórdão de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, o Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no Agravo em Recurso Especial de nº 1.035.285/ES, assim decidiu: Nos termos do art. 385 do CPP, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, o juiz poderá proferir sentença condenatória, com base no princípio do livre convencimento motivado.

Entendo que, verdadeiramente, o pedido do Ministério Público a ser considerado é aquele condenatório formulado na denúncia, de forma que a condenação, mesmo diante do pedido de absolvição feito em alegações finais, não desrespeita o sistema acusatório.

É esse o meu entendimento que, muito provavelmente, não conta com a adesão da maioria dos Promotores de Justiça, que entendem que a sua manifestação deve prevalecer. O meu entendimento, muito provavelmente, também não conta com a adesão da maioria dos Defensores Públicos e Advogados, que entendem ser inviável a condenação diante do pedido de absolvição feito pela acusação. E, por fim, o meu entendimento não conta com a adesão da Ana Paula Couto, que sequer assina comigo esta coluna. Mas é o meu entendimento.

 

Notas e Referências

[1] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 65.

[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 235.

[3] LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 947

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 626.

 

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