Pode haver penhora de salário para pagamento de dívidas não-alimentares?

09/02/2018

Coordenador: Gilberto Bruschi

Trataremos de um tema divulgado no final do ano passado (2017) pelo Superior Tribunal de Justiça, e que, imediatamente, gerou polêmica entre os aplicadores do direito dos mais variados ramos: a possibilidade de penhora de salário para pagamento de dívidas não-alimentares.

Pela importância do tema, segue a ementa completa do julgado:           

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE PERCENTUAL DE SALÁRIO.

RELATIVIZAÇÃO DA REGRA DE IMPENHORABILIDADE. POSSIBILIDADE.

Ação ajuizada em 25/05/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 25/08/2016. Julgamento: CPC/73.

O propósito recursal é definir se, na hipótese, é possível a penhora de 30% (trinta por cento) do salário do recorrente para o pagamento de dívida de natureza não alimentar.

Em situações excepcionais, admite-se a relativização da regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 649, IV, do CPC/73, a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação do crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família.

Precedentes.

Na espécie, em tendo a Corte local expressamente reconhecido que a constrição de percentual de salário do recorrente não comprometeria a sua subsistência digna, inviável mostra-se a alteração do julgado, uma vez que, para tal mister, seria necessário o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, inviável a esta Corte em virtude do óbice da Súmula 7/STJ.

Recurso especial conhecido e não provido. (REsp 1658069/GO, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 20/11/2017) 

No caso trazido à análise do STJ, o Tribunal de Justiça de Goiás havia excepcionado a regra prevista no artigo 649 do CPC/73[1], que disciplinava a impenhorabilidade das verbas salariais, afirmando que a penhora de 30% não comprometeria o mínimo indispensável para a sobrevivência do devedor (no caso, um policial militar).

A relatora no STJ, Min. Nancy Andrighi, afirmou que a flexibilização da regra prevista no CPC é uma construção jurisprudencial e que, para haver flexibilização, deve-se analisar se os valores a serem penhorados comprometem ou não a subsistência do endividado.

Consta do acórdão que “a jurisprudência desta corte vem evoluindo no sentido de admitir, em execução de dívida não alimentar, a flexibilização da regra de impenhorabilidade quando a hipótese concreta dos autos revelar que o bloqueio de parte da remuneração não prejudica a subsistência digna do devedor e de sua família”.

Antes de analisar a tese exposta no aresto, importante consignar que ela foi desenvolvida pelo STJ à luz do CPC/73, na medida em que se tratava de recurso especial interposto antes da entrada em vigor do CPC/15. Todavia, isso não retira a validade da tese, sob a égide do Código de 2015, haja vista a permanência da impenhorabilidade do salário no diploma legal atual.

A propósito, vale mencionar que no CPC/15, muito embora mantida a impenhorabilidade de salários, a sua relativização foi maior do que no Código anterior. No CPC/73 era possível tal penhora se fosse hipótese de dívida alimentar, contudo, atualmente, o diploma de 2015 ampliou a exceção para alcançar também os valores recebidos acima de 50 salários mínimos (art. 833, § 2º).

Da mesma maneira, também houve alargamento dos casos em que é possível a penhora de salário para dívidas alimentares, haja vista o código ter expressamente previsto tal possibilidade para qualquer tipo de alimentos, e não apenas aqueles decorrentes do direito de família. Isso inclui os alimentos cíveis, que, agora, passam a admitir penhora de salário.

A propósito dessa modificação, Gajardoni, Dellore, Roque e Oliveira Jr. afirmam que cabe, a partir do Código de 2015, “a penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem”[2].

Sobre a ampliação da regra de flexibilidade da penhora de salários no CPC, o resumo feito pelos mesmos autores é preciso: 

“A penhora é exceção. Ainda que se trate de salário, será penhorável essa quantia para (i) pagamento de prestação alimentícia, de qualquer origem – seja de alimentos decorrentes de direito de família, seja de decorrente de ato ilícito e (ii) para valores superiores a 50 salários mínimos mensais, para qualquer outra dívida não alimentar.” [3]             

Diante do que foi aqui exposto, percebe-se que tanto o CPC/73 como o CPC/15 deram a devida normatização à impenhorabilidade do salário, sem deixar arestas interpretativas para o aplicador do direito. Não houve, como em diversos diplomas legais, disposições legais abertas ou conteúdo abstrato, que levasse o intérprete a fazer a preencher alguma lacuna, ou dar concretude a expressões genéricas.

O que se vê, tanto no CPC/73 quanto no CPC/15, foi a vontade do legislador em estabelecer duas regras, a partir do conteúdo das normas que disciplinam a impenhorabilidade de salário: 1º) o salário é impenhorável (regra geral); 2º) excepcionalmente, pode haver a penhora, nos termos da lei (regra específica de aplicação ocasional). 

Não deixou o legislador espaço para que o juiz, a seu critério, determinasse a penhora, diante da situação do caso concreto. Diferentemente do que faz crer o acórdão, quando ressalta que a impenhorabilidade prevista no CPC é relativa, e cabe à instância de origem verificar se a penhora é possível sem afetar o mínimo existencial, o art. 833 fala em impenhorabilidade “absoluta”. Isso por que a presunção de ser o salário indispensável para subsistência mínima do devedor só é excepcionada nas hipóteses em que o próprio legislador autoriza.

A excepcionalidade, portanto, se justifica apenas em duas hipóteses[4], ambas, por certo, fruto de uma ponderação prévia de valores, já realizada pelo legislador:

  1. quando a dívida for alimentar. Nessa hipótese, a lei já presume que o credor dos alimentos tem mais necessidade que o próprio devedor, daí por que a presunção se inverte e passa a ser absoluta em favor desse credor;
  2. quando exceder 50 salários mínimos. Aqui o legislador, mais do técnico, foi sensível ao mínimo existencial, mais uma vez invertendo a presunção, no que excede 50 SM, para dizer que, acima desse valor, já não se trata mais de valores necessários para uma vida minimamente digna do devedor.

Inexistente, assim, qualquer autorização legal, ou mesmo razoável, num sentido material-processual, para se afirmar, como propôs o aresto, que “cabe à instância de origem verificar se a penhora é possível sem afetar o mínimo existencial”. 

Ademais, vem à tona ainda, em contraste ao que aqui se expõe, que o acórdão do STJ dispôs que, que em situações como a analisada, é necessário harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa: o direito ao mínimo existencial e o direito à satisfação executiva, o que deve ser feito analisando as provas dos autos.

Sem tecer grandes incursões doutrinárias, de antemão, percebe-se que o esforço argumentativo do acórdão alçou “mínimo existencial” e “satisfação executiva” a vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana, sem nenhum critério justificador dessas vertentes. E isso é temerário porque não se pode transformar esse princípio numa panaceia processual.

Virgílio Afonso da Silva, em uma análise da jurisprudência do STF de 2005, já bradava sobre o uso excessivo da dignidade da pessoa humana como princípio fundamentador de toda e qualquer situação: 

“No Brasil, no entanto, em decorrência de uma banalização do uso da garantia da dignidade da pessoa humana, muitos casos de restrição a direitos fundamentais – às vezes, nem isso – tendem a ser considerados como uma afronta a essa garantia. Uma breve análise da jurisprudência do STF indica um cenário que dá indícios para a confirmação dessa hipótese. Apenas nos seis primeiros meses de 2005, ao menos nove decisões apontaram para algum tipo de ofensa à dignidade humana. Diante disso, pode-se dizer que ou a dignidade humana é, no Brasil, constantemente desrespeitada, ou tal garantia tem servido como uma espécie de enorme “guarda-chuva”, embaixo do qual diversas situações, que poderiam ser resolvidas por meio do recurso a outras garantias constitucionais e até mesmo infraconstitucionais, acabam sendo amontoadas em busca de proteção.” (Destaque nosso) [5] 

Advertência semelhante fez o então Min. Eros Grau, na ADF 153, ao estatuir que não se pode usar o argumento da dignidade da pessoa humana descolado de um contexto para justificar questões subjetivas. Afirmou ser perigoso se arrogar dessa dignidade para transformar argumentações, pois “o valor do humano assume forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure”[6].

Ainda sobre o tema, o Min. Eros Grau concluiu, como forma de demonstrar o uso indevido de tal argumento para subsidiar situações por ele inalcançáveis, que se assim agir, “o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais o valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme o seu critério particular”[7].

Daí se vê que fundamentar a decisão autorizativa da penhora de salário para dívidas não-alimentares, fora das exceções legais, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, não encontra respaldo no próprio núcleo desse princípio, que certamente não alcança situações de avaliação extremamente casuística, como é caso da “satisfação executiva”.

É como afirma Lênio Streck: “desejos e subjetivismos não podem substituir a lei. Juiz não pode ignorar a lei com base em princípios que ele mesmo inventou ou, ainda, mediante o uso de uma inexistente ponderação de princípios”[8].

Em verdade, a questão não se avalia a partir do ponto estabelecido no acórdão, mas, antes de tudo, a partir de um regramento pré-existente. Não há lacuna legal, não há margem para interpretação. A lei estabeleceu seu critério para excepcionar a impenhorabilidade. Se é ou não constitucional, é questão de inconstitucionalidade, e não de interpretação a partir de princípio.

O que fez o legislador foi concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana com a regra e as suas exceções (art. 833 do CPC/15), portanto, a escolha já foi realizada e não cabe ao Judiciário alterar a escolha prévia do legislador[9].

Nem se diga que se trata de interpretação extensiva da norma legal. No ponto, vale a lição de Limongi França[10], ao afirmar que “a interpretação extensiva não faz senão reconstruir a vontade legislativa existente para a relação jurídica que só por inexata formulação parece à primeira vista excluída”.

Para Thomas Bustamante[11], na mesma linha, a interpretação extensiva há que se manter “dentro dos limites semanticamente estabelecidos pelo texto objeto da interpretação”, enquanto a analogia “envolve uma tomada de decisão não feita originalmente pelo legislador, pois a hipótese ventilada não pode ser reconduzida a qualquer enunciado normativo em vigor nem mesmo se este for interpretado extensivamente”.

O que se pretendeu foi alterar a vontade do legislador, num expresso movimento ativista, que não se pode conceber em situações de existência de norma expressa reguladora de um bem jurídico.

Bem por isso, afirmou Lênio Streck, ao analisar a mesma decisão que ora se examina, que “uma decisão judicial que afasta a exceção do artigo 833, IV, fora das exceções previstas no próprio dispositivo, seria/é casuística e ativista. Falta a ela o caráter (a possibilidade) de generalização”[12].

Nem se diga, por oportuno, que foi a Corte local (TJGO) que estatuiu a possibilidade de haver a penhora, na medida em que, conforme o próprio STJ, se a corte local expressamente reconheceu que a constrição de percentual de salário do recorrente não comprometeria a subsistência digna do devedor, inviável a alteração do julgado, pois seria necessário o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, vedado pela Súmula 7/STJ.

Isso até poderia ser fundamento único e conclusivo, não fosse o fato de que, mesmo sustentando a aplicabilidade da Súmula 7 ao caso, o acórdão fez questão de avançar e debater o mérito da questão, num movimento que comprova o intuito de defender a tese da penhorabilidade, com viés ativista referido.

Melhor teria sido que o Superior Tribunal de Justiça tivesse observado a norma, com as regras e exceções nela inseridas, mantendo assim, a vontade do legislador quando editou o texto legal.

O legislador, bem ou mal, fez uma opção: dizer que o salário é impenhorável e que somente nas hipóteses previstas no código essa norma pode ser excepcionada. Ao intérprete cabe extrair do texto a norma, desde que coerente com aquilo que o legislador pretendeu ao editar tal texto.

Portanto, interpretar não pode ter por função modificar, mas sim, extrair o melhor significado dentro do âmbito de possibilidade oferecida pela norma legal. Se não é a melhor norma, cabe perseguir uma forma de corrigir o problema, dentro das opções democráticas oferecidas pela Constituição. 

 

[1] Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:

(...)

IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo.

(...)

§2º O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia. 

[2] GAJARDONI, Fernando da Fonseca [et. al.]. Execução e Recursos: Comentários ao CPC de 2015, v. 3. São Paulo: Método, 2017, p. 239.

[3] Ibidem, p. 239.  

[4] Art. 833.  São impenhoráveis:

(...)

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;

(...)

§2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.

[5] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, 2ª edição. São Paulo: Malheiros editores, 2010, p. 193.

[6] ADPF 153, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJe 06/08/2010.

[7] Ibidem.

[8] STRECK, Lênio Luiz. STJ erra ao permitir penhora de salário contra expressa vedação legal! in https://www.conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-vedacao-legal.

[9] A esse respeito, interessante ver a análise, no mesmo sentido, feita por ZAGREBELSKY, Gustavo. Ronald Dworkin's principle based constitutionalism: An Italian point of view in International Journal of Constitutional Law, Volume 1, Issue 4, 1 October 2003, p. 631.

[10] FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica, 13ª edição. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 51.

[11] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Analogia jurídica e argumento a contrario: um caso típico de argumentação por princípios: uma explicação a partir de uma controvérsia sobre a aplicação do art. 1.122 do CPC brasileiro in Revista de Direito Privado, vol. 29/2007, Jan-Mar/2007, p. 255-275.

[12] STRECK, Lênio Luiz. Ob. cit.

 

Gostou do artigo? Então confira mais do trabalho dos autores Rodrigo Frantz Becker e Marco Aurélio Peixoto:

https://lumenjuris.com.br/shop/direito/direito-processual-civil/conflito-de-coisas-julgadas-2017

 

https://www.editorajuspodivm.com.br/fazenda-publica-e-execucao-2018

 

Imagem Ilustrativa do Post: Mínimo salario // Foto de: Serge Saint // Sem alterações

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