Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro de Jesús Lora Alarcón
No dia 24 de março de 2015 o Secretario de Segurança Pública de São Paulo, através da Resolução SSP/40, determinou que considerando a absoluta transparência que devem reger as investigações de mortes decorrentes de intervenção policial, estando ou não o agente em serviço, os policiais que primeiro atenderem a ocorrência deveriam preservar o local até a chegada do Delegado e providenciar que nada fosse alterado. A Resolução, claramente, se dirige a garantir as condições para a realização da perícia a ser feita na sequência. [1]
Em 8 de julho passado, após mais de 5 anos de estar em vigor, o juiz da 1ª Auditoria Militar do Estado de SP concedeu salvo-conduto em habeas corpus coletivo impetrado pela Associação de Oficiais Militares do Estado, determinando a inconstitucionalidade da Resolução por considerar que o Estado membro não pode cuidar de matéria processual. Entendeu o magistrado que o assunto é reservado à União no artigo 22, I da Constituição, além de impedir aos Oficiais da Polícia Militar exercer o dever de Polícia judiciaria militar estabelecida no artigo 144, par. 4° da Carta.
Não entrarei, por enquanto, em questões como a possibilidade de habeas corpus no caso ou na questão referente à competência da União, no 22, I. Ainda que desde já adianto que não me parece que a legislação federal venha a ser arranhada, ou que exista usurpação de competência da entidade federal, quando se trata de estabelecer parâmetros rigorosos de atuação da polícia militar, tendo em vista as funções constitucionais dessa instituição, bem como a interpretação do § 6º do artigo 144 da Carta de 1988 que submete a atuação policial aos Governadores dos Estados.
O que me parece, de início, é que a decisão permite ao servidor da polícia militar que se encontra no lugar dos fatos, e que pode até ser um dos seus protagonistas ou estar indiretamente envolvido, ignorando a Resolução, alterar o local, com todos os objetos, armas e demais instrumentos que ali se encontrem. É interessante observar como, na prática, aquele que poderia ser futuramente questionado quanto a sua abordagem, sua conduta e sua forma de solucionar a urgência. que concluiu com uma perda de vida, passa a ter acesso por provimento judicial à manipulação do cenário.
Fiquei pensando que a decisão convida a analisar questões de maior fôlego e fundura. Tal vez uma possibilidade de indagar e de constatar. Primeiro indaguemos: o que fazer para desmilitarizar a polícia que foi concebida, sob o modelo do período de exceção, como força de repressão, ou se alguém prefere, como se convencionou chamar em 1969, para se ocupar do “policiamento ostensivo”. Agora constatemos, e infelizmente mais uma vez: há um divórcio escancarado entre a atividade da polícia e os direitos humanos. E quando não falamos suficientemente de segurança pública ou naturalizamos a violência policial, ou simplesmente não reconhecemos a dimensão real deste problema, simplesmente obstaculizamos as possibilidades de criação de uma cultura de respeito pelo humano como ideal de regulação jurídica, é dizer, pelos direitos e garantias fundamentais, que deveriam ser efetivados e concretizadas em cada circunstância por qualquer ramificação do poder público, diante da arbitrariedade de qualquer instituição estatal, muito mais quando ela é a instituição armada.
É apenas elementar que se a formulação jurídica no Brasil pós- 1988 esta norteada por postulados como o da dignidade humana, a liberdade e a igualdade, estes não admitam filtros raciais ou territoriais. Por isso, quando se trata de analisar a atuação policial não pode haver um Direito pleno de direitos em certos cantos do Brasil e um não-Direito funcionando como excepcionalidade jurídica e sob a impunidade em outros. Entretanto, esta discriminação já foi exposta claramente há alguns anos pelo Comandante da Polícia militar de Choque de SP[2] e ainda é uma constante.
Não somente a decisão da Auditoria ou a afirmação do Comandante, senão todo o contexto brasileiro convoca a uma reflexão sobre os elementos psicológicos, sociológicos, econômicos e políticos, que possam explicar uma realidade traumática de corriqueira violência policial desafiadora da Constituição, que ademais é seletiva e dirigida a quem já cumpre “pena de vida”.
Qual o contexto? Poderíamos começar dizendo que fazem alguns anos, especialmente com a operação lava jato, mas mesmo antes disso, que se escutam vozes de um realismo conservador que frisa na “ineficácia do sistema penal”. As vozes se assentam eleitoralmente na demanda cidadã de segurança – existe até a bancada da bala, por sinal, haveria nome mais preocupante e trágico para uma bancada no Congresso de um Estado de Direito? - promovem uma política de mão dura, defendem a prisão perpétua, a redução dos benefícios penais e o endurecimento da vida nos presídios.
Esse conservadorismo penal instalado, versão pirata do Direito Penal do Inimigo que nunca superou o trauma de ter que lidar com uma Constituição garantista como a de 1988, se desentende das causas sociais da criminalidade. Sua concepção parte de abstrações que escondem o neoliberalismo, canalizam a ansiedade da insegurança com a estigmatização dos pobres e excluídos, tentando legitimar um Estado que na verdade gera mais insegurança e proclama que a periferia é formada por quem é patologicamente inclinado ao delito.
Como reconhece Manuel Iturralde, os aliados desse discurso, desde óticas fundamentalistas, entendem que a sociedade é extremamente permissiva nos costumes. Portanto, restabelecer valores tradicionais e instituições básicas como a família e a religião é o caminho para não colapsar.
Justo é também reconhecer que as polícias, por outro lado, não estão fora da crise civilizatória prepandémica e concomitante a ela, assim que o policial tem treinamento deficiente, baixos salários, trabalha com a pressão do dia a dia da violência e tudo isso deve ser convenientemente analisado.
Mais recentemente há maiores sinais de deterioro da relação entre segurança, direito à vida, atividade policial e cidadania. Procuradas evidências o resultado não é alentador em termos de respeito aos fundamentos constitucionais: a) no ano 2018 um governador, (i) responsável pela segurança pública do seu Estado, defendeu publicamente que a Polícia Militar atirasse para matar quem estivesse com fuzil; b) no final de 2019 a base de um movimento grevista de policiais militares no Ceará era abertamente apoiadora do presidente da república e foi, em contrapartida, apoiada pelo emissário presidencial em franca contraposição à Constituição; c) no DF, o governador demitiu um subcomandante por omissão ao não agir quando era agredida a sede do Supremo Tribunal Federal; d) são constantes os vídeos que mostram os abusos nas abordagens dos membros da Polícia Militar como as imagens do acontecido no dia 22 de junho em Carapicuíba, na Grande São Paulo. O jornal O Estado de São Paulo noticiou, no dia seguinte a este fato, que o total de mortos em supostos confrontos com a Polícia Militar atingiu recorde em abril. A alta foi de 56% se comparados os números com os de abril de 2019. Em junho as polícias prenderam menos e retiraram menos armas com posse ilegal. Já no Rio de Janeiro, segundo os dados do Instituto de Segurança Pública, as Polícias Civil e Militar foram comprometidas na morte de 741 pessoas entre janeiro e maio, o número mais elevado desde 1998, quando começou o registro.
Por isso, os que tentamos teimosamente nos debruçar por sobre os fins do Constitucionalismo brasileiro e latino-americano em geral, temos que de alguma forma nos aproximar, metodologicamente, ao tema do crime e do castigo. Há quem pense em Weber e sua visão de “monopólio estatal da violência legítima” [3] ou quem prefira a Engels, que atrela a violência policial ao domínio de classe. [4], porém, a questão é começar a pensar e propor alterações para mudar este quadro. Entender que a profissionalização dos exércitos e seu compromisso progressivo com a defesa das fronteiras levou ao surgimento e consolidação de forças diferenciadas para o controle social, corporações para o policiamento ou policing. [5] No Brasil isso ainda parece uma grande confusão.
A partir desse ponto talvez caminhar para uma visão mais ampla, como o faz Manuel Iturralde, quando explica que o dueto – crime e castigo - não está constituído apenas de manifestações jurídicas, senão que se entrelaça com uma certa cultura, uma forma de conceber as condutas, a delinquência e os mecanismos que estabelece para castigá-la. Para o professor da UniAndes tais questões dizem muito mais sobre os grupos humanos que conformam a sociedade que sobre o modelo de sistema jurídico penal que teoricamente seja exposto.
Com efeito, o crime e o castigo revelam de que tipo de sociedade falamos; como está constituída nas esferas política, econômica e cultural, em que acreditam seus membros, a que temem, que valores abraçam, que os une e separa.[6] Por essa trilha procuraríamos razões para entender porque ainda no Brasil um percentual expressivo de pessoas reproduz a sentença western de que “bandido bom é bandido morto”. Não há como não afirmar que na verdade todo isto se relaciona com a forma como as pessoas sentem, pensam e tratam o Direito e os direitos e, particularmente, o direito à vida e as garantias constitucionais.
A Constituição não mudou o que deveria mudar: duas polícias. Há uma estrutura de segurança herdada do regime militar. De alguma forma isso também alimentou este tempo de fraqueza democrática que haverá de passar e ainda alimenta as tentativas de deteriorar o vigor dos direitos fundamentais. Unificar as polícias e acabar com o espelhamento entre polícia militar e forças armadas já seria um passo importante, por supuesto, na minha opinião.
Notas e Referências
[1] http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/CAOCri_ControleExtAtivPol/ssp%2040.pdf
[2] Ver: “Bairro nobre tem abordagem diferente, diz comandante da Rota”. Revista Exame. https://exame.com/brasil/bairro-nobre-tem-abordagem-diferente-da-periferia-diz-comandante/. 25.08.2017.
[3] Weber. Ciência e política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix. P. 56.
[4] Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.Moscu. Progreso. 1979. Pp. 170-171.
[5] Nesse sentido, veja-se a compilação dos trabalhos de Diane Davis e Anthony Pereira, Irregular armed forces and their role in politics and state formation, publicado em Cambridge pela Cambridge University Press no 2003.
[6] La Sociologia del Castigo de David Garland. Estudo preliminar na obra Crime e Castigo na Modernidade Tardia. Bogotá: Siglo del Hombre/Uniandes/Javeriana. Pp. 22-23.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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