PM (Pena de Morte)

05/12/2015

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 05/12/2015

“Dizem que ela existe pra ajudar Dizem que ela existe pra proteger Eu sei que ela pode te parar Eu sei que ela pode te prender Polícia! Para quem precisa! Polícia! Para quem precisa de polícia!”

(Tony Belloto - Titãns)

Na noite de sábado (28), cinco jovens, negros e pobres - Roberto de Souza Penha, 16 anos, Carlos Eduardo da Silva Souza, 16, Cleiton Corrêa de Souza, 18, Wilton Esteves Domingos Junior 20 e Wesley Castro Rodrigues, 25 - foram executados por policiais militares no Rio de Janeiro. Eles tinham acabado de voltar do Parque de Madureira, na Zona do Norte e iam lanchar por volta das 23h na comunidade de Costa Barros, quando o carro em que estavam, foi alvo de mais de 60 disparos na Estrada João Paulo, na altura da curva do Vinte no subúrbio carioca. A Polícia Militar informou, em nota, que os quatro agentes que participaram da ação foram presos. Três deles vão responder por homicídio doloso e fraude processual e um deles somente por fraude processual, de acordo com a Polícia Civil. Ao lado do carro, foram encontradas luvas ensanguentadas e uma arma. A chave do carro foi vista no porta-malas.

Infelizmente, não é a primeira vez e nem será a última que a polícia executa pessoas. Sempre ou quase sempre, pessoas jovens, pobres, negras e faveladas. Pessoas invisíveis e que somente são vistas depois de mortas quando se transformaram em cadáveres ou rostos estampados nos jornais. Não resta dúvida de que a sociedade também puxa o gatilho que mata essas pessoas. Somos partícipes dessas mortes. Não são raras as vezes que boa parte da sociedade ignora ou, até mesmo, aprova atitudes da polícia que procura através dos forjados “autos de resistência[1] ou da desqualificação completa das vítimas -  “bandidos” – justificar suas ações. Outra forma bastante comum de tentar justificar suas ações é a alegação - que não resistiria a uma investigação séria – de que as mortes ocorreram em confrontos com criminosos armados e em tiroteios.

Errados estão os que acreditam, inocentemente, que no Brasil não tem pena de morte. Pior do que muitos dos países que tem a pena de morte, no Brasil a pena capital é executada sem processo, sem contraditório, sem defesa e sem julgamento. Os condenados à pena de morte no Brasil não tem direito à “última ceia”, também, não são acompanhados por um ministro religioso e, muito menos, se despedem da família.

Em pesquisa realizada no ano de 2011 a Anistia Internacional constatou que nos vinte países que ainda mantêm a pena de morte, em todo o mundo, foram executados 676 pessoas, sem contar as execuções ocorridas na China, que não fornece dados.  No mesmo período, informa ORLANDO ZACCONE[2], somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados. Em 2014, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.022 casos, média de um homicídio a cada três horas. Número de vítimas que supera dos atentados de 11 de setembro nos EUA, em que 2.977 pessoas morreram. O número de mortes provocadas pela polícia em 2014 é 37,2% maior que o registrado em 2013. O estado de São Paulo apresentou a maior letalidade em 2014, foram 965 pessoas mortas pela polícia, 351 a mais do que 2013. No Rio de Janeiro, as polícias mataram 584 pessoas em 2014, 168 a mais que em 2013.

Necessário destacar, como faz com toda propriedade ZACCONE, que “a polícia mata, mas não mata sozinha[3].  Na verdade quem mata é o sistema penal. O sistema mata os pobres, os negros, os favelados, analfabetos, enfim, os vulneráveis. Quando não mata, encarcera. Conforme salientou o desembargador SÉRGIO VERANI, “o aparelho repressivo-policial e o aparelho ideológico-jurídico integram-se harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz[4].

Realmente a polícia (militar e civil) não mata sozinha. Vários são os coautores e partícipes desses crimes. Sem falar, aqui, naqueles que aplaudem e glorificam verdadeiras ações de “higienização” de grupos de extermínio e da própria polícia quando executam sem julgamento os elegidos “inimigos” e classificados como “bandidos”.

Como é sabido, as Polícias Militares brasileiras têm sua origem nas Forças Policiais, que foram criadas quando o Brasil era Império. A corporação mais antiga é a do Rio de Janeiro, a “Guarda Real de Polícia” criada em 13 de Maio de 1809 por Dom João 6º, Rei de Portugal, que na época tinha transferido sua corte de Lisboa para o Rio, por causa das guerras na Europa, lideradas por Napoleão. Foi este decreto que assinalou o nascimento da primeira Polícia Militar no Brasil, a do Estado da Guanabara.

A violência policial no Brasil tem raízes históricas. Quando a família real chegou ao Rio de Janeiro encontrou, segundo historiadores, uma “população hostil e perigosa” e muitos africanos. Com o temor que se repetisse no Brasil a mesma revolta de escravos ocorrida no Haiti em 1792, a realeza de Portugal logo formou uma força policial para controlar as chamadas “classes perigosas” que viviam no Rio. Constata-se assim que a função original e prioritária da polícia era defender a elite dirigente (realeza e seus aliados) contra as “pessoas perigosas e de cor” e, também, de recapturar escravos fugidos. Talvez aí resida a explicação para que até hoje, 200 anos após sua criação, a polícia continue agindo preconceituosamente e para defender prioritariamente os interesses das classes dominantes.

Não se pode negar que a repressão violenta ao crime, ou melhor, ao criminalizado, sempre foi uma “delegação tácita conferida à policia por parte dos grupos dominantes[5]. É inegável, também, que o direito penal tem por alvo, preferencialmente, o crime comum (furto, roubo, “tráfico” e uso de drogas) – “crime de rua” – praticado por aqueles que são criminalizados, ou seja, os pobres, negros e excluídos da sociedade.

É fato que as pessoas mais vulneráveis, que vivem em áreas carentes e precárias se ressentem da omissão do Estado social e de políticas públicas. Na verdade, nestas áreas o Estado penal e repressor é que se faz presente sob o pretexto de combate à violência e à criminalidade, principalmente ao “tráfico de drogas”.

Referindo-se à violência e à ordem social, LUIZ ANTÔNIO MACHADO DA SILVA[6] observa que “há tempos não há um programa de intervenção social, em qualquer nível, público ou privado, que não esteja focado em alguma área de moradia popular e que não se apresente como recurso de combate ao crime”. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), atualmente no Rio de Janeiro, são o exemplo mais evidente desta intervenção.

Lamentavelmente, a sociedade não confia na polícia - como também não confia no judiciário – e na medida em que a polícia perde a credibilidade “é sentida e sente-se estrangeira aos olhos de sua comunidade, passa a se ver ameaçada diante de qualquer questionamento social e, ao mesmo tempo, é percebida como uma ameaça. A perda de credibilidade policial corresponde, tacitamente, a uma fragilização do consentimento social, uma perda de legitimidade no exercício do mandato policial. Uma polícia desautorizada se vê premida ao exercício de uma conduta pautada unicamente pela lei, arriscando-se a impor uma visão intolerante, ilegítima de ordem[7].

Necessário dizer, também, que policiais são assassinados. Segundo levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo no ano de 2012, um policial foi vitima de homicídio a cada 32 horas, no total de 229 policiais. Em 2014, 114 policiais foram mortos no Rio de Janeiro.

Os policiais, de algum modo, acabam se tornando vítimas – vítimas de uma classe dominante - de um sistema inumano e cruel, de um mundo igualmente perverso. Neste mundo, “mocinhos” e “bandidos” se confundem.  Mundo e sociedade que cada dia mais privilegia o ter ao invés do ser, que o homem vale pelo que tem e não pelo que é. Como bem disse EDUARDO GALEANO[8]A publicidade manda consumir e a economia proíbe. As ordens de consumo obrigatórias para todos, mas impossíveis para a maioria, são convites ao delito. Sobre as contradições de nosso tempo, as páginas policiais dos jornais ensinam mais do que as páginas de informação política e econômica”.

Enquanto tudo isso acontece faz-se de conta que se vive em um Estado democrático de direito. Enquanto isso fingimos que não há pena de morte no Brasil.

Primavera de 2015.

Leonardo Isaac Yarochewsky

Advogado e Professor

À memória de Roberto, Carlos Eduardo,

Cleiton, Wilton e Wesley.


Notas e Referências:

[1] De acordo com Orlando Zaccone “o auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa”.

[2] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[3] Idem.

[4] VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. Apud  ZACCONE, ob. cit.

[5] MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Violência e ordem social. Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.

[6] Idem.

[7]MUNIZ, Jacqueline e PROENÇA JÚNIOR, Domício. Mandato policial. Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.

[8] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM editores, 2015.


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. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Violência do estado contra a população na tentativa de remoção da Taboinha 09-11-2010 // Foto de: Marcelo Freixo // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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