Pluralismo e convivência na paz social armada de hoje

21/09/2017

Por Paulo Ferreira da Cunha – 21/09/2017

Como se combate o preconceito? Conhecendo, viajando, vivendo fora do casulo...

Tem na verdade muita sorte quem de uma forma plácida, serena, e contudo sempre empenhada, séria e sincera, teve ao longo da vida a oportunidade de ver muitas coisas diferentes, de vários pontos de vista, e de ter guardado, dessas visitas a tantas realidades, a tão diferentes continentes do ser, do pensar e do agora, muito boas memórias e muito bons amigos. E quem assim trouxe de presente um imenso sentido de liberdade, de solidariedade com o outro, e mesmo de empatia com o diferente, pela sua Humanidade irrecusável.

Quem, pelo contrário, vive na sua pequena casinha toda a vida, mesmo que se desloque, quem não sai de si mesmo, nunca, nem dos seus preconceitos (que sempre são muitos: nem disso nos apercebemos até termos a incrível experiência de conviver com outras formas de pensar e fazer...) é sempre um foco de possível guerra. E a guerra é todo o conflito de cobiça, de orgulho, de vaidade, de perseguição de vantagem. Pacíficos e tranquilos são os que saíram de si mesmos e alargaram e sempre procuram alargar as janelas da sua mente e da sua experiência. Sem querer pilhar. Sem querer envaidecer-se... Desejando, pelo contrário, entender o distante que se torna próximo.

Infelizmente, o mundo jurídico só há pouco tempo está a pluralizar-se. Os juristas ainda têm colado à sua reputação um “agelastismo” proverbial. Peter Haeberle observou que só entende a própria ordem jurídica nacional do seu país se se mergulhar e compreender a de pelo menos outros. Fundamental apreender com recuo, pelo contraste, deixar as ideias-feitas, as habitualidades, o garantido, o que se julga natural. Grande elogio, portanto, da Comparação de Direito. Matéria tão dificilmente integrável na mentalidade positivista-nacionalista imperante que de lhe chama ainda, muito, “Direito Comparado”, como se fosse um outro Direito mais... ali ao lado...

Parece haver cada vez mais coisas que pessoas inteligentes, mas prudentes, guardam para si, num tempo de fanatismos, ódios, terrores, ditadores, antes de mais pela Ignorância. Pode haver alguns que, destemidos, icem alto as verdades, acendam as tochas do bom senso. Mas outros, muitos decerto, já entenderam que podem perecer por ser testemunhas daquela verdade parcial sem dúvida, mas razoável, pacificadora e evidente, que é o máximo que se pode atingir pelo discernimento humano. Sim, a verdade dos equilibrados, dos prudentes, pode não ser a Verdade pura. Mas a pseudo-verdade do dogma dos fanáticos é, de certeza, uma enorme mentira à sombra da qual molestam os outros (desde a agressão simbólica à física) e proclamam, na prática mais vil, a sua impunidade.

Prefiro um intelectual honesto e de mente lavada que se engane no seu tentativo e reticente discurso, ao fechado, empedernido, bronco furioso que odeia o pensamento e proclama, de armas na mão (sejam elas quais forem: podem ser publicações em redes sociais) que ele é que está certo, e que quem pensa de maneira diferente é um tonto, um pérfido, um criminoso, e, no limite, merece ser imolado para exemplo geral. E para satisfação da ordem e pureza do mundo. No fundo, muitos destes fanáticos que querem “consertar” a realidade são candidatos a deuses...

Nunca pensei chegarmos a este ponto de guerra social, e se as pessoas de boa vontade não fizerem nada, será sempre pior. Porque será como no célebre poema (de paternidade muito complexa, e sucessivas intertextualidades) em que se começa por dizer que primeiro vieram prender (e levar para os campos de extermínio) os comunistas, depois estes, mais tarde mais aqueles, até que, pela estratégia do salame, vieram exterminando uns e outros, e finalmente se chegou ao próprio autor do poema, que é símbolo do seu leitor. E já não havia ninguém para se escandalizar e impedir a injustiça.

Podemos bem demais com as injustiças alheias e distantes. Mas realmente elas deveriam interpelar-nos.

Os juristas do futuro, os juristas humanistas e fraternos, para a Paz, devem ter compromisso com essa calma, tranquilidade e convivência nas sociedades. Não podem dormir descansados quando um setor social está votado ao extermínio de outro. Não é tarefa fácil, mas tem que se fazer um esforço para que o futuro próximo se não torne na “guerra de todos contra todos” de que falava Hobbes, nem numa paz armada entre gangues ou tribos.

Uma sociedade tem de saber compreender o outro. Não quer dizer que alguns devam sempre compreender e transigir. Mas é preciso mesmo diálogo e compromisso, sem prejuízo de valores altos, que devem ser comuns. Não se consegue dizer ao fanático que seja bonzinho e conviva com os que odeia. Mas pode-se impor-lhe que os não moleste.

E mais ainda, pode-se – e deve-se – educar desde cedo para uma democracia de tolerância e de convivência, sem preconceitos absurdos, de que só necessita quem não tem projetos próprios, vida própria e, no limite, quem não tem mais nada que fazer. Quem trabalha a sério, e sabe o que está a fazer no mundo não vive “de dar luta a um inimigo” como dizia Nietzsche.


Paulo Ferreira da CunhaPaulo Ferreira da Cunha é Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional. Professor da Escola de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas. Professor da Académie Internationale de Droit Constitutionnel. Possui graduação (Licenciatura em Direito), com o Curso complementar em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1984), Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Políticas pela mesma Faculdade (1988), Doutorado em Direito (História do Direito / Filosofia do Direito) pela Université Panthéon-Assas, Paris II. E ainda Doutorado em Direito. Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1995), reconhecido em 16.4.2014 pela Universidade de São Paulo como Doutor em Direito, área de Direito do Estado. Agregação em Direito Público (similar à Livre-docência) pela Universidade do Minho (2000). É Pós-doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2013). Lattes:  http://lattes.cnpq.br/4615065392733954


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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