PLATAFORMA DIGITAL DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO – PDPJ-BR: EM BUSCA DA INTEROPERABILIDADE    

09/10/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Recentemente no site do Supremo Tribunal Federal foi veiculada notícia anunciando o desenvolvimento de uma nova plataforma para a gestão da jurisdição digital, o Projeto Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br) [1]. O Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, o Exmo.  Ministro Luiz Fux, em reunião por videoconferência com diversos Presidentes de Tribunais, ao anunciar o projeto, ressaltou a importância de se integrar todos os tribunais do país, mantendo o sistema Processo Judicial eletrônico (PJe) como uma espécie de “sistema oficial” patrocinado pelo CNJ.

Aprovada e publicada a Resolução nº 335, de 29 de setembro de 2020 [2], passa-se a analisar alguns aspectos importantes sobre a interoperabilidade e a sua especial relevância na gestão de processos judiciais eletrônicos tendo-se o PJe como sistema prioritário do Conselho Nacional de Justiça.

A interoperabilidade é uma característica dos sistemas que sempre foi muito valorizada na área de informatização e de telecomunicações, que veio ganhando cada vez maior força no mundo do direito diante dos inúmeros problemas encontrados pelos usuários ao longo da implementação dos processos judiciais eletrônicos, que se perpetuam até os dias atuais, sem qualquer solução efetiva.

O conceito de interoperabilidade, resumidamente, traduz a necessidade de os sistemas serem integrados, intuitivos, de fácil manuseio, e que proporcionem de alguma forma uma ágil comunicação com outros sistemas que se encontrem logicamente na cadeia de um determinado fluxo de trabalho ou em uma linha de produção.

Não raro, são encontrados relatos de advogados que possuem dificuldade para acessar os sistemas processuais de um Estado da Federação por serem completamente diferentes de outro, ou até para peticionar ou visualizar peças eletrônicas no sistema de um mesmo órgão, que varia de uma instância para outra dentro daquela mesma estrutura. Cada plataforma possui limitações e peculiaridades que tornam hercúlea a simples tarefa de protocolizar uma petição.

Imagine-se esta problemática em relação aos jurisdicionados que teriam, em tese, a possibilidade de ingressar em juízo exercendo o seu jus postulandi. Trata-se, indubitavelmente, de um novo obstáculo ao acesso à justiça.

Em meio a esta “Torre de Babel” tecnológica é extremamente salutar e oportuna a iniciativa do Ministro Luiz Fux de manter um diálogo aberto com os presidentes de todos os tribunais e assim promover um sistema processual eletrônico interoperável, ou seja, que funcione de maneira orquestrada, tendo como ponto de união o PJe, que, dividido em módulos hospedados em nuvem, servirá como um verdadeiro hub [3] para que se acoplem os diversos sistemas usados pelos tribunais. Se tudo correr como o esperado, este será um dos maiores legados na história do processo judicial eletrônico.

A interoperabilidade, por sua vez, encontra-se na pauta do CNJ desde a sua criação. São inúmeros os atos registrados historicamente que tiveram por objetivo promoverem-na e alcançá-la [4].

Embora tenha sido o processo judicial eletrônico implementado normativamente de maneira gradual desde os anos oitenta, a partir da Lei nº 7.232/84 (Plano Nacional de Informatização) sua incorporação e desenvolvimento se deram de maneira desordenada e bastante difusa, o que teria acarretado o problema atual a ser enfrentado. Cada tribunal tem o seu sistema, e cada sistema ignora as funcionalidades de outro tribunal [5].

Com isto, pode-se afirmar que o grande marco do desenvolvimento do processo judicial eletrônico brasileiro foi, de fato, a Emenda Constitucional nº 45 de 30 de dezembro de 2004. Além de incluir no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil a previsão expressa da garantia da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (estando aqui o processo judicial eletrônico), ela criou o Conselho Nacional de Justiça.

A criação do Conselho Nacional de Justiça foi essencial para o surgimento da discussão da interoperabilidade, pois o que faltava em toda esta equação tecnológica era justamente um ponto focal para que se desse um seguimento adequado e sustentável para o desenvolvimento dos sistemas processuais eletrônicos. Neste sentido, o art. 196 do CPC de 2015 enuncia que ao CNJ compete velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para este fim, os atos que forem necessários.

O processo judicial eletrônico quando implantado inicialmente não considerou o ponto de vista do usuário, mas sim, as necessidades e as facilidades a partir dos prestadores da jurisdição. Esta é uma falha comum em vários segmentos tecnológicos. Se alguém pensa em oferecer um serviço no meio tecnológico, este alguém não pode passar ao desenvolvedor daquele sistema as suas necessidades rotineiras sem pensar no destinatário daquela prestação.

Exatamente por esta razão, um dos sistemas mais elogiados pelos jurisdicionados foi o Eproc do Tribunal Regional Federal da 4ª Região [6]. Este sistema foi construído a partir de um processo dialógico do conhecimento.

Neste ensejo, de forma muito feliz, a Resolução nº 335/2020 revela em todo o seu texto a necessidade de colaboração no desenvolvimento como uma verdadeira constante. Ela coloca o CNJ como o coordenador do projeto, e em vários dispositivos menciona a necessidade de se manter um desenvolvimento colaborativo não só por parte dos tribunais, mas também pela comunidade, no art. 18, norma digna de aplausos.

Tal medida reforça a necessidade de se trabalhar igualmente a interoperabilidade em sede administrativa, pois, de nada adiantará um processo uniformizado dentro do Poder Judiciário sem que haja uma ponte de comunicação igualmente interoperável com outras esferas de Poder que fatalmente estarão envolvidas nos litígios em tramitação. A cada processo judicial, logicamente se conectam diversos módulos de processos administrativos oriundos de várias esferas do Poder Público que, sem a desejada interoperabilidade, continuarão representando pontos indesejados de retenção na tramitação que se propõe, a priori, de maneira mais célere e efetiva.

No âmbito do Ato Normativo 0007555-97.2020.2.00.0000, registra-se que o CNJ vem desenvolvendo desde 2009 o sistema PJe em cooperação com tribunais e conselhos de todos os segmentos do Poder Judiciário, tendo como objetivo primordial criar um sistema de tramitação processual no meio eletrônico que possa ser utilizado por todos os órgãos, em qualquer de suas especializações e competências.

Dois pontos merecem atenção com base no que já foi explicitado anteriormente. O primeiro está na importância de se ter como premissa basilar o fato de que as adequações extraídas das necessidades do tribunal aderente devem incorporar obrigatoriamente as experiências e a resposta dos usuários, sejam eles operadores ou destinatários da prestação jurisdicional. O segundo ponto refere-se ao desenho deste projeto, que, de maneira bastante salutar, parece estar sendo pensado a partir de um ponto focal (PJe) que serviria não apenas como um conector de todos os sistemas processuais eletrônicos do país, mas como uma espécie de marketplace, explanado pelo ato normativo como uma espécie de sala virtual, na qual todos os desenvolvedores de sistemas poderiam trocar experiências e recursos que poderiam ser acoplados a cada sistema.

De fato, vê-se comumente que as plataformas digitais, após serem desenvolvidas, precisam passar por um processo constante de adequação e de adaptação e, com isto, surge periodicamente a necessidade de se atualizarem os sistemas com a inserção de aplicativos auxiliares, novas ferramentas e programas de atualização para a correção de falhas, instabilidades e o aumento da segurança contra malwares.

Além disso, é necessário que seja mantido um banco de dados para que os diferentes gestores e desenvolvedores integrantes da PDPJ-Br tenham conhecimento de todas as novidades tecnológicas existentes, fator imprescindível para que o aprimoramento seja efetuado de maneira horizontal e equilibrada, eliminando-se com isto eventuais assimetrias geográficas ou entre segmentos e instâncias diferenciadas dentro do Poder Judiciário. Destarte, poderia o Conselho Nacional de Justiça adequar dentro da concepção de marketplace ora aventada a incorporação de um Road Map, uma ferramenta visual que demonstra de maneira clara o caminho que deverá ser percorrido em etapas produtivas, seja para o desenvolvimento de um novo sistema, ou para sua manutenção e aperfeiçoamento.

Outra ideia que se pode extrair, ainda nesta mesma linha, seria a adoção do mecanismo do blockchain, conhecido mais popularmente como o “protocolo da confiança”, com inúmeras funcionalidades. O blockchain incorporado ao PDPJ-Br permitiria o aumento da transparência [7] e do grau de confiança dos jurisdicionados no Poder Judiciário ao permitir a adoção de meios de fiscalização mais efetivos, mas também o aumento da segurança sobre os dados veiculados em toda a rede, minimizando-se os riscos advindos de eventuais invasões ou falhas do sistema em maior escala.

O blockchain consiste em uma tecnologia desenvolvida para se descentralizar um registro de uma informação. Cada elo da corrente representaria um local hospedando o registro realizado. Cada registro se conecta a outro, que seria um novo elo da corrente. Quanto maior a corrente, maior a segurança sobre as informações inseridas. A principal benesse trazida residiria no fato de que, ao invés das informações estarem armazenadas em um computador central, ou uma nuvem, como se propõe, estariam salvas em milhares de computadores espalhados por todo o território brasileiro. Se cada computador detiver uma cópia integral do banco de dados, passa-se a se descentralizar o ponto de uma possível invasão por hackers. Assim, estar-se-ia formatando um sistema nos termos do art. 194 do CPC de 2015, segundo o qual os sistemas de automação processual respeitarão as garantias de publicidade e de participação no processo, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções.

Uma sugestão construtiva que se alinha com o “espírito” da Resolução nº 335, de 29 de setembro de 2020, reside na propositura de um fluxo de constante acompanhamento e alinhamento de cada plataforma digital judicial integrante. Além de interoperáveis, as plataformas devem possuir ferramentas e layouts padronizados dentro das possibilidades reais, proporcionando ao usuário uma navegação simples e intuitiva, com a possibilidade de migrar de um sistema para outro sem dificuldades.

Como bem destacam Marcos Nóbrega e Juliano Heinen, vive-se na era do “Estado-digital”, destacando-se que a pandemia ora vivenciada, tem funcionado como catalizador de transformações que estavam em curso, potencializando assim, arranjos institucionais e jurídicos. Assim, tem-se, no caso em questão, a possibilidade de implementar por meio destes mecanismos tecnológicos a chamada “transparência 2.0”, além de uma nova maneira do Estado se relacionar com o cidadão – ou, neste caso, do Poder Judiciário com os seus jurisdicionados – com a entrega de facilitadores em ambos os sentidos. Daí exsurge a necessidade de popularizar um ambiente digital que esteja literalmente na palma da mão das pessoas que seguram um smartfone, ótima analogia para que se compreenda o ideal acesso à justiça informatizado [8].

Por fim, como último alerta, frise-se a relevância de se intensificarem os projetos de capacitação de servidores e operadores do direito, ao lado de uma ampla oferta de programas de ensino acerca do uso das novas tecnologias, acessíveis a todos os cidadãos, sem custo, para que se garanta a continuidade da prestação dos serviços jurisdicionais sem a criação de empecilhos no acesso informatizado, garantindo-se um  especial tratamento para os portadores de deficiência [9], idosos e pessoas que se encontrem em alguma situação de hipossuficiência, resguardando-se deste modo, uma evolução processual digital isonômica e democrática.

Neste ensejo, Evie Nogueira e Malafaia e Júlio Cesar Rossi destacam muito bem que “a tecnologia é bem-vinda, mas as garantias processuais são imprescindíveis e inflexíveis às mitigações infralegais”[10]. O acesso à justiça deve, portanto, ser ampliado e potencializado pelas novas tecnologias e não o oposto. Em igual sentido, Fernanda Gomes e Souza Borges pondera de maneira categórica que o uso da tecnologia alicerçado nos direitos e garantias fundamentais é algo inafastável à consolidação do Estado Democrático de Direito não havendo espaço para qualquer tipo de violação ao sistema de garantias constitucionais [11].

Espera-se de verdade que este seja um novo marco no desenvolvimento tecnológico, que, como visto, trará impactos significativos não apenas PDPJ-Br em termos de celeridade, efetividade e qualidade, mas também rumo a uma nova ruptura do mais moderno obstáculo ao acesso à justiça (que se defende como barreira tecnológica), com potencialidade para o incremento da segurança dos dados e do aumento da transparência e do grau de confiança no Poder Judiciário.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452600. Acesso em 01/10/2020.

[2] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3496. Acesso em 01/10/2020.

[3] Hub é um termo bastante utilizado na tecnologia para se referir a uma máquina que conecta vários computadores juntos, ou o centro, parte principal de algo, que concentra a maior parte das atividades desenvolvidas. Fonte: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/hub. Acesso em 01/10/2020.

[4] Dentre os diversos atos do CNJ em relação à interoperabilidade destacam-se: Resolução CNJ nº 12/2006 (Institui o Grupo de Interoperabilidade); Resolução CNJ nº 41/2007 (Criação do domínio jus.br); Resolução CNJ nº 70/2009 (Estabelece as metas do processo eletrônico); Resolução Conjunta nº 3 de 16 de abril de 2013 (institui o Modelo Nacional de Interoperabilidade); Resolução CNJ nº 181/2003 (Institui o PJe).

[5] IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Princípio da Interoperabilidade: Acesso à Justiça e Processo Eletrônico. São Paulo: Dialética Editora, 2020, p. 37-41.

[6] Ibidem, p. 42-45.

[7] CARDOSO, Andre Guskow. Blockchain em governos da transparência e acaba com venda de dados de cidadãos. Blocknews. Disponível em: https://www.blocknews.com.br/index.php/2020/02/26/blockchain-em-governos-da-transparencia-e-acaba-com-venda-de-dados-de-cidadaos-diz-advogado/. Acesso em 27/09/2020.

[8] HEINEN, Juliano e NÓBREGA, Marcos. A administração pública pós-covid: transparência 2.0, blockchain e smart contracts. Estadão Blogs. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-administracao-publica-pos-covid-transparencia-2-0-blockchain-e-smart-contracts/. Acesso em 01/10/2020.

[9] A respeito da inclusão dos portadores de deficiência visual, veja-se recente notícia sobre o uso de tecnologia permitindo acesso integral de pessoas com deficiência visual aos processos que tramitam no STJ. Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25092020-Tecnologia-permite-acesso-integral-de-deficientes-visuais-aos-processos-que-tramitam-no-STJ.aspx. Acesso em 01/10/2020.

[10] E MALAFAIA, Evie Nogueira e ROSSI, Júlio. As recentes mudanças nos julgamentos virtuais perante o STF não podem restringir direitos. Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-129-as-recentes-mudancas-nos-julgamentos-virtuais-perante-o-stf-nao-podem-restringir-direitos. Acesso em 01/10/2020.

[11] BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A já inafastável relação entre processo e inteligência artificial: dominação estatal ou democratização processual? Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdrpro-53-a-ja-inafastavel-relacao-entre-processo-e-inteligencia-artificial-dominacao-estatal-ou-democratizacao-processual. Acesso em 01/10/2020.

 

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