Acaba de ser promulgada a Lei nº. 14.132, de 31 de março, publicada em edição extra do Diário Oficial da União do dia 1º. de abril, com vigência também a partir daquela data, por meio da qual acrescentou-se o art. 147-A ao Código Penal, revogando-se, outrossim, o art. 65 da Lei das Contravenções Penais.[1]
O novo crime consiste em “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.”
Assim, cometerá o delito, objetivamente, quem de maneira repetida e sistemática perseguir alguém, seguindo-o de perto, indo ao seu encalço, acossando-o, importunando a sua vida, incomodando a sua privacidade ou atormentando a sua paz e a sua tranquilidade.
Ao contrário do que consta no art. 147, CP (crime de ameaça), o legislador preferiu dessa vez a forma livre para se referir aos meios de execução da conduta delituosa, optando por não os estabelecer expressamente; obviamente, não foi a melhor escolha, afinal permitir-se-á interpretações demasiadamente ampliativas e abusivamente excessivas, contrariando o princípio que rege a interpretação das leis penais incriminadoras.
De toda maneira, resta induvidoso que, para a configuração do delito, é preciso que a perseguição seja efetivamente grave, crível, idônea, verossímil, concreta e séria, capaz de atingir a liberdade física ou psíquica da vítima, além de sua tranquilidade pessoal, podendo ser uma perseguição explícita (clara) ou às escondidas (implícita ou velada), contanto que a vítima tome conhecimento da conduta, como veremos adiante. Assim, simples e infundadas ilações ou mesmo manias de perseguição, não legitimaram a intervenção do Direito Penal que, como se sabe, é regido pelo princípio da intervenção mínima.
Ressalta-se a exigência legal que a perseguição dê-se de maneira reiterada, impedindo-se a configuração do tipo penal quando a conduta for movida, eventualmente, por um sentimento súbito de raiva ou de cólera momentânea, em evidente desequilíbrio emocional, ou mesmo em estado de embriaguez; inclusive porque, passado aquele instante anormal de ânimo ou, no segundo caso, recuperada a consciência, certamente cessará a perseguição, fruto que foi de inopino. Desse modo, para a configuração do delito exige-se que o sujeito ativo, no momento da conduta, esteja com ânimo sereno, frio e calmo.
Como se vê, trata-se de infração penal cujo bem juridicamente protegido é, sobretudo, a liberdade individual, mas também a tranquilidade pessoal, a privacidade e a paz interior, protegendo-se, a um só tempo, a liberdade psíquica e a liberdade física da pessoa humana, bem jurídico, aliás, tutelado pela própria Constituição.
Como sujeitos (ativo e passivo) podem ser consideradas quaisquer pessoas; no entanto, caso a vítima seja criança, adolescente, idoso ou mulher (em razão da condição de sexo feminino), a pena será aumentada de metade. Observa-se que a lei brasileira considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade, nos termos do art. 2º. do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90); por sua vez, considerar-se-á idoso as pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos, conforme art. 1º., da Lei nº. 10.741/03; por fim, haverá “razões de condição de sexo feminino” quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou quando houver menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º.-A, do Código Penal).
Ainda em relação ao sujeito passivo, é preciso que o ofendido seja “alguém”, isto é, uma pessoa física determinada, razão pela qual a indeterminação da (s) vítima (s) impede a configuração da infração penal; nada obstante, não o impede o fato da perseguição ser feita a um determinado grupo de pessoas individualmente incertas, mas identificadas coletivamente, como, por exemplo, contra uma torcida organizada de um time de futebol.
Não se admite que a pessoa jurídica possa ser vítima do delito, por lhe faltar, evidentemente, a possibilidade de gozo da liberdade psíquica ou física, sendo absolutamente incapaz de sofrer qualquer abalo em sua tranquilidade pessoal; neste caso, poderão ser considerados ofendidos, eventualmente, as pessoas físicas que a constituem, configurando-se um caso de concurso formal de crimes com desígnios autônomos (art. 70, segunda parte, do Código Penal).
Importante ressaltar que, sendo o sujeito ativo qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, a conduta poderá consistir crime de abuso de autoridade, nos termos da Lei nº. 13.869/19.
O elemento subjetivo do injusto penal é o dolo (direto ou eventual), ou seja, a vontade livre e consciente de perseguir alguém, perturbando-se-lhe a liberdade física ou psíquica e a sua tranquilidade, não se exigindo um resultado específico, pois não se trata de crime material (na classificação tradicional), exigindo-se, tão-somente, que se prove, induvidosamente, a intenção do agente de perseguir o ofendido. Não há, portanto, falar-se em exigência de elemento subjetivo específico para a configuração do tipo penal. A propósito, caso o agente, por erro, acredite que está agindo legitimamente (secundum jus), exclui-se a responsabilidade penal.
A consumação do delito dar-se-á quando a vítima, efetivamente, tomar conhecimento da perseguição, tendo a sua privacidade, a sua tranquilidade ou a sua liberdade (física ou psíquica) seriamente perturbada; assim, caso a vítima desconheça a perseguição, inexiste crime consumado, podendo estar caracterizada a tentativa, nada obstante, na prática, ser de difícil configuração; de toda maneira, como se trata (conforme veremos adiante) de crime de ação penal pública condicionada, se a vítima oferece a representação, evidentemente, o crime consumou-se, pois o ofendido tomou conhecimento da perseguição.
Relevante notar que o novo tipo penal caracteriza-se pela sua subsidiariedade, restando absorvido quando for elementar de outro crime ou meio de execução para a prática de conduta penal mais grave. Assim, se a perseguição não é um fim em si mesma, mas um crime-meio, não subsiste crime autônomo, podendo a conduta vir a constituir elemento (essencial ou acidental) de outro tipo penal, como, por exemplo, constrangimento ilegal (art. 146, CP), homicídio (art. 121, CP), roubo (art. 157, CP), extorsão (art. 158, CP), estupro (art. 213, CP), abuso de autoridade (Lei nº. 13.869/19), crime contra as relações de consumo (art. 71 da Lei nº. 8.078/90), etc.; nestes casos, haverá sempre um crime único.
Ressalta-se, neste aspecto, que a nova lei determina a aplicação da pena sem prejuízo da sanção penal correspondente à violência, ou seja, resultando da perseguição a prática de violência (que não constitua, por si só, um crime-fim), estar-se-á diante de concurso formal de crimes com eventuais lesões corporais leves ou graves, com aplicação cumulativa de penas.
Conforme a doutrina tradicional, o delito pode ser classificado como crime comum (no que diz respeito aos sujeitos, ressalvando-se a possibilidade do crime de abuso de autoridade), de execução livre (a lei não estabelece o meio pelo qual se realiza a perseguição, ressaltando-se a impropriedade da previsão genérica), subsidiário (conforme exemplificado acima), unissubjetivo ou plurissubjetivo (pode ser praticado por uma só pessoa ou mais de uma), plurissubsistente (exige-se a prática de atos reiterados de perseguição), formal (o que não impede, apesar de raro, a possibilidade de tentativa) e comissivo próprio (afinal, perseguir pressupõe ação).
Quanto à ação penal, trata-se de crime que exige a representação da vítima, ainda que se trate de crime praticado em situação de violência doméstica e familiar.
A pena prevista é de reclusão de seis meses a dois anos, e multa, prevendo-se uma majorante (quando a pena será aumentada de metade) se o crime for cometido contra criança, adolescente, idoso ou mulher (em razão da condição de sexo feminino); mediante concurso de duas ou mais pessoas; ou com o emprego de arma (seja ou não de fogo).
Não é possível a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, pois se trata de crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, fato que impede a substituição, conforme estatui o art. 44, I, do Código Penal.
Considerando-se que se trata de crime de menor potencial ofensivo, a competência será do Juizado Especial Criminal, observando-se o procedimento sumaríssimo previsto no art. 98, I, da Constituição e na Lei nº. 9.099/95, permitindo-se a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, não sendo o caso, em regra, de lavratura do auto de prisão em flagrante (arts. 69, 72, 74, 76 e 89 da referida lei), salvo quando se tratar de crime praticado em situação de violência doméstica e familiar (em razão do art. 41 da Lei nº. 11.340/96) e no caso da incidência da majorante acima referida, tendo em vista a incidência da causa de aumento de pena sobre a pena máxima cominada abstratamente.
Já a competência territorial para o processo será a do lugar onde o crime se consumar, nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal; no caso incomum de tentativa, no lugar onde foi praticado o último ato de execução.
Notas e Referências
[1] “Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena - prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”
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