Isabel Fauth
Mestranda em Direito pela Universidade La Salle, Canoas. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. Delegada de Polícia do Estado de Santa Catarina.
Deve o leitor estar se perguntando em que medida a persecução penal relaciona-se com o tema semanalmente tratado nesta coluna: o Direito e suas relações com a Sociedade de Consumo. Tratará o texto dos procedimentos relacionados aos crimes contra o consumidor? Não hoje. Abordar-se-á, exatamente como o título indica, o consumo dos próprios atos de persecução penal, hodiernamente, mercantilizados pela indústria cultural. Mais que mera notícia, violência, crime e controle são mercadorias, informação transmutada em produto de consumo pelos meios de comunicação.
Curiosamente, (a) o modelo de produção industrial, (b) a prisão como a conhecemos hoje e (c) a imprensa têm suas origens na sociedade ocidental do século XV. Foi o modelo de produção de riquezas que atribuiu à prisão, além do castigo, a função de contenção dos excluídos e manipulação de sua força de trabalho. No mesmo período histórico, com a criação da prensa por Guttenberg, começaram a circular os primeiros jornais, fazendo nascer a imprensa que mais tarde teria o papel de fiscalizar o exercício do poder estatal[1]. Desde então, sistema punitivo e mídia mantem acentuada interação[2], simbiose que se agudiza e se torna mais visível com a consolidação do quarto poder no século XX e a gênese da Sociedade do Espetáculo.
A concepção de Sociedade do Espetáculo permite entender o aprofundamento de tal interação. Ao analisar o modo de produção capitalista, Guy Debord apontou que o incremento da produção de bens exigiu o estímulo ao consumo e a homogeneização dos gostos para o bom escoamento dos bens produzidos em massa. A estandardização do consumo foi levada à efeito por meio da publicidade e, portanto, do apelo imagético. Mas a profusão de imagens tomou tamanha proporção que invadiu todos os aspectos da vida, transformando as relações sociais em representações mediadas por imagens. A imagem é assim destacada como o grande produto da sociedade do consumo[3]. Neste contexto, imagens e enredo pautam as relações intersubjetivas e as pessoas tanto assistem quanto integram o espetáculo, as pessoas, ao mesmo tempo, “influenciam no desenvolvimento e são influenciadas pelo espetáculo”[4], consumem-no e por ele são consumidas. Evidente, neste cenário, o papel dos meios de comunicação na construção das representações, especialmente, o da televisão, que reproduz o mundo em imagens.
Se a lógica mercantil atingiu todos os aspectos da vida, também o fez com relação à violência, que, pelo fascínio e atração que exerce, é explorada pela indústria cultural. Por isso, dentre os muitos espetáculos levados ao consumo dos espectadores estão os procedimentos relacionados à persecução criminal, desde os atos da polícia ostensiva e da polícia judiciária até o processo propriamente dito: julgamento e execução da pena; atos próprios do Estado, transformados em entretenimento.
Note-se que os meios de comunicação, como sociedades empresárias que são, almejam o lucro por meio da venda de seu produto. Em razão desta lógica, o interesse preexistente pela violência é estimulado com a moldagem do produto aos gostos do consumidor e o processo penal midiático emerge como produto altamente vendável e lucrativo. A complexidade da vida é reduzida, simplificada, espetacularizada, a fim de que seja facilmente inteligível e, assim, consumível pelo grande público. Quando o que importa é capturar a atenção da população por meio do espetáculo, ao esclarecimento restam apenas espaços secundários[5].
Além da simplificação, como estratégia mercadológica para aquisição de credibilidade e investimentos, o discurso produzido pela mídia vai ao encontro das expectativas do público e dos clientes anunciantes. É por isso homogêneo e homogeneizante de opiniões, à medida que apresenta narrativas conformadas aos valores sociais preponderantes e que utilizam de rótulos/categorias simbólicas – criminoso, traficante, corrupto – aptas à construção de realidades[6].
Neste tempo marcado pela inquietação coletiva, a criação, seleção e edição das informações-notícias a serem veiculadas e, especialmente, daquelas transformadas em mercadorias-notícia, são norteadas pelo generalizado sentimento de medo, pela insegurança e pela demanda a expansão do direito penal. A mídia tanto se alimenta quanto reforça tais nuances da sociedade de risco. “Eis o paradoxo das representações midiáticas da criminalidade: ao fascínio que elas provocam corresponde o alarme e o medo a que também dão causa”[7].
Consequentemente, em desconexão com dados empíricos e estudos sobre criminalidade, as narrativas apresentadas pelos meios de comunicação enfatizam “o dogma penal” e a “criminalização provedora”[8]. O discurso punitivista é potencializado pelos programas que tratam da criminalidade de forma sensacionalista, pois, “as ‘soluções para a criminalidade’ vendidas por esses programas já estão impregnadas de forma quase irremediável no imaginário social, que foi capturado pelas estratégias de simplificação” [9]. Há uma profusão de discursos que demandam a criminalização de condutas e o recrudescimento das sanções penais como solução (falsa e simplista) para a criminalidade e, inclusive, para outros problemas sociais. Mais do que isso, os discursos de ódio[10] veiculados pela mídia parecem fomentar práticas que extrapolam os limites legais e legitimar a violência, tanto física, quanto simbólica, dos agentes do Estado.
Neste contexto, no processo penal do espetáculo não há espaço para a realização da finalidade maior do processo: a proteção de direitos fundamentais. Direitos são concebidos como entraves aos interesses do Estado e do mercado e, portanto, não agradam o público espectador, não geram audiência, não produzem lucro. Logo, “a dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito – marcado por limites ao exercício do poder –, desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento” [11]. E, em tal contexto, no espetáculo maniqueísta que contrapõem mocinhos e bandidos na luta do bem contra o mal[12], a mídia eleva milhões de brasileiros à condição de empreendedores morais, eleva servidores públicos à condição de heróis.
Notas e Referências
[1] Esta que subscreve não pretende negar o poder de crítica e fiscalização exercido pelos profissionais da mídia. Tampouco ignora a capacidade de reflexão do público, que recentemente ganha destaque nos estudos sobre recepção levados a efeito pelas teorias da comunicação. Entretanto, considerando os limites deste espaço e a necessidade de enfrentamento do tema de maneira pontual, tais questões não receberão, aqui, atenção.
[2] GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 9.
[3] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[4] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 11.
[5] KHALED JR., Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do Direito: Letramento, 2016. p. 151-157.
[6] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007. p. 44-58.
[7] GOMES, op.cit., p. 87-110.
[8] O dogma penal consiste na afirmação da pena como resposta necessária ao crime, enquanto a ideia de criminalização provedora corresponde à crença de que a criminalização de condutas ensejaria mudanças de comportamento. NATALINO, op. cit., p. 58-71.
[9] KHALED JR., op. cit., p. 156.
[10] NATALINO, 2007. Sobre este aspecto, merece destaque o estudo empírico realizado por Natalino, consistente na análise do discurso, análise de conteúdo e análise de argumento de notícias sobre criminalidade veiculadas por telejornais.
[11] CASARA, op. cit., p. 12.
[12] CASARA, op. cit., p. 12-13.
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