PERSECUÇÃO PENAL EMBALADA PARA O CONSUMO  

09/11/2018

 

Isabel Fauth

Mestranda em Direito pela Universidade La Salle, Canoas. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. Delegada de Polícia do Estado de Santa Catarina.

Deve o leitor estar se perguntando em que medida a persecução penal relaciona-se com o tema semanalmente tratado nesta coluna: o Direito e suas relações com a Sociedade de Consumo. Tratará o texto dos procedimentos relacionados aos crimes contra o consumidor? Não hoje. Abordar-se-á, exatamente como o título indica, o consumo dos próprios atos de persecução penal, hodiernamente, mercantilizados pela indústria cultural. Mais que mera notícia, violência, crime e controle são mercadorias, informação transmutada em produto de consumo pelos meios de comunicação.

Curiosamente, (a) o modelo de produção industrial, (b) a prisão como a conhecemos hoje e (c) a imprensa têm suas origens na sociedade ocidental do século XV. Foi o modelo de produção de riquezas que atribuiu à prisão, além do castigo, a função de contenção dos excluídos e manipulação de sua força de trabalho. No mesmo período histórico, com a criação da prensa por Guttenberg, começaram a circular os primeiros jornais, fazendo nascer a imprensa que mais tarde teria o papel de fiscalizar o exercício do poder estatal[1]. Desde então, sistema punitivo e mídia mantem acentuada interação[2], simbiose que se agudiza e se torna mais visível com a consolidação do quarto poder no século XX e a gênese da Sociedade do Espetáculo.

A concepção de Sociedade do Espetáculo permite entender o aprofundamento de tal interação. Ao analisar o modo de produção capitalista, Guy Debord apontou que o incremento da produção de bens exigiu o estímulo ao consumo e a homogeneização dos gostos para o bom escoamento dos bens produzidos em massa. A estandardização do consumo foi levada à efeito por meio da publicidade e, portanto, do apelo imagético. Mas a profusão de imagens tomou tamanha proporção que invadiu todos os aspectos da vida, transformando as relações sociais em representações mediadas por imagens. A imagem é assim destacada como o grande produto da sociedade do consumo[3]. Neste contexto, imagens e enredo pautam as relações intersubjetivas e as pessoas tanto assistem quanto integram o espetáculo, as pessoas, ao mesmo tempo, “influenciam no desenvolvimento e são influenciadas pelo espetáculo”[4], consumem-no e por ele são consumidas. Evidente, neste cenário, o papel dos meios de comunicação na construção das representações, especialmente, o da televisão, que reproduz o mundo em imagens.

Se a lógica mercantil atingiu todos os aspectos da vida, também o fez com relação à violência, que, pelo fascínio e atração que exerce, é explorada pela indústria cultural. Por isso, dentre os muitos espetáculos levados ao consumo dos espectadores estão os procedimentos relacionados à persecução criminal, desde os atos da polícia ostensiva e da polícia judiciária até o processo propriamente dito: julgamento e execução da pena; atos próprios do Estado, transformados em entretenimento.

Note-se que os meios de comunicação, como sociedades empresárias que são, almejam o lucro por meio da venda de seu produto. Em razão desta lógica, o interesse preexistente pela violência é estimulado com a moldagem do produto aos gostos do consumidor e o processo penal midiático emerge como produto altamente vendável e lucrativo. A complexidade da vida é reduzida, simplificada, espetacularizada, a fim de que seja facilmente inteligível e, assim, consumível pelo grande público. Quando o que importa é capturar a atenção da população por meio do espetáculo, ao esclarecimento restam apenas espaços secundários[5].

Além da simplificação, como estratégia mercadológica para aquisição de credibilidade e investimentos, o discurso produzido pela mídia vai ao encontro das expectativas do público e dos clientes anunciantes. É por isso homogêneo e homogeneizante de opiniões, à medida que apresenta narrativas conformadas aos valores sociais preponderantes e que utilizam de rótulos/categorias simbólicas – criminoso, traficante, corrupto – aptas à construção de realidades[6].

Neste tempo marcado pela inquietação coletiva, a criação, seleção e edição das informações-notícias a serem veiculadas e, especialmente, daquelas transformadas em mercadorias-notícia, são norteadas pelo generalizado sentimento de medo, pela insegurança e pela demanda a expansão do direito penal. A mídia tanto se alimenta quanto reforça tais nuances da sociedade de risco. “Eis o paradoxo das representações midiáticas da criminalidade: ao fascínio que elas provocam corresponde o alarme e o medo a que também dão causa”[7].

Consequentemente, em desconexão com dados empíricos e estudos sobre criminalidade, as narrativas apresentadas pelos meios de comunicação enfatizam “o dogma penal” e a “criminalização provedora”[8]. O discurso punitivista é potencializado pelos programas que tratam da criminalidade de forma sensacionalista, pois, “as ‘soluções para a criminalidade’ vendidas por esses programas já estão impregnadas de forma quase irremediável no imaginário social, que foi capturado pelas estratégias de simplificação” [9]. Há uma profusão de discursos que demandam a criminalização de condutas e o recrudescimento das sanções penais como solução (falsa e simplista) para a criminalidade e, inclusive, para outros problemas sociais. Mais do que isso, os discursos de ódio[10] veiculados pela mídia parecem fomentar práticas que extrapolam os limites legais e legitimar a violência, tanto física, quanto simbólica, dos agentes do Estado.

Neste contexto, no processo penal do espetáculo não há espaço para a realização da finalidade maior do processo: a proteção de direitos fundamentais. Direitos são concebidos como entraves aos interesses do Estado e do mercado e, portanto, não agradam o público espectador, não geram audiência, não produzem lucro. Logo, “a dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito – marcado por limites ao exercício do poder –, desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento” [11]. E, em tal contexto, no espetáculo maniqueísta que contrapõem mocinhos e bandidos na luta do bem contra o mal[12], a mídia eleva milhões de brasileiros à condição de empreendedores morais, eleva servidores públicos à condição de heróis.

 

Notas e Referências

[1] Esta que subscreve não pretende negar o poder de crítica e fiscalização exercido pelos profissionais da mídia. Tampouco ignora a capacidade de reflexão do público, que recentemente ganha destaque nos estudos sobre recepção levados a efeito pelas teorias da comunicação. Entretanto, considerando os limites deste espaço e a necessidade de enfrentamento do tema de maneira pontual, tais questões não receberão, aqui, atenção.

[2] GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal.  Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 9.

[3] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo.  Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[4] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 11.

[5] KHALED JR., Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do Direito: Letramento, 2016. p. 151-157.

[6] NATALINO, Marco Antonio Carvalho.  O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. São Paulo: Método, 2007. p. 44-58.

[7] GOMES, op.cit., p. 87-110.

[8] O dogma penal consiste na afirmação da pena como resposta necessária ao crime, enquanto a ideia de criminalização provedora corresponde à crença de que a criminalização de condutas ensejaria mudanças de comportamento. NATALINO, op. cit., p. 58-71.

[9] KHALED JR., op. cit., p. 156.

[10] NATALINO, 2007. Sobre este aspecto, merece destaque o estudo empírico realizado por Natalino, consistente na análise do discurso, análise de conteúdo e análise de argumento de notícias sobre criminalidade veiculadas por telejornais.

[11] CASARA, op. cit., p. 12.

[12] CASARA, op. cit., p. 12-13.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Blue Building // Foto de: PublicDomainPictures // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/architecture-blue-building-business-22039/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura