Perigo: retrocesso legislativo – ou trancando as portas das prisões

03/06/2017

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 03/06/2017

1 - Do Projeto de Lei: 

Em meio à crise política que assola o país, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou na última quarta-feira (31), Projeto de Lei (PLS 499/2015) de autoria do senador Lasier Martins (PDT-RS) que estabelece a exigência de parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC) e do exame criminológico para que o preso/interno possa progredir de regime de cumprimento de pena. A anacrônica e reacionária proposta recebeu parecer favorável do relator, senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), e, caso não haja recurso para votação pelo Plenário do Senado, será enviada direto à Câmara dos Deputados.

Como tudo que é ruim, ainda pode piorar, além da citada medida, o referido projeto altera a Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e a Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos) para aumentar os prazos para a progressão de regime: mínimo de 2/3 (dois terços) da pena para crimes não hediondos e 4/5 (quatro quinto) para crimes hediondos e para os reincidentes.

Segundo o autor do desastrado projeto, o fim da exigência do parecer da Comissão Técnica de Classificação, bem como do exame criminológico para progressão de regime feriu o princípio da individualização da pena. Para o senador Lasier Martinso nosso sistema penitenciário brasileiro não atende de forma satisfatória às finalidades de recuperação do criminoso...

O relator do Projeto de Lei, senador Ronaldo Caiado, em consonância com Lasier, defendeu as alterações propostas sob o falso argumento de que a atual legislação fomenta o crime.

Por outro lado, o líder da minoria no Senado, senador Humberto Costa (PT-PE), encaminhou voto contrário ao PLS 499/2015. Para o senador Humberto Costa é preciso acabar com pelo encarceramento no país. Acentuou o senador que apesar de termos a quarta maior população carcerária do mundo, não vemos a redução da criminalidade. Ainda, segundo o líder da minoria, o valor do exame criminológico é baixo ou nenhum, sendo, inclusive, alvo de criticas e questionamentos do Conselho Federal de Psicologia.[1]

2 - Da Comissão Técnica de Classificação (CTC) e do Exame Criminológico:

Segundo a Exposição de Motivos (item 26) da Lei de Execução Penal “a classificação dos condenados é requisito fundamental para demarcar o início da execução, cientifica das penas privativas da liberdade e da medida de segurança detentiva”. Trata-se a classificação, ainda segundo a Exposição de Motivos, de “desdobramento lógico do princípio da proporcionalidade da pena, inserido entre os direitos e garantias constitucionais”.[2]

De igual modo, o exame criminológico surge na Lei de Execução Penal como instrumento indispensável ao tratamento penitenciário, destinado a classificar e, individualizar a execução do cumprimento da pena. De acordo com a Exposição de Motivos da LEP “a gravidade do fato delituoso ou as condições pessoais do agente, determinantes da execução em regime fechado, aconselham o exame criminológico, que se orientará no sentido de conhecer a inteligência, a vida afetiva e os princípios morais do preso, para determinar sua inserção no grupo com o qual conviverá no curso da execução da pena” (item 31).

Em relação ao exame criminológico, Álvaro Mayrink da Costa que dedicou livro sobre o tema escreve que: “o exame criminológico do delinquente permite o conhecimento integral do homem, sem o qual não se poderá vislumbrar uma justiça eficaz e apropriada uma vez que a aplicação fria da norma penal, tomando como ponto de partida um critério de valoração político-jurídica, inevitavelmente conduziria a enormes injustiças e monstruosos equívocos”.

É certo que a Lei nº 10.792/2003 que deu nova redação ao artigo 112 da Lei de Execuções Penais, substituindo a necessidade do exame criminológico para a progressão de regime pela simples comprovação do bom comportamento carcerário.

Atualmente, em razão da Súmula Vinculando nº 26 do STF (Supremo Tribunal Federal), restabeleceu-se, em caráter excepcional, a possibilidade de realização do exame criminológico para efeito de progressão em crime hediondo ou a ele equiparado, quando o juiz da execução assim entender necessário, em decisão fundamentada.

Segundo os defensores do exame criminológico, ele tem por escopo avaliar a personalidade do condenado, a fim de observar sua periculosidade, disposição para o crime, sensibilidade para a pena e possível correção.

No que pese a Exposição de Motivo da Lei de Execução Penal, bem como aqueles que defendem a realização do exame criminológico nos termos expostos, verifica-se que tanto a classificação técnica do condenado como a realização do controverso exame criminológico se baseiam em conceito vago, impreciso e de caráter cientifico duvidoso como o da periculosidade.

A periculosidade é um juízo de probabilidade de que novos crimes sejam praticados. Um juízo sobre o comportamento futuro do agente, constituindo-se uma verdadeira “ficção jurídica”, posto que não exista fórmula positiva ou científica para determinar a periculosidade do indivíduo.  A periculosidade, como bem acentua Miguel Reale Júnior, “sempre foi o recurso dos sistemas políticos totalitários (...)”. [3]

A periculosidade não pode nem deve ser simplesmente presumida, mas plenamente comprovada. Sua apreciação, no dizer de Romeo Casabona[4], implica juízo naturalístico (não ético, não moral ou não de valor), cálculo de probabilidade, que se desdobram em dois momentos, derivados de sua própria definição: a comprovação da qualidade sintomática de perigo (diagnóstico de periculosidade), por um lado, e a comprovação da relação entre tal qualidade e o futuro criminal do agente (prognose criminal).

3 - Da Progressão de Regime: 

No que se refere à progressão de regime, não é despiciendo lembrar que o sistema progressivo de cumprimento da pena tem sua origem no sistema inglês desenvolvido pelo capitão Alexander Maconochie, no ano de 1840, na Ilha de Norfolk, na Austrália, conhecido também como sistema de “vales” ou “marcas” em que a duração da pena era medida pelo trabalho e a boa conduta do condenado. Em 1857 o referido sistema foi aperfeiçoado por Walter Crofton, diretor das prisões na Irlanda, sempre visando preparar o regresso do interno (recluso) para a sociedade. O referido regime era composto por quatro fases: 1) reclusão celular diurna e noturna; 2) reclusão celular noturna e trabalho diurno; 3) período, denominado por Crofton, como “intermediário” (entre a prisão em local fechado e a liberdade condicional), no qual o preso trabalhava ao ar livre, no exterior do estabelecimento penal; 4) liberdade condicional, onde o preso era libertado desde que cumprida determinadas condições, até atingir a liberdade definitiva.

O Código Penal brasileiro – que adota o sistema progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade - prevê três regimes de cumprimento da pena: regime fechado, semiaberto e aberto. De acordo com o Código Penal, considera-se: “regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; regime sem-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; regime aberto a execução da pena em cãs de albergado ou estabelecimento adequado”. Estabelece, ainda, o Código Penal que: “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas de forma progressiva, segundo o mérito do condenado...” (art. 33, § 2º).

O Projeto de Lei em comento praticamente acaba com a progressão de regime, principalmente, em relação aos crimes hediondos e equiparados. A exigência do cumprimento de 4/5 (quatro quintos) da pena para que o condenado possa requerer a progressão, equivale a dizer, por exemplo, que o condenado a pena de 10 (dez) anos de reclusão terá que cumprir para requerer a progressão – entre o requerimento e a decisão que defere a progressão decorre em determinados casos meses e até anos – pelo menos 08 (oito) anos da pena total de 10, ou seja, 80% da pena. O condenado a pena de 20 (vinte) anos terá que cumpri pelo menos 16 (dezesseis).

Em se tratando de condenado por crime não considerado hediondo ou a ele equiparado, a exigência de cumprimento de pelo menos 2/3 (dois terços) é igualmente absurda e despropositada. Neste caso, o condenado a pena de 10 (dez) anos, v. g., terá que cumprir quase 07 (sete) anos para requerer a progressão de regime.

Ainda no que diz respeito à progressão de regime, não é despiciendo lembrar que no dia 23 de fevereiro de 2006, o pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) enfrentou a questão da inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, que previa o cumprimento da pena em regime integralmente fechado aos condenados por crimes hediondos, pela prática da tortura, por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e pela prática de terrorismo. Naquela oportunidade, por maioria de votos, o STF considerou inconstitucional o dispositivo legal que vedava a progressão de regime por atentar justamente contra o princípio constitucional da individualização da pena.

Na ocasião, o ministro relator Marco Aurélio Mello destacou que:

tenho o regime de cumprimento da pena como algo que, no campo da execução, racionaliza-a, evitando a famigerada ideia do “mal pelo mal causado” e que sabidamente é contrária aos objetivos do próprio contrato social. A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentiva-o à correção de rumo e, portanto, a empreender um comportamento penitenciário voltado à ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social. O que se pode esperar de alguém que, antecipadamente, sabe da irrelevância dos próprios atos e reações durante o período no qual ficará longe do meio social e familiar e da vida normal que tem direito um ser humano; que ingressa em uma penitenciária com a tarja da despersonalização? 

4 - Conclusão:

Como bem observou o ilustre magistrado e festejado processualista Alexandre Morais da Rosa, o referido PL “é uma fraude”.

O autor do PLS 499/2015 senador Lasier Martins afirmou que “o nosso sistema penitenciário brasileiro não atende de forma satisfatória às finalidades de recuperação do criminoso...

Realmente, o sistema penitenciário não atende satisfatoriamente às finalidades de recuperação do criminoso. Ocorre que em nenhuma prisão do Planeta o chamado “criminoso” se recupera. Recuperação, regeneração, ressocialização ou reintegração não passam de mais uma grande farsa do sistema penal.

Uma das questões mais intrigantes referentes às teorias que buscam a legitimação das funções da pena é o fim contraditório atribuído à pena de prisão. Como punir e castigar o preso e ao mesmo tempo reformá-lo? Como ressocializar o preso privando-o da vida em sociedade?

Manuel Pedro Pimentel salientou que: “O pássaro criado no cativeiro fica condicionado a viver em gaiolas, não tendo condições para suprir as próprias necessidades logo depois de posto em liberdade. Muitos preferem voltar para a gaiola...”

Outra contradição da pena está no seu próprio caráter retributivo e de reforma do condenado. Posto que quanto mais duradoura for à pena privativa de liberdade, maiores serão suas contradições e mais distante estará o preso de uma adaptação à vida fora da prisão. Por mais incrível que possa parecer, aquele que ficou preso durante anos acaba se incorporando a “sociedade prisional”, isto porque dentro das prisões existem outros costumes, outra linguagem, outros “códigos”, outras “leis” passam a vigorar, as quais são impostas pelo perverso sistema penitenciário. Aquele que ousar afrontar as normas estabelecidas pelo sistema certamente será punido, muitas das vezes, com a pena capital.

Referindo-se aos “recursos para o bom adestramentoMichel Foucault afirma que: “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício...[5]

Por todo exposto, pela necessidade premente de se rever a cultura do encarceramento em massa, que ao longo dos anos, principalmente das últimas duas décadas, tem levado a incapacidade e a morte vários seres humanos, é preciso repensar o binômio crime/prisão. É imprescindível buscar alternativas ao atual sistema de punição degradante e desumano. Mas, para isso, é forçoso desmascarar o discurso das teorias manifestas (legitimantes) da pena.  É imperativo que os penalistas e os criminólogos se desprendam de uma vez por todas do falacioso discurso da (re)generação, (re)educação, (re)socialização e (re)integração que, tão somente, contribuem para justificar a prisão e fomentar o encarceramento.


Notas e Referências:

[1] Resolução: CFP Nº 009/2010 - Regulamenta a atuação do psicólogo no sistema prisional.

Art. 4º. Em relação à elaboração de documentos escritos:

a) Conforme indicado nos Art. 6º e 112º da Lei n° 10.792/2003 (que alterou a Lei n° 7.210/1984), é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a execução da pena do sentenciado;

b) O psicólogo, respaldado pela Lei n° 10792/2003, em sua atividade no sistema prisional somente deverá realizar atividades avaliativas com vistas à individualização da pena quando do ingresso do apenado no sistema prisional. Quando houver determinação judicial, o psicólogo deve explicitar os limites éticos de sua atuação ao juízo e poderá elaborar uma declaração conforme o Parágrafo Único. Parágrafo Único. A declaração é um documento objetivo, informativo e resumido, com foco na análise contextual da situação vivenciada pelo sujeito na instituição e nos projetos terapêuticos por ele experienciados durante a execução da pena. Posteriormente a citada Resolução foi questionada pelo Ministério Público que exigiu que os psicólogos realizassem o exame criminológico.

[2] COSTA, Álvaro Mayrink da. Exame criminológico. 4ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1993.

[3] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

[4] ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Peligrosidad y derecho penal preventivo. Barcelona: Bosch, 1986.

[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.


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. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Plenário do Senado // Foto de: Senado Federal // Com alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/34537477962

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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