Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 07/11/2015
“Em 1998, a Direção Nacional do Regime Penitenciário da República da Bolívia recebeu uma carta assinada por todos os presos de uma prisão do vale de Cochabamba.
Os preso pediam às autoridades que mandassem aumentar a altura do muro da prisão, porque os vizinhos pulavam com facilidade e roubavam a roupa que eles tinham posto para secar no varal.
Como não havia orçamento disponível, não houve resposta. E como não houve resposta, os presos não tiveram outro remédio a não ser pôr mãos à obra. E ergueram um muro bem alto, com tijolos de barro e de palha, para se protegerem dos cidadãos que viviam nos arredores da prisão”.
Eduardo Galeano
Sim, as prisões são um perigo. Perigo para os presos, perigo para os agentes penitenciários. Perigo para o diretor e para os funcionários. Perigo para os familiares dos presos. Perigo para os presos doentes que caminham para morte e perigo para os saudáveis que devem adoecer. Perigo para o preso que está na enfermaria. Perigo para os enfermeiros que tratam dos presos. Perigo para os novos presos e para os presos novos. Perigo para os velhos presos e os presos velhos, que morrem mais depressa. Perigo para o homicida e, também, para o latrocida. Perigo para o estuprador. Perigo para o valente e para o covarde. Perigo para o preso fraco, mas também perigo para o que se acha forte. Perigo para o perigoso e para o medroso. Perigo para o ateu e para o crente. Perigo durante o banho de sol. Perigo nas celas e, também, nas galerias de convívio. Perigo para o preso que diz sim e, também, para o que diz não. Perigo para o que come a ração do dia e perigo para o que nada come. Perigo para o dedo-duro e para o dedurado. Perigo para o que está no isolamento. Perigo de dia e de noite. Perigo para escolta e para os escoltados. Perigo para o carcereiro e para o encarcerado. Perigo na primavera e no outono. Perigo nos dias quentes e nos dias frios.
O perigo persegue até mesmo aqueles que saíram da prisão. O perigo de voltar a ser preso. O perigo da reincidência. O perigo de ficar desempregado. O perigo que acompanha o estigma da prisão. O perigo de ser assassinado ou mesmo de assassinar. Como já advertiu Roberto Lyra[1], “a prisão não é somente criminógena, é criminosa”.
O Estado “bandido” – violador das garantias fundamentais e dos direitos humanos – exige do indivíduo que cumpra a lei, mas ele é o primeiro a infligi-la. Além das condições degradantes e sub-humanas a que são submetidos os presos, muitos deles acabam sendo assassinados dentro do próprio presídio. No ano de 2013 ao menos 218 pessoas presas foram vítimas de homicídio dentro da prisão, o que representa uma média de um preso morto a cada dois dias.
Ao avaliar recentes episódios de violência em presídios de vários estados do país, o representante para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (Acnudh), Amerigo Incalcaterra, afirmou que o Brasil precisa rever sua política criminal baseada “no uso excessivo da privação de liberdade como punição a crimes”. Para Incalcaterra, “não é admissível que, no Brasil, a violência e as mortes dentro das prisões sejam percebidas como normais e cotidianas. As autoridades brasileiras devem reagir com urgência para construir um sistema carcerário respeitoso da dignidade humana, com envolvimento de todos os poderes do Estado e em conformidade com os compromissos e obrigações internacionais do país”.
O Brasil encarcera muito e muito mal. Eduardo Galeano anota que: “Graças à tortura, que faz um mudo cantar, muitos prisioneiros estão na cadeia por delito que jamais cometeram: mais vale um inocente atrás das grades do que um culpado em liberdade. Outros confessaram assassinatos que parecem brinquedos de criança ao lado das façanhas de alguns generais, ou roubos que pareciam piadas se comparados com as fraudes de nossos mercadores e banqueiros ou com as comissões recebidas por políticos a cada vez que vendem um pedaço do país”.
Além de aprisionar indevidamente, exageradamente e, muitas vezes, injustamente, o Estado assassina por ação e por omissão. A violência policial em 2014 foi a maior dos últimos 11 anos em São Paulo. O crescimento provocou um recorde: no ano passado, 22% das mortes na capital foram praticadas por policiais em serviço. Foram ao todo 343 mortes, mais do que o dobro do registrado em 2013, quando houve 158. Entre 2005 e 2014, o Estado do Rio de Janeiro registrou 8.466 homicídios decorrentes de intervenção policial.
Para se ter uma ideia da proporção da violência policial, ou melhor, estatal, recomenda-se a leitura da obra “Indignos de vida...” de Orlando Zaccone[2]. Na citada obra Zaccone informa que a Anistia Internacional registrou no ano de 2011, nos vinte países que mantém a pena de morte, em todo o mundo, salvo a China que não fornece dados, 676 pessoas executadas. No mesmo período, somente São Paulo e o Rio de Janeiro produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que os executados pela pena de morte em todos os países pesquisados.
O Estado “bandido” ora age como homicida, por meio dos agentes da repressão ora como sequestrador – privando da liberdade - através do encarceramento. Tanto no primeiro como no segundo caso as vítimas são as mesmas: pobres, jovens, negros, favelados, semianalfabetos, ou seja, os vulneráveis de sempre.
Na perspectiva da criminologia crítica, a deslegitimação da prisão, de acordo com Vera Regina P. de Andrade[3], está inserida numa dimensão mais ampla, “que é a deslegitimação do sistema penal (do modelo punitivo moderno ocidental como um todo), no âmbito de uma estrutura social. O que o criticismo produziu, o que a Historiografia e a Criminologia da reação social e crítica produziram foi certa leitura da crise da prisão e do sistema penal como uma crise estrutural, e não meramente conjuntural, significando que o modelo é que está em cheque, porque a contradição entre o prometido, o descumprido e o realmente cumprido é inerente ao modelo. Entretanto, as funções simbólicas da prisão sobrevivem indefinitivamente, nós continuamos acreditando no Papai Noel, acreditando que nós podemos ressocializar, reeducar, readaptar, reinserir, reintegrar (ideologia dos res) por meio da prisão”.
Como se sabe, o discurso da “ideologia dos res” não passa de uma grande farsa do discurso legitimador e das funções declaradas (manifestas) da pena. Na realidade, os chamados “regenerado”, “reintegrado”, “reeducado”, “reinserido”, são aqueles que foram “domesticados” pelo sistema penal, foram os que se transformaram, no dizer de Foucault[4], em “corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”. Como escreveu Dostoievski, o regenerado é apenas “uma múmia ressequida e meio louca”.
Haverá um dia que os presos do país vão fazer como os presos da Bolívia. Vão aumentar o tamanho do muro dos presídios para se protegerem de nós que vivemos nos arredores das prisões.
Sim, as prisões são perigosas e continuarão sendo, enquanto existirem.
Notas e Referências:
[1] LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975.
[2] D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des) ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
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