PELO DIREITO DE SER (SEMPRE MAIS) HUMANO – PARTE II: SUSTENTABILIDADE SOCIAL E A SOCIEDADE DA TRANSPARÊNCIA

15/02/2018

Na semana passada[1], apresentei ao leitor e leitora alguns fundamentos necessários para se compreender o direito de ser humano. Hoje, se torna necessário constatar de que modo essa conquista histórica, ou melhor, essa perpétua utopia civilizatória se manifesta na medida em que as relações humanas e sociais modificam a sua forma de ser e de se pensar. Essa atitude precisa ser cultivada, de modo permanente, pelo Profissional do Direito, se quiser entender o mundo que vive e elaborar, interpretar e aplicar as leis de seu próprio tempo.

Nesse caso, vamos partir de duas situações que expressam essa conquista pelo direito de ser humano. A primeira refere-se à Sustentabilidade Social. A segunda é como identificar – ou não – a presença de relações que entendam os limites e alcance de ser humano na sua socialidade[2]. Já trouxe ao leitor e leitora do Empório vários argumentos que demonstram como a Sustentabilidade é o paradigma de vida e convivência do século XXI. Sob igual pensamento, enfatizei, também, a parca luz que a Sustentabilidade traz para se modificar, transformar o atual modus vivendi impregnado pela miséria, pela acumulação exagerada de capital, pela destruição dos ecossistemas, das pessoas, da fauna e flora, pela exploração do trabalho alheio, pela negação de estratégias que sejam convergentes à preservação e uso dos bens comuns.

A Sustentabilidade exige, para se tornar efetiva, uma profunda, senão radical, mudança no comportamento humano e na sua concepção relacional daqueles que pertencem à família antropos de todos os outros seres vivos nos quais habitam a Terra. Esse acontecimento seria a verdadeira revolução copernicana de nosso tempo. O ser humano, cansado da degradação ao seu redor, empreende atitudes que tornem mais simbiótica a sua condição relacional com a biosfera. Aqui, está um significativo engano: não existem forças capazes de provocar essa sensibilidade no humano enquanto a destruição e a exploração continuarem a serem fontes de lucro.

Será que, a partir dessa lógica, a Sustentabilidade precisa de critérios de maior transparência, de luminosidade quanto ao seu significados e objetivos para trazer um horizonte de viabilidade ao desenvolvimento da vida? Aliás, esse não o marco principal, a grande reivindicação dos países democráticos com relação à corrupção, à proteção da liberdade e igualdade? Afinal, o que se pretende com a aplicação da transparência em todas as formas de expressão coletiva – seja a social, seja a institucional?

A transparência é a panaceia dos povos democráticos contra a natureza sistêmica da corrupção. É a principal defesa contra a dimensão transnacional de sociedades verdadeiramente plutocratas. A sua função instrumental é de demonstrar, de publicizar o que se faz com o capital gerado pelo trabalho, pela indústria, pelo comércio para se desenvolver a maior parte das atividades de um Estado nacional ou, ainda, desse com outros países no sentido de se fomentar uma racionalidade cooperativa que sintetiza essa vontade comum de buscar meios adequados de preservação da vida digna mundial.

No entanto, o excesso de luminosidade[3] é prejudicial tanto para a democracia quanto para a socialidade das relações humanas. Quem acredita que o alcance da transparência se circunscreva tão somente quanto à dimensão pública das atividades governamentais ou, ainda, na proteção de determinados bens juridicamente tuteláveis se equivoca[4]. Há um sério fator que, numa perspectiva social, pode deteriorar as teias de socialidade criadas pelo cotidiano das pessoas.

Segundo Han, o excesso de positividade[5] que se observa em todas as sociedades é fator de sua autofagia. Não existe lugar para a negatividade na ideologia hipócrita do self made man. Tudo é possível, basta ter boa vontade. Tudo é possível, basta acreditar. Tudo é possível, somente é pobre quem quer. Esses são os mantras da atualidade, garantidores de sucesso pessoal e profissional. Não existe lugar para alteridade[6], para a negatividade, para a dialética entre os diferentes, para o mistério de viver e conviver.

O mais significativo exemplo de uma vida dedicada inteiramente às exigências do mercado para se participar ativamente deste jogo chamado democracia e de sua dimensão relacional entre as pessoas pode ser descrita na figura do trabalho. O ato de trabalhar é valor humano no qual traz sentido ao que se cria e se produz. Toda relação de trabalho somente se justifica com a presença de uma outra pessoa. Ninguém trabalha exclusivamente para atender ao seu próprio interesse. A partir desse pensamento, trabalho pressupõe alteridade. As origens de uma sociedade capitalista dependem dessa condição. Aliás, como enfatiza Marx[7]: “[...] Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado”.

EUREKA! A acumulação de capital depende da exploração do ser humano, o qual não tem os meios necessários para competir – em velocidade e quantidade – com as industrias. O ser humano explora outro ser humano e se criam mais e mais nichos de mercado para se atender aos – novos e crescentes – desejos da humanidade.

Na Sociedade da Transparência, contudo, o Outro é eliminado desse jogo. Basta que prevaleça a vontade individual e sua capacidade camaleônica de atender aos interesses que tragam sucesso, comodidade e estabilidade financeira. Como se realiza essa condição: pela hiper exposição da pessoa nas redes sociais virtuais. Transparência, nesse sentido, denota excesso de luminosidade, de desnudez da nossa humanidade, de desencobrimento daquilo que é a matriz de toda a condição relacional, qual seja, qual o segredo que, juntos, se des-cobre e se compartilha?

Não é possível afirmar que, agora, aquelas pessoas que exercem cargos hierarquicamente superiores – seja em qual for o cenário – podem ser consideradas como os genuínos exploradores do trabalho alheio. Essa situação, que reconhece na alteridade sua matriz de significalidade, era clara no tempo do velho Marx. No momento presente deste século XXI essa condição desapareceu. É a própria pessoa que explora, desmedidamente, a sua exposição nas redes sociais, no trabalho para entoar o mantra da alta positividade. A liberdade da realização pessoal autoriza a exploração sem limites da força criativa humana. Quem nega o excesso dessa positividade, quem causa a alienação pessoal em detrimento ao mundo é o próprio ego.  

O mistério do existir se torna raso, plano. Elimina-se qualquer forma de negatividade na qual gera a dúvida, a proximidade, a vontade de conhecer, de experimentar aquilo que extrapola as fronteiras do ego. As relações sociais se assemelham ao cálculo e previsibilidade das ações governamentais orientadas pela transparência. A (hiper)velocidade das relações humanas numa Sociedade da Transparência não pode incluir o tempo próprio de maturação acerca da descoberta sobre o Outro. Nesse caso, o sistema diminui, retarda essa velocidade de tudo conectar e expor. Essa condição, alimentada pelo capital mercantil transnacional, gera o inferno dos iguais, ou seja, uma igualdade transparente é uma igualdade opaca[8].

A transparência, entendida como pilar da dimensão relacional humana, não provoca nenhuma reflexão sobre o mistério que é o Outro e realiza o convite para se sair das certezas habituais criadas pelo ego. Sejamos francos[9]: “[...] O ser humano sequer é transparente para consigo mesmo”. Não existe humanização junto com o Outro, mas apenas um relacionar-se com o vazio. Por esse motivo, a socialidade movida pela transparência é pornográfica[10], obscena, incapaz de fomentar a proximidade, o estar-junto-com-o-Outro-no-Mundo.

Toda relação humana precisa desse momento do mistério, daquilo que se esconde no oculto de cada ser humano, daquilo que povo as galerias subterrâneas das individualidades. É aqui que a epifania surge como o estrondoso trovão. Quando, contudo, o segredo é exposto, perde-se o encantamento da descoberta. A nudez transparente de todo ser fulmina a esperança do convite feito pela socialidade.

A Sociedade da Transparência se manifesta pela coação da exposição. Todos precisam se desfazer de suas totalidades existenciais e serem sinceros uns com os outros. A transparência é medida de violência que segrega ao invés de promover cenários para a inclusão. A imposição da transparência como o imperativo categórico de nosso tempo desconhece aquilo que se forma por atrás de tantas mascaras que utilizamos e permitem a flexibilidade das interações humanas todos os dias. Existem limites inclusive quanto à sinceridade transparente[11].

A partir de todos esses fatos, não é possível existir qualquer manifestação de socialidade numa Sociedade da Transparência. Sem socialidade, a Sustentabilidade Social é apenas uma ideologia criada e disseminada a fim de descrever todas as formas de conectividade entre as pessoas, sendo prejudiciais ou não. A função crítica da Sustentabilidade Social se assemelha ao papel da Ética[12] como vetor de promoção e desenvolvimento da nossa permanente humanização. A dimensão relacional humana não pode ser um nome vazio, não pode insistir nessa coerção imposta pelo imperativo da transparência. O jogo do existir é ambíguo, caleidoscópico, demanda paciência para que, no seu próprio tempo, crie sensações e significados capazes de alterar nosso modus vivendi uns com os outros, sejam humanos, sejam não humanos.   

O direito de ser humano, dentro da lógica da Sustentabilidade Social, jamais elimina a diferença, a negatividade e a alteridade, ao contrário, exige essas presenças como fundamento primeiro da convivência e aperfeiçoamento dos espaços democráticos. A Sociedade da Transparência exige luminosidade para compor as relações entre as pessoas semelhante àquela do século XVIII para afastar o obscurantismo da Idade Média. No entanto, hoje, essa obsessão pela exposição de tudo e todos causa efeitos altamente prejudiciais para o desenvolvimento sadio de nossa psyché. Não é possível viver, tampouco conviver, nas regras desse jogo.

Por esse motivo, a Sustentabilidade Social se orienta por uma luminosidade mais sensível, diferente daquela que cega e desintegra a tessitura relacional humana. Diferente da luminosidade exigida pela transparência, a da Sustentabilidade Social se assemelha a uma vela na qual permite ver o cainho sem retirar os mistérios que estão a cada passo do horizonte. A exigibilidade da Dignidade Humana, por exemplo, somente tem legitimidade legal e social na medida em que compreende as virtudes e vícios do existir e conviver dentro daquilo que lhes é oculto. Esse é o convite. A decisão de aceitá-lo (ou não) depende de cada pessoa no seu próprio tempo.    

 

[1] Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/pelo-direito-de-ser-sempre-mais-humano>. Acesso em: 13 de fev. 2018.

[2] “[...] A socialidade é a capacidade de convivência, mas também de participar da construção de uma sociedade justa, na qual os cidadãos possam desenvolver as suas qualidades e adquirir virtudes”. CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 37.

[3] “[...] Uma total ‘iluminação’ iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnout psíquico. Só a máquina é transparente; a espontaneidade – capacidade de fazer acontecer – e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência”. HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. [Edição Kindle]. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2017, pos. 70-72. 

[4] HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 50-53.

[5] “As instituições políticas e empresariais mudaram o sistema de punição, hierarquia e combate ao concorrente pelas positividades do estímulo, eficiência e reconhecimento social pela superação das próprias limitações”. HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 1102.

[6] “[...] os rostos não se esgotam, mas transcendem pelas (infinitas) experiências compartilhadas. O Rosto quando reconhece Outro, provoca o transcender humano, gera a transformação na qual o sujeito, sozinho, não teria condições de realizá-la”. AQUINO, Sergio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pós-modernidade. Itajaí, (SC): Editora da UNIVALI, 2016, p. 200.

[7] MARX, Karl. O capital: o processo de produção do capital. [Livro 1]. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 690.

[8] HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 809.

[9] HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 77/78.

[10] “[...] O corpo pornográfico é raso, não é interrompido por nada. A interrupção cria uma ambivalência, uma ambiguidade. Essa imprecisão semântica é erótica. [...] É precisamente onde desaparece o mistério em prol da exposição e do desnudamento total que começa a pornografia. Ela é marcada por uma positividade penetrante, incisiva”. HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 518-522

[11] “A coação por exposição explora o visível. A seu modo, a superfície brilhante é transparente, não tendo necessidade de sofrer qualquer outro questionamento e não possuindo estrutura hermenêutica profunda”. HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. pos. 271-273

[12] "[...] a intersubjetividade assimétrica é o lugar de uma transcendência na qual o sujeito, ao mesmo tempo em que conserva sua estrutura de sujeito, tem a possibilidade de não retornar fatalmente a si mesmo, de ser fecundo e - antecipando, digamo-lo - de ter um filho". LÉVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. Tradução de Paul Albert Simon. Campinas, (SP): Papirus, 1998, p. 114.

 

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