PELO DIREITO DE SE SENTIR INJUSTIÇADO  

20/04/2020

Coluna Empório Descolonial / Coordenador Márcio Berclaz

Certa vez, ainda no mundo pré COVID 19, fui demitido de uma empresa que trabalhava como assessor jurídico por exercer minha negritude de modo altivo perante a branquitude que chefiava a companhia. Após comunicar minha rede de afetos sobre o ocorrido, notei que as principais palavras de consolo a mim dirigidas, em ordem de prioridade, eram as seguintes: 1) “Fique bem! Vai passar e logo logo você vai se recolocar profissionalmente porque você é bom”; e 2) “Mas o que será que levou à sua demissão? Será que você não fez nada que justificasse? Nenhuma atitude que desabonasse sua conduta profissional?”.

Em termos raciais de apreciação, isso representa que ao negro é negado o gozo do sentimento de injustiça e não há segunda chance para o negro em espaços sociais dominados pela branquitude. Não falo isso em desagravo aos meus consoladores.  Pelo contrário, a eles minha admiração e gratidão por me terem prestado sentimentos e oportunizado uma análise racial sobre justiça. O faço porque o discurso tem relevância tamanha, que, mesmo sem se dar conta, algumas pessoas são levadas a reproduzir certos padrões de comportamento que talvez elas mesmas discordariam se soubessem como são recebidos.

Por trás do “logo logo você se recoloca profissionalmente porque você é bom” em seguida do “fique bem!” (que significa “Não queremos vê-lo mal”), há uma enunciação cruel que é: “recomponha-se imediatamente e siga firme e forte”. Esse desejo que se presta a alguém querido vem acompanhado, para a negritude, do reforço do que Frantz Fanon[1] vem nos dizendo há tempos: há pressão social para que homens negros e mulheres negras sejam sempre muito melhores e mais evoluídos. Não por acaso, vem prontamente justificado na frase que me diziam em seguida “mas o que será que levou à sua demissão?”, contestando minha avaliação dos fatos e prontamente duvidando do meu discurso.

Ora, questiona-se o motivo que elenquei porque não se admite o racismo no Brasil. Esse é o principal legado do mito da democracia racial inscrito na obra de Gilberto Freyre[2] há décadas e dogma cego a que muitos brasileiros e brasileiras ainda estão apegados. Seu corolário: a reprodução do racismo estrutural[3] - esse sim existente e homicida.

Não é novidade que, para alcançar posições de destaque na sociedade, seja de estima social seja de retorno financeiro[4], o negro tem que ser mais simpático, mais inteligente, mais esforçado, aproximar-se de padrões estéticos ocidentais (ver discussão sobre colorismo[5] por exemplo), não ser um negro raivoso, ser compreensível, ser educado, ser polido, ser comedido... e, ainda!, ser mais inteligente emocionalmente e recuperar-se imediatamente de qualquer situação vexatória ou discriminatória. De preferência, sendo duro, frio, indestrutível e com um sorriso no rosto. Ou seja, ao negro sequer é oportunizado o gozo do sentimento de injustiça.

Para além do que a psicologia social diz e do que tímidas iniciativas de incorporar essas contribuições em outras ciências humanas e nas ciências sociais aplicadas, o que isso tem a ver com o compromisso com a descolonização?

Além do que nós negros e negras vimos afirmando cada vez em maior som, de que não basta não ser racista é necessário ser antirracista[6], isso tem a ver com um processo de humanização do povo preto, que culmina na possibilidade de simplesmente poder sentir-se injustiçado, viver seus lutos sem pressão, poder ser frágil e vulnerável. Como qualquer pessoa branca.

E o que isso tem a ver com o Direito? O direito é um campo do conhecimento que se coloca para resolução de conflitos com fins a consecução da justiça. Logo, deve incluir nas suas pautas teóricas o racismo enquanto problema estrutural e, assim sendo, deve inclui-lo nos aportes das teorias da justiça.

Uma grande contribuição para o campo decolonial é o da noção de sociologia das ausências e das emergências[7] elaborada por Boaventura de Sousa Santos. Segundo essa noção, a não existência de um objeto é um produto construído, de diversas maneiras, por entidades colonizadoras que o desqualificam ou o consideram invisível, não inteligível ou indesejável. O que une essas entidades colonizadoras é uma mesma racionalidade monocultural, que descreve tal objeto como ignorante, atrasado, inferior, particular ou local e improdutivo ou estéril. Nesse sentido, busca transformar objetos impossíveis em objetos possíveis, objetos ausentes em objetos presentes. Essa contribuição é relevante porque eleva a ideia de que se olhando a partir da falta e não da presença é possível construir outros mundos.

Em geral, a representação da negritude é feita no mundo Ocidental pela ausência. Ausência de referências na mídia, na política, na academia, no judiciário... no Direito. Infelizmente, a negritude está mesmo ausente desses espaços e isso diz mais da sociedade do que dos próprios negros[8]. Em contrapartida, a presença negra é quase sempre massificada a partir da criminalidade, da hipersexualização e da subalternidade[9]. Ou seja, a lógica ocidental é a da representação negativa da negritude. Contudo, é possível elencar alguns poucos (e corajosos) juristas que têm se dedicado a utilizar a questão racial como mote para elaboração de discursos jurídicos e para disputa do poder-de-dizer-o-Direito[10] e, em geral, o fazem a partir de um local de fala que ocupam[11].

Se estamos avançando, precisamos continuar avançando e cada vez de forma mais abrangente e qualificada. Uma boa alternativa seria o da reversão da lógica epistemológica e utilização da ausência da negritude na ciência hodierna para recolocação das teorias da/sobre a justiça no Direito. E fazê-lo a partir de experiências individuais para pensar teorias gerais pode ser uma tônica interessante. Minha indagação é para que nos incentivemos a reverter essa situação, procurando utilizar do sentimento de injustiça que a nós é compelido historicamente enquanto estrutura e pontualmente em nossas trajetórias individuais. Precisamos poder-dizer-o-Direito cada vez mais negro porque, em alguma medida, isso desembocará das e nas nossas próprias vivências. Precisamos ter o direito de nos sentir injustiçados. E essa também é uma medida descolonizadora.

 

Notas e Referências

[1] Frantz Fanon. Pele negra máscaras brancas. Trad. Renato Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

[2] Gilberto Freyre. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.

[3] Silvio Almeida. O que é racismo estrutural? (Feminismos plurais). São Paulo: Pólen Livros, 2019.

[4] Adilson José Moreira. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. Revista de Direito BrasileiraSão Paulo-SP, v. 18, n. 7, p. 404, set./dez. 2017

[5] Colorismo: o que é, como funciona. Geledés Instituto da Mulher Negra. Disponível em: https://www.geledes.org.br/colorismo-o-que-e-como-funciona/amp/?gclid=EAIaIQobChMIq62qm-Tw6AIVggWRCh1aYQIFEAAYASAAEgI_W_D_BwE. Acesso em 16 abr 2020.cesso em 16 abr 2020.

[6] Angela Davis. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

[7] Boaventura de Sousa Santos. Epistemologías del Sur. Revista Internacional de Filosofia Iberoamericana y Teoría Social. Utopía y Praxis Latinoamericana. Año 16. Nº 54, Julio-Septiembre, 2011, p. 17-39.

[8] bell hooks. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

[9] Juliana Borges. O que é encarceramento em massa? (Feminismos plurais).  São Paulo: Letramento, 2018.

[10] Eduardo C. B. Bittar. Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça. 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[11] Falo de Thula Piras, Silvio Almeida e Adilson José Moreira.

 

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