Pedidos de suspensão do pagamento de acordos trabalhistas, com fundamento em caso fortuito ou a força maior advindos da pandemia do Coronavírus – COVID 19

21/04/2020

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Nos trazem certa reflexão, o número crescente de pedidos de suspensão do pagamento de acordos trabalhistas junto à Justiça do Trabalho, donde tem-se utilizado como fundamento o caso fortuito ou força maior advindos da pandemia do Coronavírus – COVID 19.

Mais que isso, também nos trazem preocupação eis que os acordos trabalhistas entabulados perante o Magistrado Trabalhista e efetivamente homologados por esse, carregam em si uma proteção constitucional extraordinária aos trabalhadores, qual seja, a coisa julgada (constante na Constituição Federal no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais).

Sim, além de ser uma matéria de cunho processual, a coisa julgada é instituto efetivamente garantido pela Constituição Federal 1988, que assim dispõe no seu artigo 5º, inciso XXXVI:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; (grifamos e negritamos)

Numa primeira análise, parece-nos que a maculação dessa garantia não seria bom para a sociedade.

 

A Coisa Julgada como elemento de proteção extraordinário aos trabalhadores reclamantes

Partindo-se do princípio de que numa ação trabalhista, dentro das condições normais de temperatura e pressão, um determinado reclamante sujeitou-se a pedir a tutela jurisdicional porque lhe eram devidas verbas salariais e indenizatórias não adimplidas pelo reclamado (seu empregador, ex-empregador ou contratante).

Foi à Justiça porque algo lhe era devido e também porque o devedor estava inadimplente com sua obrigação contratual. O fez, com base na Constituição Federal, mais precisamente nos artigos 1º, IV-primeira parte (defesa do valor social do seu trabalho) e 5º, XXXIV, “a” (direito de petição).

Como a legislação trabalhista e os meios de fiscalização por si só não são capazes de garantir a efetiva execução e cumprimento dos contratos de trabalho (leia-se aqui nesse particular, a adimplência de salários), o empregado-cidadão vai recorrer à Justiça do Trabalho, por depositar nesse órgão jurisdicional trabalhista e na pessoa do magistrado do trabalho, a confiança no cumprimento das seguranças que não lhe são garantidas no ordenamento jurídico trabalhista[1], por falta de efetividade das normas.

Pois, bem, feita a composição processual perante a autoridade pública, esse processo, tecnicamente, será efetivamente encerrado com a referida transação. É o que dispõe o Código de Processo Civil, especificamente no artigo 487, III, “b”:

Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz:

III - homologar:

b) a transação;

Estará tecnicamente e efetivamente encerrado com a referida transação e também apresentará uma outra característica fundamental para que o credor possa receber seus haveres sem embaraços, qual seja, a imutabilidade da decisão homologatória do acordo (artigos 502 e ss do CPC).

Para os professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[2], a coisa julgada material consiste na qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito, não mais sujeita a recurso ordinário e extraordinário, nem a remessa necessária.

E é essa imutabilidade, os termos acordados e a sensação da consecução da reparação do dano alcançado, que traduzem a paz social almejada pela parte reclamante.

 

Pedidos de suspensão do pagamento de acordos trabalhistas, com fundamento em caso fortuito ou a força maior advindos da pandemia do Coronavírus – COVID 19

É absolutamente inconteste que em razão da pandemia COVID-19 foi gerado, está gerando e gerará inúmeros prejuízos a vários seguimentos econômicos, sendo que o Brasil e o resto do mundo “poderão” mergulhar numa recessão sem precedentes.

Sim “poderão”, pois não há garantia alguma do que se sucederá no futuro, pela óbvia natureza de imprevisibilidade do mesmo. Quem pode pontuar o que acontecerá no futuro ?

A propósito, sobre a imprevisibilidade, como bem mostra Alasdair MacIntyre em sua mais prestigiada obra[3], uma inovação conceitual radical é imprevisível porque, já na própria previsão, o conceito teria de ser, pelo menos, esboçado. Se é esboçado na previsão, não é um conceito do futuro, mas do presente.

Qualquer invenção, qualquer descoberta, que consista essencialmente na elaboração de um conceito radicalmente novo não pode ser prevista, pois parte necessária da previsão é a elaboração atual do próprio conceito cuja descoberta ou invenção só deveria acontecer no futuro.

Pois bem, voltando ao tema, o estado de calamidade pública na esfera federal, fora reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 2020 (Senado Federal), trazendo à discussão a seguinte questão nuclear: o estado de calamidade pública, para fins trabalhistas, independente da discussão doutrinária de se constituir hipótese de caso fortuito ou a força maior (artigo 501 da CLT) por si só avalizariam o pedido de suspensão do acordo judicial que fora efetivamente homologado ?

Isso é perigosíssimo, pois alguns eventuais maus empregadores (sem comprovação efetiva de dificuldades econômicas imediatas e sem comprovação efetiva de pré-insolvência) poderiam se agarrar a tal instituto para justificar supostas dificuldades financeiras, sem fazer a devida e efetiva adequação da norma ao caso concreto (como possivelmente já o estão fazendo).

Óbvio que não se deva trabalhar aqui com teses generalizatórias, pois muitas empresas de fato encontram-se em situações absolutamente dificílimas[4], mas justificar a inadimplência de acordos trabalhistas (por exemplo, firmados há meses) por conta da pandemia e da “suposta situação de força maior” é argumento vazio e demasiadamente desproporcional[5].

Para se ter uma ideia de como nem tudo está tão absolutamente perdido, fazemos menção ao Jornal Valor Econômico (edição de 27/03/2020)[6] que publicou matéria intitulada “Caixa alto ajuda grandes empresas a enfrentar crise”, donde descreve que a maioria das grandes empresas negociadas na bolsa brasileira tem dinheiro em caixa ou aplicações financeiras para cobrir mais de um ano de pagamento da folha de salários de seus funcionários. E ainda, que num levantamento feito pelo Valor Data com base em dados de balanços indica que 85% dessas companhias conseguiriam honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que parassem de faturar durante 12 meses por causa dos efeitos da pandemia de coronavírus. Metade das empresas restantes (15%) conseguiriam cobrir pelo menos seis meses de salários.

Nessa esteira, nos ensina o saudoso professor Octávio Bueno Magano[7] que a força maior é configurada no fato inevitável e imprevisível, que haja, substancialmente, afetado a situação econômica da empresa.

O artigo 501 da CLT, é nesse sentido:

Art. 501 - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

Mas o próprio artigo acima citado traz outras duas condicionantes, a saber:

§ 1º- A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.

§ 2º- À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

Para Cesarino Junior[8], quanto ao parágrafo 2º, “foi tomado na devida consideração o fato de não se justificar fazer depender o efeito liberatório e resolutivo do princípio universal da força maior, da situação econômica ou financeira da ‘emprêsa’. Adotar tal norma, seria medir situações jurídicas perfeitamente iguais, com dois pesos e duas medidas”.

Mozart Victor Russomano[9] vai mais além. Para ele “no §2º está escrito que não hão de ser aplicadas as restrições de que trata o Capítulo XIII quando a ‘fôrça-maior’ não afeta, substancialmente, a situação econômica da ‘emprêsa’. Daí se segue que não basta haver ‘fôrça-maior’. É preciso que esta tenha como consequência afetar a ‘emprêsa’ na sua economia e finanças substancialmente. Mesmo no caso de afetar a economia e as finanças da ‘emprêsa’, se estas não forem substancialmente afetadas, ainda que haja ‘fôrça-maior’, não há que se aplicar restrição alguma”. (grifamos e negritamos)

Assim a força maior (ainda que fosse o caso) por si só não seria elemento avalizador de inadimplência trabalhista pelos acordos feitos em juízo, bem como o pedido de suspensão do acordo efetuado.

Nesse sentido, ainda as lições de Octávio Bueno Magano[10], para o qual “a força maior, no Direito do Trabalho, não libera o empregador de sua obrigação, mas, apenas, atenua a sua responsabilidade” e como a força maior apenas atenua a responsabilidade do empregador, “a rescisão, dela decorrente, não pode ser tida como justificada”.

O fato é que a pandemia do COVID-19 não necessariamente se enquadraria na força maior para pedir suspensão do pagamento de acordo judicial, porque não impede as atividades do empregador, diferente do caso de uma cidade tomada pela neve em razão de uma avalanche, pelo magma vulcânico decorrente de uma erupção ou até mesmo um negócio destruído pelos comumente observados deslizamentos de terra em algumas cidades brasileiras[11].

Quanto a tese da revisão, embasada no artigo 505, I, do CPC, em que nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença, também entendemos não aplicável à situação aqui em discussão.

Isso com fulcro no caput do artigo 2º da CLT, pois o risco do negócio corre por conta do empregador (ou ex-empregador); o § 1º do artigo 501 do CPC, em que a imprevidência do empregador exclui a razão de força maior; artigo 7º, VI, que trata da irredutibilidade salarial[12]; a intangibilidade salarial e por fim também porque, por força de obrigação contábil e responsabilidade fiscal, os acordos feitos e homologados em juízo deveriam ser provisionados.

 

Conclusão

Sim, é absolutamente inconteste que em razão da pandemia COVID-19 muitas empresas estão passando por dificuldades e tendo inúmeros prejuízos, mas não se trata de situação generalizada.

Isoladamente, o argumento da pandemia COVID-19 não pode suplantar os clássicos princípios protetores salariais.

A coisa julgada deve ser efetivamente respeitada, por amor à ordem pública, valor social do trabalho e paz social.

O pedido de suspensão dos acordos trabalhistas deve ser ato de muita responsabilidade por parte do Reclamado e também muita prudência por parte do magistrado trabalhista, que deve, com base no princípio da publicidade e boa-fé, exigir provas e elementos robustos e cabais a demonstrar a insuficiência econômica do peticionante.

Acordos feitos e homologados há meses e que muitas vezes deveriam  ser provisionados (e muitas vezes o foram), não podem sofrer mansa e incombatida revisão.

Isso porque nos referidos acordos, pura manifestação livre da vontade das partes (típicas relações contratuais privadas), prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, nos termos do artigo 421, do Código Civil e a exaustivamente já citada coisa julgada, que é um princípio norteador do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Pelo princípio do “pacta sunt servanda”, os acordos judiciais (verdadeiros contratos firmados entre as partes), devem ser efetivamente cumpridos conforme convencionado, pois trata-se de regra impositiva.

E mais: cada uma das partes que suporte os prejuízos provenientes do acordo firmado em juízo (contrato em que se fez concessões). Se aceitou aquelas condições contratuais-judiciais, há presunção de que foram estipuladas de forma livre, o que impede que se socorra da Justiça do Trabalho para obter a desobrigação, relativização, suavização ou até a libertação da obrigação, pois, como dissemos, isso afrontaria o princípio do pacta sunt servanda.

 

Notas e Referências 

 

JUNIOR, Cesarino. Consolidação das Leis do Trabalho. 4ª edição. Volume II. Rio de Janeiro-São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1956.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Trad. Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001.

MAGANO, Octávio Bueno.  Lineamentos de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1969.

MASCHIETTO, Leonel. A Litigância de Má-fé na Justiça do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2007.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria Jurídica do Salário. 2ª edição. São Paulo: Editora LTr, 1997.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 8ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

RUSSOMANO. Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 5ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1960, v.III.

[1] A falta de efetividade da proteção decorrente das normas trabalhistas e, data venia, os meios insuficientes de fiscalização, estão muito evidenciados nos elevadíssimos números de reclamatórias trabalhistas distribuídas nos tribunais laborais por esse pais (ainda que haja considerável diminuição após a Lei n.º 13.467/2017), ainda que também haja aquele volume elevado de litigantes de má-fé (sobre o tema sugerimos a seguinte leitura: MASCHIETTO, Leonel. A Litigância de Má-fé na Justiça do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2007).

[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 8ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pág.862.

[3] MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Trad. Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001, pág. 164.

[4] A exemplo das redes hoteleiras, viação aérea, restaurantes presenciais, prestadores de serviços autônomos etc.

[5] Na contramão dos seguimentos econômicos em dificuldade, poderíamos citar algumas empresas de venda e locação de equipamentos de informática, que esgotaram seus estoques por conta da demanda do home-office e estão muito bem; o setor de supermercados enfrenta a crise com elevada demanda de compras pelo sistema delivery (o mesmo ocorrendo com muitos restaurantes); o setor de transporte e entregas de moto-frete nunca trabalharam como hoje; indústrias químicas chegaram a não dar conta da enorme demanda por álcool-gel, etc.

[6] https://valor.globo.com/impresso/noticia/2020/03/27/caixa-alto-ajuda-grandes-empresas-a-enfrentar-crise.ghtml

[7] MAGANO, Octávio Bueno.  Lineamentos de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1969, pág. 143.

[8] JUNIOR, Cesarino. Consolidação das Leis do Trabalho. 4ª edição. Volume II. Rio de Janeiro-São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1956, pág. 64.

[9] RUSSOMANO. Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 5ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1960, v.III, pág.958.

[10] Idem, pág. 164.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/tres-pessoas-morrem-em-deslizamento-de-terra-em-niteroi-no-rio.shtml

[12] Para o professor Amauri Mascaro Nascimento, “as razões que determinam a irredutibilidade de salário são de ordem econômica e alimentar, uma vez que, permitida a sua redução, o empregado não teria a segurança necessária para manter o ganho com que conta para sua subsistência”.(in Teoria Jurídica do Salário. 2ª edição. São Paulo: Editora LTr, 1997, pág. 171). Bem, se é assim para quem está empregado, imagine só nos casos do presente artigo (acordos judiciais de quem muitas vezes está desempregado).

 

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