“Pauta de Costumes” ou “Agenda de Direitos”?

29/06/2024

Em entrevista à Folha de São Paulo (5/6) o líder do governo no Congresso, Senador da República Randolfe Rodrigues declarou que “a gestão do presidente Lula deve priorizar a agenda econômica e evitar que a oposição tire proveito da pauta de costumes”.

A expressão “pauta de costumes” de origem indeterminada, que está relacionada aos temas da igualdade de gênero, da igualdade racial, dos direitos sexuais, dos direitos humanos etc., é criticada pelo jornalista, professor e ativista Julian Rodrigues para quem o termo “pauta de costumes” deveria ser substituído pela “agenda de direitos”.

Para Julian Rodrigues,

O termo ‘costumes” soa como algo individual, secundário, relativo. Compreensível que a mídia e os reacionários se manipulem o termo, mas não dá para aceitar é gente progressista usando a expressão.[1]

A chamada “pauta de costumes”, ou melhor, “agenda de direitos”, como a questão das drogas e a descriminalização do aborto, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) tem gerado reações no Congresso, notadamente da oposição ao atual governo, precisa ser, definitivamente, assumida pelos que se dizem progressistas e humanistas.

O governo não deve, no que pese todas as dificuldades que enfrenta no Congresso ultraconservador e reacionário, tornar-se refém daqueles que negam direitos e garantias fundamentais e que desprezam as políticas públicas e sociais.

No que se refere a questão das drogas, como já amplamente demonstrado por inúmeras pesquisas e escancarado no substancioso voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE 635.659) - em que se discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343 de 2006 (Lei das Drogas) e que tem buscado diferenciar, através de critérios objetivos, o usuário do traficante –  os mais vulneráveis (negros, pobres, com baixa escolaridade e da periferias) são os que mais sofrem com uma abominável discriminação que leva milhares ao encarceramento.

É forçoso destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. O sistema penal é seletivo. Como bem já destacou em pesquisa (Mapa do Encarceramento) Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico", disse a pesquisadora.

Em relação a descriminalização do aborto, em julgamento no STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, os dados, também, demonstram que as mulheres negras e pobres são as que mais sofrem com a criminalização. Segundo estimativas, através de pesquisas realizadas por centros médicos e instituições brasileiras, o aborto clandestino está entre as principais causas de mortes maternas no Brasil. De cerca de 800 mil mulheres que praticam abortos todos os anos, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. Segundo a FIOCRUZ, mulheres negras apresentam uma probabilidade 46% maior de fazer um aborto, em todas as idades, com relação as mulheres brancas.

Para piorar, o que já é extremamente grave, o Deputado Federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) apresentou abominável Projeto de Lei (PL 1904/2024) que equipara a pena dos crimes de aborto (provocado pela gestante ou com seu consentimento e aborto provocado por terceiro) realizados após 22 semanas de gestação à pena prevista para o homicídio. Além de afastar a excludente prevista no art. 128 do Código Penal quando a “gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas”.

O abjeto Projeto de Lei desconsidera que a criminalização do aborto, por si só, já provoca impactos negativos na vida das mulheres – notadamente das mais vulneráveis -, que são expostas, além de riscos de morte, à marginalização e a estigmatização. Sem aprofundar na análise do PL, o que já foi feito alhures, não resta dúvidas que se trata de Projeto inconstitucional que afronta princípios fundamentais da Constituição da República, notadamente em relação aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da Constituição) e da proporcionalidade das penas.

Importante ressaltar que no Brasil mais de 87% das vítimas de estupro e de estupro de vulnerável são meninas e mulheres. E mais de 60% das vítimas têm até 13 anos (Anuário de Segurança Pública, 2022). No ano de 2023, segundo dados do SUS, 12 mil meninas de 8 a 14 anos estiveram grávida, ou seja, foram vítimas do chamado estupro de vulnerável.

Constata-se, portanto, que a criminalização tanto do uso de drogas como do aborto – ambas tratadas equivocadamente e levianamente como “pauta de costumes” - para ficar apenas nestes dois casos, que estão em julgamento no STF, tem atingido especialmente pessoas negras e pobres, com as quais um governo comprometido com os mais vulneráveis deveria ter mais atenção.

Por fim, entende-se que por mais importante que seja para o país a “agenda econômica”, a “agenda de direitos”, prefere-se aqui adotar essa expressão, não pode ficar relegada ao segundo plano e, muito menos, ser desprezada em nome de interesses políticos e permeada de falso moralismo.

Belo Horizonte, 20 de junho de 2024.

 

Notas e referências

[1] https://aterraeredonda.com.br/pauta-de-costumes/

 

Imagem Ilustrativa do Post: Spinning // Foto de: Charles Roper // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/charlesroper/17392617601

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