Parecer Complementar sobre possibilidade de apensamento dos processos entre diferentes pedidos de impeachment com a mesma acusação

14/04/2016

Por Thomas da Rosa de Bustamante - 14/04/2016

O prof. de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Thomas da Rosa de Bustamante, emitiu parecer no dia 11 de abril sobre as hipóteses juridicamente autorizadas de controle judicial de constitucionalidade e legalidade da decisão do Sr. Presidente da Câmara dos Deputados que, após admitir processo de impeachment contra a Sra. Presidente da República negou seguimento a pedido similar (fundado em atos supostamente idênticos em seus efeitos jurídicos) contra o Sr. Vice-Presidente da República.

O referido parecer havia sido solicitado por parlamentar, que entendeu conveniente requerer parecer complementar pedindo esclarecimentos sobre a existência, ou não, por parte do Parlamentar, de um direito ao apensamento dos processos entre diferentes pedidos de impeachment com a mesma acusação, ou seja, unificação dos processos de Dilma Rousseff e Michel Temer. A solicitação, portanto, consubstanciou-se no seguinte questionamento:  "Pode o Parlamentar exigir da Presidência da Casa Legislativa que ambas as denúncias sejam avaliadas simultaneamente?"

Confira o parecer complementar e a resposta da presente indagação.

PARECER COMPLEMENTAR[1]

O processo de Impeachment e as esferas de autorização pela Câmara dos Deputados. Limites e possibilidades de Controle Judicial 

Análise do direito do parlamentar de participar de um julgamento que obedeça ao Devido Processo Legal. Mérito do pedido de apensamento de processos entre diferentes pedidos de impeachment com a mesma acusação 

Consulente: Reginaldo Lazaro de Oliveira Lopes 

Ementa: Crime de Responsabilidade – Processo Político-Jurídico de Apuração – Impeachment – Pedidos Simultâneos com a mesma acusação contra a Presidente e o Vice-Presidente da República – Direito do Parlamentar a Participar de um Processo que obedeça ao Devido Processo Legal – Apensamento de Pedidos

I. Conteúdo da Consulta

Diante das respostas que oferecemos ao Deputado Federal Reginaldo Lopes, do Partido dos Trabalhadores, eleito por Minas Gerais, em Parecer emitido em 11 de abril de 2016, acerca do processo de impeachment e das esferas de autorização pela Câmara dos Deputados, assim como dos limites e possibilidades de controle judicial pelo STF, o Consulente nos apresenta pedido de esclarecimentos sobre a existência, ou não, por parte do Parlamentar, de um direito ao apensamento dos dois processos, formulando para tanto o seguinte Quesito Complementar:

Quesito único: Diante da resposta ao Quesito 6, itens ‘b’ e ‘c’, do Parecer emitido em 11/04/2016, o afirmado “direito à coerência em face de dois ou mais processos de impeachment simultâneos” – é dizer, do “direito a uma aplicação consistente dos princípios em que as nossas instituições políticas se apóiam”, na citação de Dworkin –, existe algum direito de natureza processual por parte do Deputado ou do Parlamentar? Pode o Parlamentar exigir da Presidência da Casa Legislativa que ambas as denúncias sejam avaliadas simultaneamente? 

Resposta ao Quesito: 

É nossa opinião, como afirmamos em nosso parecer original, que está correta e não deve ser modificada no horizonte próximo a tese de que não cabe ao Poder Judiciário rever o juízo de mérito das casas do Poder Legislativo competentes para julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade.

Procuramos sustentar que essa tese, consagrada no Supremo Tribunal Federal, não é violada – ao menos em seu núcleo essencial – quando se afirma a existência de um “direito à coerência” na apreciação de duas denúncias com acusações idênticas dirigidas contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e se advoga o direito a uma “aplicação consistente” dos princípios que informam os julgamentos políticos das casas do Congresso Nacional.

Não há grande controvérsia, ao menos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que o juízo político em que se funda a valoração da prática de crime de responsabilidade é privativo do Legislativo, de modo que os critérios de valoração utilizados pelo Poder Legislativo não podem ser revistos pelo Poder Judiciário.

Sem embargo, na opinião que sustentei no parecer original, há por parte dos denunciados um direito a uma decisão política moralmente responsável (no sentido de Dworkin), que não seja fruto do casuísmo e do decisionismo, pois o princípio do Estado de Direito (rule of law) exige que julgamentos sobre atos ilícitos (entre os quais se situam, por óbvio, os crimes de responsabilidade) não sejam baseados em considerações nem ad hoc e nem ad hominem.

Esses direitos dos denunciados implicam, de maneira correlata, um direito importante para os parlamentares que participam do julgamento.

Falamos, aqui, de todos os parlamentares que participarem do julgamento. Se todos os deputados e senadores têm sua parcela de responsabilidade moral e política, independentemente da possibilidade (ou não) de revisão judicial de suas decisões, eles têm também o direito correlato de decidir de forma amplamente informada, tendo em conta todos os fatores necessários para se desincumbir adequadamente do pesado encargo que pesa sobre eles.

Quando uma Casa Legislativa decide instaurar um processo de impeachment contra um chefe de Estado e de Governo eleito democraticamente pelo povo, não estamos apenas diante de um crime comum. Se há por parte do Parlamento a verossimilhança na alegação de que a Presidenta ou o seu sucessor imediato (o Vice-Presidente da República) tenha cometido crime de responsabilidade, há por parte dos membros da casa um direito de conhecer com profundidade ambas as denúncias, e o direito de debater conjuntamente sobre elas.

Esse direito se insere no contexto do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, que foi adotado pela 21ª Sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966, tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional em 12/12/1991 e entrando em vigor em 24/12/1992. Desde essa data, estabelece obrigações vinculantes para o Brasil, entre as quais a contida no seu artigo 25, que ora transcrevemos:

“Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no art. 2º e sem restrições infundadas: a) de participação da condução dos assuntos políticos, diretamente ou por meio de seus representantes livremente escolhidos”.

Esse direito é correlato ao princípio do Devido Processo Legal no âmbito do legislativo (art. 5, LIV, da Constituição Federal). Se interpretado de maneira responsável, ele implica que os representantes do povo, incluindo-se, obviamente, todos os que representam o povo no Parlamento, possam participar em condições de igualdade da condução dos assuntos políticos.

Ao impedir que os dois pedidos de impeachment que tramitam simultaneamente contra a Presidente da República e contra o seu sucessor imediato, que são alvos da mesma acusação, sejam analisados de maneira simultânea, pela mesma comissão, o Presidente da Câmara está frustrando esse direito. Está atuando seletivamente e atraindo a atenção dos parlamentares e da opinião pública para um único processo.

É praticamente impossível decidir de maneira idônea, coerente, justa, pautada em critérios universais e responsável sem com que essas denúncias sejam minuciosamente contrastadas pelo Plenário. Assim, para que se possa falar em respeito à liberdade do parlamentar no exercício do seu mandato (protegida no art. 53, caput, da Constituição Federal), é necessário que se lhe garanta o direito de comparar alternativas, inclusive as alternativas que existem entre prováveis ocupantes do cargo caso um ou mais dos pedidos de impeachment venham a ser acolhidos no final.

Essas alternativas devem ser comparadas com base em um juízo jurídico sobre a ilicitude dos fatos, mas também segundo um juízo político sobre a conveniência e oportunidade de se realizar mudanças no Governo profundas e contrárias ao resultado eleitoral.

As mesmas razões – exatamente as mesmas razões! - que justificam que a decisão do Congresso Nacional sobre o impeachment seja soberana (e portanto livre de revisão judicial em seu mérito), justificam também que se proteja as garantias processuais necessárias para o exercício da liberdade parlamentar em sua plenitude, que inclui a possibilidade de apreciar um pedido de impeachment à luz de outro.

É importante frisar, nesse sentido, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é extremamente ciosa da tutela da autonomia parlamentar e do direito de oposição por parte das minorias parlamentares. Sem cair na armadilha do discurso fácil das denominadas “questões interna corporis”, o Supremo Tribunal Federal enfrenta com serenidade a questão da proteção das prerrogativas dos parlamentares tanto no âmbito do processo legislativo – garantindo-se ao parlamentar legitimidade para impetrar mandado de segurança “com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação da lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo”[2] – como também para assegurar aos parlamentares o direito de exigir, quando preenchidos os requisitos legais, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito diante da inércia do Presidente da Casa – tendo assentado, à unanimidade, a tese de que “existe, no sistema político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, cujas prerrogativas (notadamente aquelas pertinentes ao direito de investigar)  devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares”.[3]

Como explica Marcelo Cattoni de Oliveira, essa jurisprudência – em particular a doutrina assentada pelo Ministro Celso de Mello sobre o tema – é de todo antagônica aos anacronismos de uma certa interpretação da “doutrina das questões políticas” que, equivocadamente, equiparava estas questões a concepções autoritárias de “razões de Estado”. Volta-se, pelo contrário, para uma compreensão emancipadora que articula, de forma complexa, “questões políticas – éticas, morais e pragmáticas – a questões jurídicas”, compreendendo os direitos de participação como “garantias constitutivas do processo democrático”.[4]

A Constituição consagra, portanto, quando corretamente interpretada – seguindo o mesmo raciocínio do Ministro Celso de Mello no precedente supracitado –, um direito a não participar de um julgamento irresponsável ou um simples linchamento público. Trata-se de um direito político fundamental do parlamentar, mesmo se ele fizer parte da minoria, pois cada parlamentar que participar do julgamento estará escrevendo o seu lugar na história e poderá ser cobrado pela sociedade brasileira (e até pela Comunidade Internacional) pelos erros ou acertos de sua decisão.

Se a Constituição Federal garante ao parlamentar o direito ao livre exercício do seu mandato, facultando-o a exercê-lo de maneira autônoma e segundo o seu melhor juízo, então ela há de garantir também os meios para realizar tais julgamentos!

Existe, portanto, em favor do parlamentar, um direito à plena informação e um direito a debater em conjunto os dois processos de impeachment já admitidos na primeira fase de sua tramitação interna na Câmara dos Deputados. Eventual atraso de uma ou duas semanas no julgamento do pedido de autorização para processar a presidenta Dilma Rousseff seria um mal significativamente menor em comparação com as graves consequências políticas e jurídicas que um desrespeito a esse direito do parlamentar poderia eventualmente significar.

É possível sustentar, portanto, a existência de uma reunião dos dois processos de impeachment por acusações idênticas quando estes estão em tramitação simultânea e se dirigem contra a Presidente da República e o seu sucessor imediato.

É essa a nossa opinião.

Belo Horizonte, 13 de abril de 2016.

Thomas da Rosa de Bustamante

OAB-MG 87.051


Notas e Referências:

[1] Parecer Complementar ao Parecer emitido por este consultor ao Consulente em 11 de abril de 2016 e publicado no informativo jurídico Empório do Direito em 12 de abril de 2016. Publicação completa em: http://emporiododireito.com.br/parecer-juridico-por-thomas-da-rosa-de-bustamante/ .

[2] Ver, entre outros, STF, Pleno, MS 24.667  AgR/DF, Rel.Min. Carlos Velloso, j. 4/12/2003, DJ 23/04/2004.

[3] Ver, nesse sentido, entre vários outros, STF, Pleno, MS 26.441/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25/04/2007, DJe 237, de 18/12/2009.

[4] Oliveira, Marcelo Cattoni de. Processo Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Pergamum, 2013, p. 366.


Thomas Bustamante. . Thomas da Rosa de Bustamante é Professor de Filosofia do Direito da UFMG. .. . .

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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