A presença do defensor/advogado nos atos processuais está representando exercício efetivo do direito de defesa ou apenas está servindo para dar aparência de legalidade aos atos do procedimento?
Na linha do que vem alertando o Amilton Bueno de Carvalho, devemos debater o quanto nós defensores/advogados somos condescendentes, úteis, indispensáveis até, para que a máquina destruidora de direitos e garantias chamada “processo penal brasileiro” atinja seus fins: maior quantidade possível de condenações no menor prazo possível.
É que estamos diante de uma situação em que a presença do profissional da defesa está sendo suficiente para, no plano meramente formal, dar foros de legitimidade/legalidade à imposição da pena criminal, num processo absolutamente destituído das mínimas condições de exercício do direito de defesa e do contraditório.
A crise do direito criminal, centrada no problema da (falta de) fundamentação das decisões, passou a ser uma questão de ausência de qualquer vínculo da decisão com o disposto na regra. Decisões fundadas no direito, fundamentadas ou não, deram lugar a decisões fundadas na moral e, assim, nossas alegações viraram peças processuais decorativas, nossas sustentações viraram enfadonhas demonstrações de uma verborragia inútil, nosso desespero na busca de liberdade virou problema a ser resolvido na terapia.
Nós estamos chancelando a destruição da vida de pessoas pobres inocentes, incoerentemente condenadas em processos judiciais absurdamente inconstitucionais. O pobre, principalmente ele, acusado por dois policiais, num flagrante lavrado sem a presença de defensor, está condenado desde o início e a participação de profissionais da defesa durante o processo judicial não será capaz de mudar essa realidade, mas, ao contrário, será fundamental para que a condenação seja levada a efeito.[1]
O defensor público Jorge Bheron Rocha, do Estado do Ceará, publicou interessante artigo com o título “A Importância de Moro e da Lava-jato para a Democracia e para as Garantias do Processo Penal no Brasil”, que vai aqui referido por dois motivos: para cumprimentar o autor pela excelente exposição das mazelas do processo criminal brasileiro em relação aos pobres e para construir o raciocínio em torno da proposta de que todos os advogados e defensores públicos cruzem os braços, façam uma paralização, uma verdadeira greve.[2]
Rocha alerta, já no início, que, apesar do título, não se trata de um artigo para fazer o endeusamento do juiz ou da famosa operação que este preside e comanda. O texto denuncia as “absurdidades” vividas pelos defensores e que se repetem em todos os rincões do Brasil, com frequência diária e à luz do dia, as quais atingem os clientes preferidos do sistema: os drogados, os filhos sem mãe nem pai, os analfabetos, os negros, os favelados, os espoliados, os pobres, os prostituídos, os fedidos, a escória, os marginalizados.
Na luta do bem contra o mal (moral X direito), o bem maior é a rapidez. A máxima celeridade (sumarização do processo) com a maior efetividade (percentual alto de condenações) representa a vitória da sociedade sobre o crime e a impunidade. Nesse caminho, Rocha é preciso ao dizer que o espetáculo vem representado pelo triunfo do bem – juiz, promotor de justiça, polícia, vítimas do crime (“os homens de bem”) – sobre o mal – o desempregado, o favelado, o bandido, o defensor de bandido. Em tal contexto, os direitos e garantias fundamentais são percebidos como obstáculos à punição.
Assim como o aguerrido articulista, muitos profissionais têm denunciado esse estado de coisas, ocupando todos os espaços possíveis: acadêmicos, institucionais, políticos. Entretanto, dia após dia, todos voltam para seus afazeres profissionais e, mais uma vez, estão lá chancelando as ilegalidades praticadas com sua mera presença em cada um dos atos do espetáculo processual.
Pois bem.
O colega criminalista gaúcho Felipe Lazzari, dia desses, quando conversávamos sobre o caos da superlotação das celas das delegacias de polícia no Rio Grande do Sul, propôs algo que me pareceu bastante ousado, ao mesmo tempo em que, convenhamos, seria um ato com uma importância histórica ímpar, sem precedentes, ao que me consta.
Todos os defensores e advogados do país, de uma só vez e por um tempo razoável, cruzariam os braços, não trabalhariam, não compareceriam aos atos designados, sequer se dirigiriam ao foro, delegacia ou tribunal.
Todos em estado de greve.
Diante do que está acontecendo na justiça criminal brasileira, todos os criminalistas do país ficariam absolutamente afastados do trabalho (já que é de mero) acompanhamento dos atos processuais. Nenhum defensor, mesmo indicado pelo juiz, substituiria um advogado privado que cruzasse os braços. Todos eles, simultaneamente, apresentariam a mesma petição: a defensoria e a advocacia criminal brasileira estão em estado de greve por melhores condições de trabalho.
Segundo levantamento que me chega, somos aproximadamente oitocentos mil advogados e cerca de três milhões de bacharéis, oriundos das mais de mil e duzentas faculdades de direito, ou seja, não resta dúvida que somos muitos. Convenhamos que esse número impressionante de profissionais deva significar algo em termos de mobilização nacional, seja qual o for o percentual dessas pessoas que se dedique à área criminal.
A advocacia criminal brasileira, num grito de revolta, cruzaria os braços contra a disparidade de armas no processo penal, contra a promiscuidade na relação de alguns promotores com alguns juízes, contra o abuso de autoridade, contra as decisões não fundamentadas, contra o excesso de prisões ilegais, contra a limitação do Habeas Corpus, enfim, defensores e advogados paralisados em sinal de protesto, diante das péssimas condições de trabalho a que estão submetidos.
A ideia de uma greve geral dos representes da defesa criminal em todo o país, não passa de um sonho utópico, pensarão muitos de vocês que estão lendo esse texto agora. Entretanto, fica o tema posto e o medo exposto: somos bravos defensores, lutando com todos os meios para fazer valer a regra do jogo (o devido processo legal) ou somos participantes úteis e indispensáveis à validação (formal) de um jogo escuso de cartas marcadas?
Enquanto não houver paridade de armas no processo penal, não haverá devido processo legal, mas, apenas, abuso.
Criminalistas, uni-vos!
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] Em nome da velocidade, os requerimentos de produção de provas para o exercício do contraditório são indeferidos, por desnecessários, o que não vai gerar a nulidade do processo por cerceamento de defesa, já que não há prejuízo e, caso houvesse, deveria ser provado (e sabe-se lá que tipo de prova de prejuízo é essa). O defensor, na sua luta incansável, irá recorrer e brigar até o final, mas o final é sempre o mesmo: a condenação do réu.
[2] http://justificando.com/2016/09/28/importancia-de-moro-e-da-lava-jato-para-democracia-e-para-as-garantias-do-processo-penal-no-brasil/
Imagem Ilustrativa do Post: Sentinels // Foto de: Patrick McConahay // Sem alterações
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