Para que (m) serve a mina Guaíba? Extração de carvão e os impactos ao consumo e distribuição de recursos hídricos

18/10/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A empresa brasileira Copelmi Mineração Ltda vem extraindo carvão da Terra desde 1883. Mais de um século na perspectiva do desenvolvimentismo, crescimento e aceleração, justamente o paradigma que precisa ser revisto hoje, em tempos de grave crise ecológica e ambiental. É preciso pensar alternativas ao desenvolvimento[1] na América Latina, mas antes disso um mega projeto de mineração de carvão a céu aberto se impõe sobre os recursos hídricos no estado do Rio Grande do Sul.

O Projeto mina Guaíba por seu caráter privado e ausência de participação popular e diálogo, trata-se na realidade não de um projeto, mas sim de um mega empreendimento minerário. Consiste na pretensão de minerar carvão, areia e cascalho em uma área de 4 mil hectares nos municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas. A iniciativa está em fase de licenciamento junto a FEPAM/RS e sua liberação irá causar diversos impactos socioambientais à população gaúcha.

Entre tantas questões a serem discutidas em relação a este empreendimento cabe destacar o seu potencial para causar graves impactos aos recursos hídricos uma vez que terão de ser suprimidos mais de dois mil hectares de vegetação, flora e fauna, rebaixamento de lençol freático e alterações de curso de água, justamente na Área de Amortecimento do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Além disso, para minerar serão utilizadas covas com 90 metros de profundidade causando impactos diretos a água.

A história do extrativismo na América Latina demonstra a existência de uma relação direta entre o extrativismo mineral e a (in) disponibilidade de recursos hídricos. Alberto Acosta, pesquisador equatoriano, tem apontado a crise hídrica como uma das principais disfunções ocasionadas pelo do extrativismo mineral[2]. Caso o empreendimento seja de fato implementado aproxima-se de Porto Alegre e região metropolitana um período de escassez e dificuldade no acesso e consumo de água.

Como toda a energia proveniente de combustíveis fósseis este modelo de mineração gera diversos impactos socioambientais além daqueles relacionados ao consumo e disponibilidade água. Como matriz energética é interessante relembrar que este modelo reporta-se ao período da revolução industrial do século XVIII! Há muitos exemplos que demonstram o atraso socioambiental ocasionado pelo uso de carvão para geração de energia. As usinas de carvão são grandes consumidoras de água e facilmente podem levar a gravíssimas crises hídricas afetando o abastecimento e o consumo de água da população local onde se encontra instalado o empreendimento. Mesmo assim, o governo brasileiro vem apostando nessa fonte de energia proveniente de combustível fóssil e há projetos de usinas térmicas movidas por carvão no sul do Brasil que podem operar até 2039 se licenciadas[3]

Além dos incontáveis impactos ambientais será afetado pelo empreendimento um dos maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Trata-se do assentamento Apolônio de Carvalho criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, que contempla 72 família distribuídas em uma área de quase mil hectares. Cerca de ¾ das famílias assentadas dedicam-se ao cultivo de arroz orgânico e agroecológico além de outras culturas. O empreendimento afetará a distribuição de orgânicos na capital uma vez que parte dos assentados planta e comercializam hortaliças, frutas e outros produtos nas feiras de Porto Alegre e com a sua remoção do assentamento serão impedidos de continuar produzindo alimentos orgânicos.

O que assola o Rio Grande do Sul nesse momento é o que Alberto Acosta denomina maldição da abundância, ou seja, se é pobre por ser rico e possuir abundância em recursos minerais. Ocorre que a extração desses minerais tem sido marcada historicamente pela colonialidade do poder e colonização da Natureza gerando crescimento empobrecedor já que os impactos socioambientais são por vezes imensuráveis.

Diante desse quadro é mais do que necessária uma modificação na matriz energética do país e transformações nos padrões atuais de produção e consumo. Para que seja possível construir um modelo energético sustentável é imprescindível repensar o modo de consumo e o estilo de vida de uma sociedade pautada pelo modo de vida imperial [4]completamente insustentável e que nem ao menos se tornou realidade nos países periféricos do Sul Global.

Contraditoriamente, mesmo diante dos enormes impactos socioambientais decorrentes da mineração, este é um dos setores que mais cresce no país sob o argumento de geração de energia e importância para a economia por meio da exportação dessas matérias-primas. Entretanto, as consequências dessa expansão já podem ser observadas nos grandes desastres da mineração que tem ocorrido no Brasil.

A água é um bem comum indispensável para a continuidade da vida e a expansão do setor mineral tem demonstrado um enorme descaso com a vida no último período. Basta lembrar que em menos de uma década o Brasil vivenciou dois grandes desastres ocasionados por este setor. O desastre de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) revelam um grande descuido com as bacias hidrográficas próximas aos empreendimentos minerários gerando impactos quase irreversíveis aos rios, povos originários e população ribeirinha.

As mudanças climáticas vêm gerando catástrofes com frequência e intensidade cada vez maiores. Para que possam ser evitadas ou amenizadas é imprescindível repensar o modelo de geração de energia. Carvão é combustível fóssil e, portanto um grande gerador de Co2 e outros gases. Sabe-se da relação direta entre o aquecimento global e o uso desses combustíveis. Há acordos climáticos globais em que diversos países se comprometem a abandonar o uso dessa fonte de energia e buscar fontes limpas e renováveis. Entretanto, o empreendimento mina Guaíba está na contramão da história e sua instalação nos municípios de Eldorado e Charqueadas irá agravar a crise hídrica no estado bem como aumentar a pobreza[5] e causar diversos problemas socioambientais  no Sul do país.

 

Notas e Referências

ALIER, JOAN MARTÍNEZ. O Ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

ALIMONDA, Héctor (Org.).  La Naturaleza Colonizada. Ecologia Política y Minería em América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2011.

Entrevista com ambientalista Paulo Brack –Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/589885-mina-guaiba-um-empreendimento-de-altissimo-impacto-ambiental-e-lobby-da-industria-dos-combustiveis-fosseis-entrevista-especial-com-paulo-brack

 Um funeral para o carvão. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/582284-um-funeral-para-o-carvao

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. 2ª ed. São Paulo. Autonomia Literária, Elefante Editora, 2016.

ACOSTA, Alberto. Extrativismo e neoextrativismo. Duas faces da mesma destruição. In: Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento / Gerhard Dilger, Miriam Lang, Jorge Pereira Filho (orgs): traduzido por Igor Ojeda – São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo. 2016.

GUDYNAS, Eduardo. Extractivismos. Ecología, economia y política de un modo de entender el desarrollo y la Naturaleza. Cochabamba/Bolívia: CEDIB, 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, vol. 13, n.º 29, Lima, 1992, p. 11-20.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgard (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino americanas.  Buenos Aires: CLACSO, 2005.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva 2015.

[1] Alternativas ao desenvolvimento devem ser pensadas com a participação da sociedade civil em uma perspectiva popular e comunitária da reordenação política do espaço público conforme perspectiva do pluralismo jurídico de Wolkmer (2015).

[2] Compreende-se  a atividade extrativista na concepção de Eduardo Gudynas (2015) para quem o extrativismo não é um tipo benéfico de conservação mas sim de extração maciça dos recursos da Terra com alta intensidade e impacto socioambiental normalmente destinado à exportação. Considerando a geopolítica do extrativismo centrada nas periferias do capitalismo é necessário pensar a sua expansão a partir da realidade do Sul Global.

[3] Por ocasião de um leilão pelo governo brasileiro para contratação de energia elétrica entre os  1090 empreendimento cadastrados estão duas nova usinas térmicas movidas a carvão: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/usina-de-carvao-prevista-em-leilao-pode-causar-falta-de-agua-em-candiota-rs/

[4] De acordo com a perspectiva de Ulrich Brand e Markus Wissen (2014) o modo de vida imperial não se refere somente ao estilo de vida mas está relacionado também a padrões de produção, distribuição e consumo.

[5] Os territórios em que se instalam empreendimentos minerários costumam sofrer da disfunção denominada crescimento empobrecedor que consiste de uma rápida e passageira geração de empregos que se transforma a médio prazo em dependência econômica da comunidade  relação as empresas mineradoras na maioria das vezes multinacionais que extraem riqueza e valor dos territórios retirando o papel do estado e inclusive criando dependências dos proórpios estados em relação a tributação da atividade minerária pela cobrança de royaties e ausência de diversidade a produção, especialmente de consumo pautado em princípios.

 

Foto retirada do site: http://trasel.com.br/a-mina-guaiba-e-um-desatino/

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