Para onde vão... o Direito e a Constituição na América Latina?

04/07/2020

Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro de Jesús Lora Alarcón

Generalizações nunca são tão suficientemente abrangentes como para dar conta das diversas percepções que existem sobre os fenômenos. Entretanto, parece não ser exagerado dizer que usualmente a robusteça do Constitucionalismo da América Latina é vista com ceticismo. As inseguranças são resultantes, pelo menos à primeira vista, de uma sensação de incerteza sobre o curso dos acontecimentos em contextos de exacerbada confrontação, nos quais há setores claramente diferenciados e opostos quanto a seus objetivos e pretensões, tanto no terreno político como no jurídico. Subjaz regularmente na prognoses, como diz A. Hernández, uma ideia do risco da continuidade de problemas já advertidos e incluso de novas versões de penosas experiências do passado. [1]

Parece-nos que uma certa superficialidade nos diagnósticos reporta mais a constatações sobre o evidente que à identificação das causas que originam essa situação de desconfiança. E esse olhar vago costuma conduzir a afirmações ligeiras, ainda que não necessária ou totalmente desajustadas à realidade. Fala-se, por exemplo, na instabilidade institucional e nas rupturas da democracia, na ausência de reconhecimento  histórico e vulnerabilidade de atores sociais, na exclusão das suas narrativas, na abdicação por parte de elites de assentar projetos nacionais, na existência de fatores colocados como praticamente “irremediáveis” ou tão “prosaicos”, que impedem a efetivação dos direitos e das garantias fundamentais.

Reafirmamos que embora esses indicadores sejam válidos. algumas das formas de encará-los se traduzem em discursos, em vários casos com altas pretensões de cientificidade, que a nosso juízo podem conduzir a uma paralisia, que em nada ajuda a avançar na construção de um Direito necessário e urgente na perspectiva de superar essas graves situações. Esse Direito necessário e urgente é um Direito desenraizado daquilo que Jesse Souza chama de “violência simbólica” — aquele tipo de violência que não “aparece” como violência —, que torna possível a naturalização de uma desigualdade social abissal,[2] que igual a como se reproduz no Brasil, também é um traço das demais sociedades da América Latina.  

No presente, a violência e a dominação passam por códigos próprios. O Direito que se reproduz com essa função, com maior ou menor intensidade na realidade da imensa maioria das sociedades do subcontinente, paradoxalmente, não é o Direito que forçosamente se desprende, nem sequer, de uma leitura rasa dos textos das constituições ou descompromissada dos rigores da hermenêutica. Exemplificando, o artigo 22 da Carta Política de 1991 de Colômbia, no capítulo dos Direitos Fundamentais, consagra a paz como direito e dever de obrigatório cumprimento. No caso, a interpretação da palavra paz não pode ser arbitrária. E se aprofundamos observaremos, indo à leitura do preâmbulo e reforçados pela sistematicidade do texto constitucional colombiano, que a paz deveria ser uma política do Estado. Contudo, nas comunidades territoriais, nas quais as pessoas convivem ainda no meio da violência sistemática, o artigo não somente passa longe, senão que é a própria força pública a que está comprometida em atos cruéis, torturas e violações aos direitos humanos. A palavra, com seu alto valor e significado, resultante da interpretação no contexto, se perde diante da força dos fatos. No Brasil, a expressão direito à saúde, no artigo 6º e no artigo 196, não está à disposição de qualquer tipo de interpretação oriunda do Executivo. Isso implica uma política de Estado que não pode encontrar no próprio Executivo da União seu desconhecimento.

Somando desconfianças e realidades, preocupados com um Direito que nos parece, reafirmamos, tão necessário quanto urgente, a questão é: de onde decorre a fraqueza do Constitucionalismo destas latitudes? para onde vai o Direito na América Latina? Qual é a sorte das suas constituições? Do seu Constitucionalismo? Certamente, não há como mais sustentar formas de compreensão de questões jurídico-constitucionais tão determinantes com um discurso reprodutor de uma tradicionalidade formuladora, escamoteadora ou invisibilizadora de hegemonias, repetidoras de visões amparadas no classicismo. Com isso não se pretende dizer que elementos do constitucionalismo clássico sejam abandonados. Mas, até para que as virtudes do constitucionalismo liberal possam emergir precisam de condições e orientações em certos sentidos.  

Quando alguns autores brasileiros, como o Professor Lenio Streck, se insurgem diante das simplificações jurídicas, da “liquidificação do Direito”, dos “conceitos sem coisas”, da preocupação de livros de direito de oferecer tudo mastigado, manualisticamente, Streck torna evidente o estágio ao qual se chega, precisamente, pela confusão na “pos-modernidade”, tão criticada por autores como D. Harvey, de questões como informação e formação, do fascínio pela retórica vazia, pela “atomização do fenômeno jurídico” à qual se referia várias vezes o Mestre Konder Comparato. Por outras palavras, escancaram o desconhecimento sistemático e, sobretudo, o desinteresse por conhecer a realidade aplicando critérios e métodos científicos.

Uma das questões mais preocupantes desta questão é como ela interfere na qualidade da nossa democracia. Zaffaroni, há alguns anos, em obra traduzida pelo brilhante professor Juarez Tavares, na qual tece considerações sobre os judiciários latino-americanos, nos lembra que essa sensação dramática de “crise permanente” neste segmento do mundo, há quem saiba muito bem utilizá-la. E, de fato, já tem sido suficientemente explorada em termos políticos. As instituições, diz o jurista argentino, reconhecem funções “manifestas” e “latentes”, ou seja, aquelas anunciadas oficialmente e aquelas que realmente cumprem. A disparidade entre ambas sempre tem sido inevitável. Porém o que nos diferencia aos latino-americanos dos europeus é que, se reconhecemos que o voo democrático é sustentado por múltiplas turbinas, e nem sempre funcionam bem, e algumas sequer funcionam, nas sociedades centrais a inércia democrática permite o luxo de trazer alguns pesos mortos de turbinas que falham ou não operam. O problema é que na América Latina os elementos democratizantes são muito menores. Não há uma inércia democrática, senão um tremendo esforço para levantar voo.  [3]

Por isso, aliada à questão de repensar o Direito, é preciso associar contribuições de caráter universal, presentes com força no nosso Constitucionalismo, com os aportes da América Latina. Só desta forma poderemos levar a sério a ideia de assegurar o sucesso do voo democrático. Isso porque esse exercício está pautado pelo reconhecimento da nossa história, que vista pelo lente de 1988 no Brasil, para apenas tomar como referência o país, nega esse passado ditatorial e impõe uma interpretação do texto normativo orientado por um enfoque que coloca em primeiro plano o ser humano como ente deliberativo e participativo para tomar decisões sobre os rumos da polis, que o sustenta por cima do economicismo e afirma seu trabalho por cima do capital e que, finalmente, considera seu espírito livre.

Talvez este período da América Latina, e em particular brasileiro, seja uma fase importante para nos fazer amadurecer no pensar jurídico em sentido emancipatório, que não ignore experiencias históricas e recentes de conquista ou reafirmação de direitos, senão que as conheça e defenda.

Vale a pena uma aproximação mais decidida para conhecer e refletir, por exemplo, sobre as premissas do pensamento independentista haitiano e a Constituição de 1805 naquele pequeno país, que aboliu a segregação racial mais de um século antes que as affirmatives action nos Estados Unidos.[4] E, sobre questões de nosso tempo, os textos que retratam as experiencias surgidas no enfrentamento da crise sanitária,  demonstrando que, se bem o direito à vida está plasmado em todas as constituições, não há como efetivá-lo plenamente se não partimos de compreender que as mortes pela pandemia não se expandem apenas por um problema de gerenciamento de recursos, senão que estão diretamente relacionadas com a maneira como se edificou a estrutura social, e, “por supuesto”, nosso Direito.  

 

Notas e Referências

[1] Reflexiones sobre la situación actual y perspectivas de los sistemas políticos y constitucionales en América Latina In Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional. Madrid: CEPC. 2003.

[2] Ralé Brasileira. Quem é e Como Vive. BH: UFMG. 2009. P. 15. 

[3] Poder Judiciário, Crise, acertos e desacertos. São Paulo: RT. 1995. P. 32.

[4] Sobre o ponto, há já um trabalho interessante de César Augusto Baldi intitulado Novo Constitucionalismo Latino-americano. Considerações conceituais e discussões epistemológicas, na obra Crítica Jurídica em América Latina, organizada pelo Professor Antônio Carlos Wolkmer e o saudoso Professor mexicano Oscar Correias no ano 2013 e editada no México pela CENEJUS.   

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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