Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Com a estranha sensação do que a pandemia do COVID-19, não veio do nada, lembrei-me da mitológica Pandora e da sua caixa.
A mitologia nos conta que Júpiter criou a primeira mulher e a batizou de Pandora. Foi feita no céu, e cada um dos deuses contribuiu com alguma coisa para aperfeiçoá-la. Vênus concedeu-lhe a beleza e os encantos que seriam fatais aos homens; Mercúrio deu-lhe a persuasão, a graciosa fala e o coração cheio de artimanhas e astúcia e Apolo a música e o canto. Plena de dotes, a mulher foi mandada a Terra e oferecida a Epimeteu (o que pensa depois), que de boa vontade a aceitou, embora tenha sido advertido pelo irmão, Prometeu (o que pensa antes), a ter cuidado com Júpiter e seus presentes e nunca os receber. Contudo, Epimeteu apaixonou-se pela jovem, tornando-se o primeiro marido da história.
Hermes, o mensageiro dos deuses, trouxe uma belíssima caixa como presente de casamento na qual estavam guardados certos artigos malignos. Pandora foi advertida para jamais abri-la. Contudo foi tomada por intensa curiosidade de saber o que continha àquela misteriosa caixa. Certo dia destampou-a deixando escapar e espalhar-se pelo mundo, uma multidão de males, sofrimentos, medos, violências, pragas e doenças que atingiram o homem. Pandora apressou-se a colocar a tampa na caixa, mas, infelizmente, escapara o conteúdo da mesma, à exceção de uma coisa que ficara presa no fundo e que era a esperança.
Assim, sejam quais forem os males que nos ameacem a esperança não nos abandonará e, enquanto a tivermos na alma e no coração, nenhum mal nos torna inteiramente desgraçados.
E certamente esses males continuam soltos a afligir a humanidade. As doenças e as catástrofes vêm se aperfeiçoando em modo e em estilo. Dessa vez, mesmo com todo o avanço científico e tecnológico sem precedentes, onde vivenciamos a Revolução 4.0, um vírus foi capaz de causar uma pandemia e colocar o mundo em alerta total.
Nos tempos que rotulamos de pós-modernidade, experienciamos a era dos perigos, face as grandes catástrofes que marcaram o século XX. Vivenciamos duas grandes guerras mundiais, campos de concentração (Auschwitz), acidentes nucleares (Nagasaki, Harrisburg e Bhopal). Infelizmente esse é um breve e parco relato sobre toda a miséria e a violência que seres humanos infligiram a seus pares. Ademais, não podemos esquecer que os inventos modernos passaram a causar estragos de magnitude e sem fronteiras. Por exemplo, vemos que a partir do acidente nuclear de Chernobyl, os perigos passaram a afligir a todos, indistintamente. A nuvem radioativa ficou meses provocando pavor da contaminação nuclear.
Vivemos na globalização. Em face da facilidade do comércio entre países e do grande fluxo de pessoas que circulam entre eles, uma epidemia vivida em uma dada região e transplantada para as demais regiões do planeta, inclusive em áreas mais longínquas. O que conhecemos como fronteira não é capaz de barrar os vírus, bactérias e demais micro-organismos. E é por esse motivo que as doenças do passado transformaram-se em pandemias e, a que estamos vivenciando, sem dúvida é a mais grave que até hoje assolou a humanidade. Penso que os males que a Pandora libertou da caixa, são inteligentes e estão em constante mutação. Certamente se alimentam da maldade, da falta de amor ao próximo e, sobretudo, da falta de cuidados com o corpo, com a alma e com a mente. Desenvolvemos armas letais. Não só os conhecidos venenos, os arsenais bélicos e nucleares. Produzimos lixos de todas as espécies; provocamos o contágio das águas e o desequilíbrio da Mãe Natureza; manipulamos a vida em seus códigos genéticos. Podemos produzir monstros piores do que os que estavam aprisionados na caixa de Pandora.
Pensando um pouco sobre o ser humano e a humanidade, vem à mente as palavras do filósofo Jean Paul Sartre que reflete sobre o sentido que o homem dá à própria vida: “Estamos condenados a ser livres”. Para Sartre, a existência do ser humano vem antes da sua essência. Ou seja, não nascemos com uma função pré-definida a exemplo de uma tesoura que foi feita para cortar. Segundo o filósofo, antes de tomarmos qualquer decisão, não somos nada. Moldamo-nos a partir das nossas escolhas. Toda essa liberdade resulta em muita angústia. Essa angústia é ainda maior quando percebemos que nossas ações são um espelho para a sociedade. Estamos constantemente pintando um quadro de como deveria ser a sociedade a partir das nossas ações. Para Sartre, a má-fé seria mentir para si mesmo, tentando nos convencer de que não somos livres. O problema é que nossos projetos pessoais entram em conflito com o projeto de vida dos outros. Eles, os outros, tiram parte de nossa autonomia. Por isso, temos de refletir sobre nossas escolhas para não sair por aí agindo sem rumo, deixando de realizar as coisas que vão definir a existência de cada um. Ao mesmo tempo, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com erros e acertos. Já que a convivência expõe nossas fraquezas, os outros são o “inferno”. Está é a origem da célebre frase do pensador francês.
Partindo desse pressuposto de que temos a liberdade de condução de nossas vidas, e pensando no atual momento que impõe a todos o isolamento social, na medição da distância considerada “segura” entre uma pessoa e outra. Pensando no uso de máscaras e da necessidade premente de higienização. Certamente essa liberdade está em pensar em como nossas atitudes atingirão o outro, mesmo que a nossa liberdade seja tolhida. Em meio a isso, é necessária se ressaltar que a liberdade vem abraçada a outros sentimentos: a esperança e a paciência. Esperança é uma crença emocional na possibilidade de resultados positivos relacionados com eventos e circunstâncias da vida pessoal. A esperança requer perseverança. É acreditar que algo é possível mesmo quando há possibilidades do contrário.
A paciência é caracterizada pela manutenção do equilíbrio emocional. Consiste basicamente na tolerância a erros ou fatos indesejados. É a capacidade de suportar incômodos e dificuldades de toda a ordem, de qualquer hora ou em qualquer lugar. É a capacidade de persistir numa atividade difícil, adotando a tranquilidade e acreditando que conseguirá o que quer. É ser perseverante e esperar o melhor momento para atitudes. Aguardar em paz a compreensão que ainda não se tenha obtido. Traduz-se na capacidade de ouvir alguém, com calma, com atenção, sem ter pressa, capacidade de se libertar da ansiedade.
De paciência, deriva a palavra “paciente”, que é destinada aos enfermos que estão sobre cuidados médicos. E o que mais estamos acompanhando com a evolução da malsinada pandemia, é vontade das pessoas adoecidas, de se tornarem “pacientes”. Ingressando no estado antagônico da paciência, vem o desespero que se apoia na míngua de leitos em hospitais, na ausência de medicamentos, pela falta de ar nos pulmões. Medo de ficar sozinho. Tememos a possibilidade de perder a vida sem poder dizer aos entes queridos do amor que partilhavam.
Voltando um pouco à lenda de Pandora, diz-se que, após libertar os males, ela caiu fulminada. Hades, o deus do reino dos mortos, com interesse nas ambições de Pandora, procurou as Moiras que eram as entidades que dominavam o tempo e lhes pediu para que voltassem o tempo. Sem a permissão de Zeus, elas nada puderem fazer. Hades então vai até seu irmão Zeus e pede para ressuscitá-la e conceder-lhe a divindade que sempre aspirou. Assim, Pandora torna-se a deusa da ressureição.
A imagem de Pandora e a esperança são símbolos de uma parte do ser humano que, apesar das frustrações, desapontamentos e perdas, ainda encontra forças para se agarrar ao sentido da vida e ao futuro. A esperança é sempre uma luz que nos serve como guia, mesmo que não consiga dissipar a escuridão que nos aflige a alma. A esperança e a paciência, nesses momentos, fazem a diferença entre a vida e a morte. A esperança é algo profundo e misterioso que transcende a qualquer catástrofe. Entretendo ela surge de uma vontade, ou seja, como nos lembra Sartre, de algo deliberado. Penso que é assim que devemos agir, deliberando pela vontade de viver.
E seguindo com as minhas esperanças, para fechar essas reflexões, cito um trecho da letra imortalizada na música “paciência”, composta por Carlos Eduardo Carneiro De Albuquerque Falcão e Oswaldo Lenine Macedo Pimentel, que traduzem a situação que vivenciamos agora:
“Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência”.
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