Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
No dia 09 de outubro de 2024, foi sancionada a Lei nº 14.994, apelidada popularmente de “Pacote Antifeminicídio”[1], a qual promove substantivas alterações em diversos diplomas legais que compõem o ordenamento penal nacional, com o intuito de tornar mais rigoroso o combate à violência de gênero.
Dentre as mudanças, destaca-se o agravamento das punições aplicadas às condutas típicas praticadas “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, merecendo destaque a primeira pena máxima de 40 anos incluída no art. 121-A do Código penal, após a autorização da lei 13.964/2019; a previsão do feminicídio como crime autônomo, assim como a inclusão do requisito de cumprimento de 55% da condenação para progressão de regime.
Apesar do posicionamento social que essa modificação legal em um primeiro plano parece assumir, a referida lei deixou de apresentar valiosos detalhamentos às figuras penais já existentes, de modo a aperfeiçoar a norma que permanece pouco precisa e dependente de interpretações subjetivas para a compreensão de expressões amplas como “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. O que se vê, de modo geral, é a apresentação de resposta legislativa-penal mais grave para a violência de gênero como forma utópica de contenção da criminalidade.
O distanciamento do direito penal com dados empíricos de maneira a atender o populismo penal certamente acabará acarretando o aumento significativo da população carcerária e provavelmente o oposto do desejado. A nova lei foi publicada quando os dados indicavam uma redução de 10% da população carcerária presa por violência doméstica, analisando as informações divulgadas nos relatórios penais da SENAPPEN nos anos de 2023 e 2024.[2][3]
Essa crescente no punitivismo se apodera de pautas feministas, principalmente das que deixam de estabelecer conexão entre a violência de gênero e a violência sistêmica desencadeada por outras forças de opressão, para institucionalizar o encarceramento em massa e, nessa toada, apenas acabam por gerar novas fontes de violência. Em outras palavras, a fixação de penas mais gravosas aos delitos praticados em razão da condição de mulher ocasiona, tão somente, mais um ciclo de violência que se perpetua em escala cada vez maior.
Nas palavras da autora feminista Rita Segato, esse recrudescimento penal tenta “eliminar um sintoma sem eliminar a doença”[4]. Penas mais gravosas e uma progressão de regime mais tardia apresentam como único resultado um aumento torrencial da população carcerária nacional, a qual já ultrapassa em muito o contingente adequado às unidades prisionais existentes, acabando por agravar o estado de coisas inconstitucional que é o sistema carcerários Brasileiro.
Nessa esteira, destaca-se viés políticos que essas modificações possuem, evidenciado no pensamento de Maurício Martinez, disposto no célebre livro “Depois do Grande Encarceramento” organizado pelos professores Vera Malaguti e Pedro Vieira Abramovay:
“O novo caramelo que se oferece nas campanhas eleitorais é um veneno que pode matar, mas que é aceiro por uma população presa do pânico porque é apresentado como um remédio para aniquilar monstros de um zoológico no qual se incluem, principalmente, terroristas, narcotraficantes ou violadores de mulheres e de meninos, e, por isso o populismo punitivo se caracteriza pelo oferecimento de penas altas pela mudança da utopia ressocializadora pela inocuização da maldade através de penas degradantes; pela reinvindicação das vítimas para contrapô-las aos direitos dos selecionados como maus; pela privatização das tarefas de controle ao delito; pelo assinalamento aos operadores judiciais do fracasso do “combate à criminalidade”; (...) E como se trata de ganhar consensos e votos, esse populismo tem como destinatário principal as massas e as maiorias apresentadas como potenciais vítimas.”[5]
Apenas para não distanciar os dados estatísticos do presente artigo, segundo o último relatório de informações penais – RELIPEN da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) a população penal em 30/06/2024 era de 663.387 presos para uma capacidade de vagas de 488.951, representando um déficit de vagas significativo de quase 30% do sistema.
A previsão de punições mais rigorosas acaba por reforçar ideias patriarcais acerca das vítimas, baseadas na presumida fragilidade e vulnerabilidade atribuída ao gênero feminino, o que gera novos estereótipos de gênero a serem analisados quando da imputação desses delitos. Ou seja, em todos os prismas e perspectivas, a utilização de penas mais graves para combater a violência contra mulheres se mostra prejudicial à sociedade, já que não se mostra capaz de nem ao menos diminuir os índices de cometimento desses delitos.
Expostas as críticas teóricas a essa mudança legislativa, passa-se a demonstrar os problemas práticos que o mero aumento das reprimendas ocasionam, retornando assim à permanência da problemática da ausência de clareza nos tipos penais abarcados por esta nova lei, a qual poderia ter sido sanada com essa norma e não o foi.
Nessa esteira, é de especial relevância trazer à baila de maneira mais específica os aumentos de pena mínima e máxima destinada aos delitos correlatos, para além do feminicídio, o qual passou a ser o crime com a maior reprimenda penal do país. São eles: a lesão corporal qualificada por violência doméstica ou por misoginia; a ameaça, a calúnia, a difamação, a injúria e as vias de fato praticadas em contexto doméstico ou por motivo de misoginia; e o descumprimento de medidas protetivas de urgência.
Com a nova legislação, os parágrafos 9º e 13º do art. 129 do Código Penal, que previam, respectivamente, 03 meses a 03 anos de detenção e 01 a 04 anos de reclusão, passaram a possuir como pena de 02 a 05 anos de reclusão, representando um aumento significativo de 700% e 100% da pena mínima, respectivamente.
Essa mesma dosimetria passou a representar também a pena atribuída ao descumprimento das medidas protetivas, previsto no art. 24-A da Lei nº 11.340/06, o qual antes tinha como parâmetro legal de 03 meses a 02 anos de detenção. Os crimes contra a honra e a ameaça praticadas contra a mulher agora possuem pena em dobro, enquanto a contravenção penal de vias de fato possui pena triplicada.
Tomando como exemplo a lesão corporal, é possível verificar que houve a equiparação o resultado condenatório cabível às qualificadoras previstas nos parágrafos 9º e 13º, as quais tutelam cenários distintos, que muitas vezes se confundem na sua aplicação pelo poder Judiciário. O primeiro concerne a conduta de lesionar ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.
Já o segundo caracteriza a lesão praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do parágrafo 1º do art. 121-A do Código Penal, referente ao feminicídio. Tal previsão legal dispõe que as razões da condição de gênero são consideradas presentes quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
De plano, pontua-se novamente a amplitude dos termos utilizados, como o menosprezo e a discriminação, sem delimitar a abrangência desses termos. Outrossim, a redação destes dispositivos parece conexa, uma vez que, como o próprio parágrafo 13º induz, o intuito de lesionar em função da misoginia pode se valer também de características e dinâmicas domésticas e/ou familiares.
Assim, a coexistência desses artigos antes dessa lei permitia a imputação de pena mais branda em cenários de violência doméstica, em que a vítima não necessariamente precisamente ser do gênero masculino, ou a configuração de reprimenda mais gravosa, diante de conduta praticada contra mulher, seja valendo-se de ambiente doméstico ou de razões de cunho misógino. Agora, considerando que a pena é a mesma, pouco importa a vítima ou as razões que levaram ao cometimento do delito.
Aprofundando ainda mais o tema, há que se ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça entende como plausível a incidência da agravante prevista na alínea “f”, inciso II, art. 61 do Código Penal[6] na segunda fase da dosimetria da pena aplicada à ambos os parágrafos supramencionados, assunto que está fixado pelo julgamento do Ag. Rg. No REsp nº 1.998.980-GO, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, da Quinta Turma, apesar do aparente bis in idem entre as redações.
Em outras palavras, é dizer que em adição aos aumentos de pena promovidos por essa nova norma, já existiam outros métodos de agravamento de punição, os quais não resolveram, em nada, na coibição desses vis atos ilícitos praticados contra mulheres. E mais, perpetuam a vagueza desses tipos penais, cujo escopo é tão vasto que dificulta a imputação da acusação de forma correta e apta nos casos por eles tutelados.
Por conseguinte, conclui-se que o emaranhado legislativo e jurisprudencial que hoje representa o combate penal a violência contra a mulher apresenta algumas falhas, tanto em seu caráter excessivamente punitivista quanto em não se propor a sanar lacunas preexistentes, as quais mantem imprecisas as expressões utilizadas para configurar os tipos penais correlatos. Dessa forma, evidenciando a aplicação prática de tais normais no contexto concreto, prático, tem-se que esse cenário tende a possuir o efeito contrário ao vendido como objetivo da norma, qual seja reter a criminalidade de gênero e conceder às vítimas justiça, uma vez que imbuídos dos mesmos vieses patriarcais e sistêmicos que a própria violência.
O elevado custo social e financeiro do aumento da população carcerária masculina que certamente ocorrerá com o novo ordenamento jurídico seria mais bem utilizado com programas sociais de conscientização, palestras, clínicas especializadas e acompanhamento psicológico dos egressos do sistema por crimes cometidos contra a mulher.
Notas e referências:
[1] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2024/lei-14994-9-outubro-2024-796445-publicacaooriginal-173328-pl.html.
[2] Disponível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf
[3] Disponível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2024.pdf
[4] Disponível em: https://latfem.org/la-carcel-es-una-verdadera-escuela-de-violacion-para-los-violadores/. Acesso em 21/10/2024.
[5] ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 313/314.
[6] Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
(...) II - ter o agente cometido o crime:
(...) f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;
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