O fascismo e os mais variados tipos de autoritarismos são dos mais importantes acontecimentos do século XX, concepções políticas conservadoras e fenômenos tipicamente modernos que vão realocar o Estado no campo da filosofia política. De um Estado contratual e liberal, de matriz hobbesiana, fundado na alienação voluntária das liberdades individuais e criado sob a promessa de garantia da paz e da segurança (o medo da morte violenta é o afeto- motor de sua criação), passa-se ao Estado forte cujos objetivos vão superar e condicionar os indivíduos a propósitos que lhes superam e ultrapassam. Tanto na Itália dos anos 1920, quanto na Alemanha dos anos 1930, e nos anos que se seguem e vão desaguar na segunda guerra mundial, algo de substancialmente novo e assustador acontece no interior do Estado e de suas concepções teóricas, um movimento que o projeta para uma nova arquitetura.
Nessa nova arquitetura os Tribunais cumprem importantes papéis. Concebidos antes mesmo da modernidade para a preservação de privilégios nobiliárquicos e do status quo, os Tribunais e sua metodologia “pacífica” de resolução dos conflitos sociais contribuíram à formação de sentimentos de lealdade e confiança que migraram, gradativamente, da Igreja, da comunidade e da família para o Estado, cujos elementos básicos já despontam na Europa dos séculos XII e XIII, sobretudo na França e na Inglaterra (STRAYER, 1997).
No desenho liberal que já começa a prevalecer nos séculos XIX e XX, o Judiciário cumpre, sobretudo no cenário da tradição common law, um papel contramajoritário de defesa dos direitos das minorias e de consolidação da democracia, na sempre tensa relação com os poderes majoritários dotados de legitimidade democrática representativa do tipo procedural, ou seja, emanada diretamente do corpo eleitoral, diferentemente da representatividade funcional, derivada da Constituição e das leis, que gravaria o Poder Judiciário (VIANNA; BURGOS, 2003). O papel contramajoritário, diz-se, se apoiaria na garantia de independência política de juízes e Tribunais, em sua imparcialidade, num processo de mutação do conceito de democracia como regra da maioria pelo de democracia constitucional em que os direitos das minorias são garantidos pelos textos constitucionais e velados por Tribunais apolíticos (BRANDÃO, 2017). Nesse cenário, em que o papel do Judiciário tende a expandir-se, surgem três questões fundamentais (SANTOS; MARQUES; PEDROSO; FERREIRA, 1996): a questão da legitimidade, pois na maioria dos países os magistrados não são eleitos, não obstante as potenciais interferências dos juízes em temas típicos do Poder Legislativo e do Poder Executivo; a questão da capacidade, ou seja, questionamentos acerca dos recursos e estrutura suficientes dos Tribunais para levarem a cabo suas crescentes tarefas de forma eficaz; e a questão da independência dos tribunais (orçamentária, inclusive) frente aos demais poderes.
Na experiência fascista italiana o sistema de justiça funciona como verdadeira máquina de guerra do Estado contra seus inimigos (os comunistas, em especial), seja na aplicação rigorosa das sanções penais em defesa do Estado e de seus interesses autoritários (v.g., os crimes de “atividade antinacional do cidadão no exterior”, de “associação subversiva” e de “propaganda ou apologia subversiva”, os crimes políticos), seja no manejo de medidas de segurança de caráter preventivo, baseadas em critérios de periculosidade, numa atuação política voltada à conservação e defesa do regime (é dessa época o surgimento da ideia de “segurança do Estado”).
Tal aparato de exceção conta, em suas formulações teórica e prática, com a contribuição decisiva de Alfredo Rocco, o jurista de Mussolini (MEZZETTI, 2012). Rocco (1875-1935) concebe o Estado como um organismo ético-religioso, uma unidade social e étnica ligada por vínculos de raça, língua, costumes, tradições históricas, moralidade e religião, um Estado que domina todas as forças e que tudo submete à sua disciplina (ideologia do Estado forte).
Já os Tribunais atuarão como correias de transmissão das violências cometidas pelo Estado fascista, ou melhor, como uma forma do agir político voltada a reprimir e a suprimir o dissenso, legitimando o Estado nacional numa relação contraditória, mas produtiva, entre política e justiça. Isso se dá, sobretudo, através das decisões arbitrárias do Tribunal Especial para a Defesa do Estado (1926-1943), um órgão gestado ao modelo militar, mas de natureza política, talvez a mais importante máquina de guerra judiciária mobilizada pelo fascismo.
Há repercussões de toda essa arquitetura judiciária do Estado fascista italiano no pensamento e na atuação política de Francisco Campos (1891-1968), político de destaque e o grande jurista e ideólogo do Estado Novo. Também em Francisco Campos o Estado deve ser forte e promover a ordem, sendo o Estado um sistema animado de um espírito e de uma vontade, unificado em torno de um guia e condutor. Assim, o Estado forte gira em torno de uma persona que decide e que ocupa o centro de vontade e de responsabilidade política: arquiteto e construtor da nação, protetor e justiceiro. Um Estado, enfim, unificado (a “ordem da unidade”) e de caráter popular, conectado ao povo por uma comunhão de espírito (“um só corpo e uma só vontade”), produtor de uma pedagogia social.
O Judiciário, a seu turno, é visto como o locus das formalidades e do conservadorismo, um empecilho aos desígnios econômicos, políticos e sociais do governo e destinado a moderar e inibir a satisfação dos anseios nacionais. Por isso deve ser transformado.
Outro ponto de convergência com a experiência fascista italiana se dá com a criação do Tribunal de Segurança Nacional, em 1936, inicialmente no âmbito da Justiça Militar, com a finalidade de julgar, principalmente, os crimes contra a existência, a segurança e a integridade do Estado. O Tribunal de Segurança Nacional surge como uma reação à Intentona Comunista de 1935 e por sua intermediação o Estado Novo instrumentaliza o combate aos seus inimigos, inicialmente os comunistas, depois também os integralistas.
Postas desse modo as principais questões, o objetivo do presente trabalho é, no marco de perspectivas críticas sobre a teoria do estado1 e a problemática relação entre direito e política, contribuir ao aprofundamento das aproximações entre as concepções políticas do Poder Judiciário no fascismo italiano e no estadonovismo brasileiro, indo além das pesquisas que resgatam as relações de filiação entre a legislação criminal italiana da década de trinta e a legislação brasileira produzida pelo Estado Novo (o Código Penal de 1940 e o Código de Processo Penal de 1941), de modo a aclarar os papéis desempenhados pela magistratura e pelos Tribunais sob os comandos de Mussolini e de Vargas. É provável que a negação de qualquer aproximação entre a experiência brasileira do Tribunal de Segurança Nacional e os Tribunais nazifascistas (O Tribunal do Povo Alemão do III Reich e o Tribunal de Defesa do Estado italiano), feita categoricamente por LOEWENSTEIN (1942), tenha contribuído para a relativa escassez de estudos que promovam o diálogo entre referidas Cortes, um vácuo que o presente trabalho, sem qualquer pretensão de esgotamento, pretende ajudar a preencher.
A metodologia consistirá na revisão bibliográfica sobre o tema, sobretudo o resgate da bibliografia sobre Alfredo Rocco, Francisco Campos e os tribunais especiais de repressão política instalados na Itália e no Brasil nas décadas de 1920 e 1930.
1. O Estado Forte Italiano
As ideias de força e de violência são conaturais ao Estado moderno e compõem a imagem do Leviatã desde pelo menos o Século XVII. No capítulo 17 de sua obra magna, Hobbes define o Estado como uma pessoa instituída por uma grande multidão “mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um poder usar a força e os recursos de todos, de maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum” (HOBBES, 2020, p. 131). A definição de Hobbes toma a violência em sua dimensão teleológica, o que significa dizer que a fonte de legitimidade do uso da força consiste na garantia da paz e da segurança.
Em Weber, que problematiza a perfeição contratualista de Hobbes, a violência é tomada como o instrumento específico do poder do Estado (muito embora a violência não seja o único instrumento utilizado pelo Estado), que se converte na única fonte do “direito” à violência. Não se trata mais de uma violência instrumental, pois há uma relação “particularmente íntima” entre Estado e violência:
Tal como todos os agrupamentos políticos que historicamente o precederam, o Estado consiste em uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violência legítima (isto é, da violência considerada legítima). O Estado só pode existir, portanto, sob condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos dominadores (WEBER, 2011, p. 67).
De todo modo, a violência do Estado fascista italiano contém algo de peculiar: cuida- se de uma violência ancorada no nacionalismo, em imagens e signos de povo e de nação e que vai engendrar um projeto identitário intergeracional que comprime passado, presente e futuro numa única dimensão temporal. Não se trata mais de garantir a paz e a segurança nem tampouco do exercício historicamente situado do poder, mas de construir uma unidade espiritual entre Estado e sociedade centralizada na pessoa do chefe da nação. Para a compreensão do papel da violência no fascismo italiano e de todos esses elementos que a distinguem de outras violências estatais é necessário recuperar a doutrina política do fascismo e o conceito de Estado forte.
Nesse ponto a contribuição de Alfredo Rocco é notável e será aqui recuperada. Professor catedrático da Università degli studi di Padova (1910-1925), Reitor da Università di Roma (1932-1935), Deputado da República italiana (1921-1924) e Ministro da Justiça de Mussolini (1925-1932), dentre outros cargos ocupados, além de autor de inúmeros textos sobre direito comercial e direito processual, Rocco pensa, juntamente com Giovanni Gentile,2 uma doutrina política do fascismo que pretende ser moderna e progressista, mas que não rompe com a tradição política e cultural da história italiana. Se é verdade que o fascismo é, antes de tudo, ação e sentimento ligados aos instintos raciais italianos e à alma do povo italiano, é também uma doutrina coerente e orgânica capaz de alcançar validade universal a partir de princípios teóricos próprios. Rocco reconhece, contudo, que o fascismo nunca teve sérias preocupações com questões epistemológicas e metodológicas, preocupando-se mais com os fins sociais a serem alcançados (ROCCO, 2019).
Na visão de Rocco, o pensamento político italiano estaria preso aos paradigmas liberal e socialista, os quais teriam na reforma protestante, na doutrina do direito natural dos séculos XVII e XVIII e nas revoluções liberais do século XVIII uma origem comum. A doutrina fascista constrói-se em contraposição a essa tradição, que concebe a sociedade como uma mera soma de indivíduos cujos desejos condicionariam os seus fins, o que reduziria a vida social à geração presente e a seus interesses egoísticos num determinado momento histórico. Tanto no liberalismo quanto no socialismo o bem-estar e a felicidade individuais seriam as metas a serem atingidas na vida em sociedade, variando apenas a metodologia para o alcance de tais objetivos: o liberalismo crê que a melhor forma de realização dos objetivos individuais consiste em garantir a menor interferência possível do Estado, um Estado coordenador geral das liberdades de indivíduos portadores de uma dignidade humana, como concebido por Kant, num quadro de promoção da felicidade harmoniosa de todos; já o socialismo apostaria na intervenção estatal e na abolição da propriedade privada, na assunção do controle direto da produção pelo Estado de modo que o produto do trabalho seja distribuído apenas entre aqueles que o produzem, ou seja, a classe trabalhadora. Liberalismo e socialismo divergiriam apenas no campo da economia e seriam derivações lógicas, na medida em que o desenvolvimento do primeiro produziria a democracia e esta, em consequência, levaria ao socialismo. Em suma, a verdadeira antítese ao pensamento europeu dominante no século XIX e início do Século XX seria o fascismo (ROCCO, 2019).
Muito embora Rocco dirija duras críticas ao liberalismo, na linha de que apenas uma pequena elite usufruiria de seus benefícios e de que a teoria da separação dos poderes enfraqueceria o Estado, não há uma negação absoluta do modelo liberal, na medida em que a liberdade econômica serviria melhor aos objetivos sociais, sendo a ambição individual o modo mais efetivo para obter os melhores resultados sociais com o menor esforço. Para o fascismo, os pilares do liberalismo não seriam um dogma, seriam apenas um método a ser aplicado, ou afastado, de acordo com as necessidades sociais (ROCCO, 2019). A concessão feita ao liberalismo enquanto método permite compreender porque Mussolini recebeu maciço apoio da burguesia industrial italiana e porque os comunistas foram os seus principais alvos.
O alcance dos objetivos sociais propostos pela doutrina do fascismo italiano se apoia em grande medida num Estado forte, um conceito que Rocco também desenvolve.
Diferentemente do Estado liberal, que investiria o povo como titular da soberania, o Estado fascista rejeita o dogma da soberania popular para substitui-lo pelo da soberania do Estado. A relação entre Estado e sociedade no fascismo é claramente orientada pela supremacia estatal, que reconhece os direitos dos indivíduos, inclusive o direito à propriedade, apenas na medida de sua utilidade social.
O homem é concebido como um ser social (aqui Rocco invoca a concepção aristotélica do homem como animal político) que compartilha com a espécie humana finalidades espirituais que são, em maior ou menor medida, atravessadas por influxos espirituais de unidade de linguagem, cultura, religião, tradição, costumes, sentimentos e volições, interesses econômicos e condições de vida num mesmo território. A unidade seria então um pressuposto para a realização dos fins propostos pelo Estado fascista e é por intermédio da unidade que se instrumentaliza a dimensão individual:
(...) para o fascismo, a vida da sociedade se sobrepõe à existência dos indivíduos e se projeta nas gerações seguintes ao longo dos séculos e milênios. Os indivíduos nascem, crescem e morrem, seguidos por outros, incessantemente; a unidade social permanece sempre idêntica a si mesma. (...) Para o fascismo a sociedade é o fim, os indivíduos os meios, e toda a sua vida consiste em usar os indivíduos como instrumentos para seus fins sociais (ROCCO, 2019, p. 56 – tradução livre).3
Há na doutrina fascista uma tensão com o problema da multidão, que, por sua natural pluralidade, problematiza a concepção de unidade. Para Rocco as multidões são sinônimo de tirania.4
O conceito de multidão (ou de “massas”) sempre foi negligenciado pelos historiadores e desprestigiado pela filosofia política, que, de um modo geral, considera a multidão como algo marginal e mesmo pré-político, uma massa ignara. Mais até, a multidão sempre foi vista como um fator de desestabilização da política e da vida civilizada, um corpo violento e bárbaro, uma turba irracional e inimiga a ser combatida ou, ao menos, neutralizada. Em linhas gerais, à comunidade política organizada e unificada opõe-se à multidão instável e por vezes desorganizada dos pobres e indignados de todo o gênero (trabalhadores assalariados, pequenos proprietários, artesãos etc), mergulhados ainda no estado de natureza anterior ao contrato social (ou simplesmente não-incluídos no contrato). Formada por uma classe considerada subalterna e passiva, a multidão é geralmente vista, numa concepção despotencializadora, como um aglomerado que na situação limite da indignação serve-se de sua potência meramente quantitativa como forma de resistência e protesto. O ser uma “mera quantidade” estaria a significar a desconsideração de qualquer qualidade nos atos da multidão. Há também uma associação entre multidão e as ideias de transitoriedade e inorganicidade, uma correlação negativa que refuta a relevância da multidão efêmera na vida política. Como forma de superar tal estado de volatilidade ganha importância, no Século XVIII, a figura do cidadão, elemento que agora, por sua estável vinculação jurídico-política ao Estado, deixa de pertencer à massa difusa e indeterminada da multidão, ou dela participa apenas nos momentos em que a multidão é um ajuntamento pacífico (a multidão que invade as ruas durante uma festa popular, uma multidão de curiosos etc).
Na filosofia política é Maquiavel, inicialmente, quem tem um papel decisivo em conferir uma dimensão positiva ao conceito ao considerar que a virtude do príncipe deve fundar-se sobre o povo, muito embora não haja em seu pensamento qualquer romantismo a respeito da multidão. Por exemplo, nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, diz que o povo muitas vezes se engana e que, por isso, conduz a república à ruína. Não obstante, Maquiavel não vê uma natureza fraca e vil no povo, cuidando-se, antes, de instituir uma ordem legal capaz de fazer face aos defeitos da multidão irrefreada. Indo além, Maquiavel considera que embora as naturezas do príncipe e do povo sejam iguais – premissa que por si só já se mostra bastante inovadora – o povo, por sua capacidade de aprender a verdade, erra menos que o príncipe (MAQUIAVEL, 2007, p. 170), ou seja, há em seu pensamento a clara defesa de uma superioridade do múltiplo sobre o singular (e sobre o unitário) e a promoção do povo e da multidão ao status de sujeitos políticos, cujos interesses devem guiar e sustentar o príncipe (MAQUIAVEL, 2011, p. 44).5
O fascismo reconhece a potência da multidão, a superioridade do múltiplo, mas retira- lhe a qualidade de sujeito político e drena sua potência ao duce, forjando um estado de unidade anônima. Por isso o conceito de povo, que substitui o conceito de multidão e que o fascismo utiliza de modo bastante frequente, cumpre um papel de unificação do homem à soberania do Estado-nação, tornando-se o cidadão e o povo partes do Estado forte e unitário.
O direito promulgado pelo Estado apresenta-se como uma poderosa ferramenta de contenção dos movimentos da multidão, principalmente através de sua face criminal e repressiva e da perseguição e punição implacável dos sediciosos, o que nos remete ao papel do Judiciário durante o fascismo.
2. O Tribunal Especial para a Defesa do Estado (1926-1943)
A possibilidade de proferir vereditos definitivos em Tribunais e instâncias judiciárias sobre os conflitos sociais sempre funcionou como uma forma socialmente visível e compreensível de expressão da soberania estatal, talvez uma das expressões de soberania mais típicas do poder estatal, em que um terceiro imparcial impõe aos contendores uma solução que tende a estabilizar-se e que é garantida pelo exercício “legítimo” da violência.
Na Europa do século XIX e início do século XX, por influência do iluminismo penal do Século XVIII (Beccaria, por exemplo), a legislação criminal seguia o modelo ideológico liberal de solução de conflitos, ou seja, o modelo processual informado pelo devido processo legal e no qual os juízes só agiam por provocação dos interessados (ne procedat iudex ex officio). Da mesma forma, até por conta do modelo processual então vigente, os Tribunais europeus, de um modo geral, adotavam metodologias liberais de solução dos conflitos sociais, em processos informados pela publicidade, contraditório e ampla defesa, paridade entre as partes etc. Pode-se dizer que a metodologia judicial consistente na resolução de conflitos por um staff especial de agentes (os juízes), através de um método legal preordenado em que o caso conflituoso é solucionado levando-se em conta o peso dos argumentos jurídicos das partes (e não razões políticas) e com vistas à produção de efeitos prospectivos (TATE; VALLINDER, 1995) advém de uma concepção liberal do processo e do papel dos Tribunais na era moderna, que começa a ganhar corpo na Europa dos séculos XIX e início do século XX.
O período liberal baseia-se em algumas ideias axiais sobre a função judicial (SANTOS; MARQUES; PEDROSO; FERREIRA, 1996) que são a separação dos poderes; o império da legalidade, que produz a neutralização política do poder judicial;6 a reatividade judicial (ou inércia); a individualização dos conflitos, geralmente fundados no direito de propriedade; a necessidade de sedimentação de segurança jurídica; e a independência das Cortes, submetidas apenas ao império da lei. Tais ideias-quadro produzirão uma situação de “raquitização” da influência política dos Tribunais frente aos poderes majoritários, uma situação de subalternização política de um Judiciário que se limita ao campo da microlitigiosidade interindividual, não obstante o desenrolar de uma macrolitigiosidade social que explodia a partir do desenvolvimento vertiginoso da economia liberal e das questões sociais que já apareciam, tais como a criminalidade, o déficit de direitos sociais etc (SANTOS; MARQUES; PEDROSO; FERREIRA, 1996).
Na Itália do final do Século XIX, início do século XX, não era diferente. Desde pelo menos o Código Zanardelli (1889) adotava-se uma orientação francamente liberal, embora moderada. Referido Código, editado após frustradas tentativas de unificação legislativa em uma Itália já unificada – mas que possuía ainda, no final do Século XIX, diversas legislações penais espalhadas por seu território – extingue a pena de morte, com exceção de alguns crimes militares cometidos em tempo de guerra, e também a pena de trabalhos forçados; abranda as sanções penais através da previsão de circunstâncias atenuantes; prevê penas alternativas à pena de prisão e a liberdade condicional; descriminaliza a resistência privada ao abuso de poder de agentes públicos; e, relevantíssimo, garante a livre manifestação do dissenso político (LACCHÈ, 2014). Ou seja, o Código Zanardelli adotava um garantismo liberal que já era praticado por outros países europeus, muito embora ainda houvesse espaço, na legislação italiana, para a atuação repressiva da polícia contra os “comportamentos desviantes” das “classes perigosas” (LACCHÈ, 2014).
Com o fascismo, contudo, forja-se uma nova legislação de endurecimento penal em que se outorga a juízes e tribunais poderes reforçados de condução autoritária dos processos, nos quais os acusados são meros objetos de relações processuais encaminhadas à produção de resultados predeterminados, e não sujeitos titulares de garantias processuais.
Tratava-se, no registro fascista das décadas de 1920 e 1930, de superar o modelo liberal adotado pelo Código Zanardelli e presente na Escola italiana do final do século XIX,7 fortemente influenciada pelas concepções liberais e que emprestava alguns de seus quadros à própria magistratura italiana. Sobretudo, cuidava-se de criar uma nova forma de enfrentar o dissenso político, que àquela altura já se materializava fortemente por intermédio de movimentos antifascistas liderados pelos comunistas italianos. Se num contexto liberal o dissenso é tolerado, a partir do que LACCHÈ (2015) denomina de “o paradoxo da liberdade” – a garantia e o reconhecimento de liberdades individuais e públicas que podem ser utilizadas contra o próprio Estado – no fascismo o dissenso é tratado como uma ameaça à unidade. Naturalmente, mesmo num regime liberal há zonas de tensão e diferentes níveis do princípio da legalidade, uma zona de exceção (os decretos de segurança pública, as leis de emergência, o estado de sítio, as prisões ilegais etc) que não é de todo descartada (LACCHÈ, 2015). Mas num Estado fascista a existência dessas zonas cinzentas de excepcionalidade tornam-se regra e método de governar.
O fascismo rejeita o pacifismo e concebe a vida como uma luta e um movimento de criação de condições físicas, morais e intelectuais que cada homem deve empreender para tornar-se digno de viver (MUSSOLINI, 2019). Tais aspectos convivem com a necessidade de disciplina e de autoridade e admitem a violência como instrumento legítimo. Contudo, para Mussolini a violência fascista devia ser “pensante, racional, cirúrgica” (in KONDER, 2009, p. 67), ou seja, de uma inicial violência fundada na “dialética dos punhos e dos revólveres”, uma violência instintiva e impulsiva, evolui-se, com o crescimento do fascismo e a necessidade de controle, à defesa de uma violência calculada (KONDER, 2009, p. 67).
A racionalização da violência encontrou na criação do Tribunal Especial para a Defesa do Estado uma sofisticada estratégia construída num contexto no qual as tensões oriundas do fascismo já se mostravam algo incontroláveis: em junho de 1924 o deputado socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado e assassinado, crime que Mussolini, em pronunciamento perante a Câmara dos Deputados, em janeiro de 1925, assumiu publicamente; em novembro de 1926, nada menos do que 124 deputados de oposição foram cassados (Gramsci entre eles); entre 1925 e 1926 foram aprovadas as leis ultrafascistas (leggi fascistissime), que, dentre outras medidas, impunham controles policiais sobre todos os órgãos coletivos (associações, institutos), obrigados a exibirem ao governo os seus estatutos, contratos sociais, regulamentos internos, listas de membros e administradores; cassavam os funcionários públicos que se recusassem a prestar juramento de fidelidade ao duce; estabeleciam a irresponsabilidade do chefe do governo perante o parlamento; outorgavam ao poder executivo o poder de editar decretos sem a necessidade do legislativo; proibiam as greves e estabeleciam o monopólio dos sindicatos fascistas para a negociação de acordos coletivos; ordenavam a dissolução de todos os partidos, associações e organizações que praticassem ações contra o regime, mantendo apenas o Partido Nacional Fascista; instituíam a sanção de pena de morte para situações de ataques dirigidos ao Rei e ao Primeiro-Ministro, criminalizando também a instigação do ataque através da imprensa e a divulgação de "boatos ou notícias falsas, exageradas ou tendenciosas sobre as condições internas do Estado".
Mas foram os atentados praticados contra Mussolini entre os anos de 1925 e 1926, todos fracassados, que serviram como o verdadeiro estopim da criação do Tribunal Especial, através da Lei 2.008/1926, que também reintroduziu a pena de morte no ordenamento jurídico italiano para diversos crimes políticos. O Tribunal Especial foi inicialmente composto por militares do Exército e por membros das milícias voluntárias para a segurança nacional e devia aplicar as regras de procedimento criminal das forças armadas em tempo de guerra (procedimento ad modum belli), não sendo seus julgamentos passíveis de recursos (LACCHÈ, 2015). Através de um decreto de 1926 foram impostas severas restrições ao contraditório e à ampla defesa perante o Tribunal Especial, como por exemplo a possibilidade de o juiz presidente excluir a atuação de advogados civis e de negar o acesso a documentos na fase preliminar. Além disso, o Presidente do Tribunal dispunha de amplos poderes instrutórios (LACCHÈ, 2015), numa clara reprodução do modelo inquisitório de processo autoritário no qual o juiz ocupa a centralidade e se sobrepõe aos direitos do acusado. Ou seja, com a criação do Tribunal Especial o regime fascista deixava claro que não era suficiente reformar as leis penais, endurecendo-as, era necessário também reformular o Judiciário italiano e contar com o poder simbólico das togas sobre a opinião pública.8
Em seu período de existência (1926 a 1943) o Tribunal Especial proferiu nove sentenças de pena de morte em tempo de paz, sendo que dos cerca de 5.600 réus processados, por volta de 4.600 foram condenados à prisão, em média de cinco anos (LACCHÈ, 2015). Tais números mostram bem a “eficiência” do Tribunal Especial para a Defesa do Estado e devem ser somados, na arquitetura de repressão do fascismo, à atuação da polícia italiana, que impôs a mais de 12 mil pessoas a medida de confinamento (confino di polizia), e a mais de 160 mil pessoas a medida de vigilância especial (sorveglianza speciale), a partir de juízos de periculosidade e ideológicos (LACCHÈ, 2015).
A partir de 1931, Mussolini passa a presidir o Tribunal Especial e a indicar diretamente os seus integrantes, o que, conjugado com medidas disciplinares e promoções de juízes, estabeleceu as condições reais para a existência de um forte controle do Tribunal Especial pelo regime.9 O Estado forte absorvia e minava o poder das togas.
2. O Estado Forte Brasileiro
Da mesma forma que se verificava na Itália, a política brasileira fervilhava na década de 1930, impactada, dentre outros fatores, pela crise econômica de 1929, que gerou desemprego no campo e na cidade e a falência dos produtores brasileiros de café (RIBEIRO, 1985).
A Revolução de 1930,10 que tem Vargas como um de seus protagonistas, foi um movimento apoiado pela ala direitista do tenentismo e que atendia aos interesses do senhorio agrário e do patronato urbano, instituindo um capitalismo de Estado nacionalista e paternalista (RIBEIRO, 1985), não obstante os significativos avanços promovidos no campo dos direitos sociais.
No mosaico político de então, o integralismo destacava-se, tendo à frente o intelectual Plínio Salgado, que às vésperas da Revolução de 1930 viaja para a Europa e volta encantado pelo fascismo italiano. Nesse mesmo ano surgem os primeiros grupos fascistas no Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais e São Paulo. Em Belo Horizonte, o integralismo promove, em 1931, a primeira marcha integralista e no Rio de Janeiro foi lançada a revista fascista Hierarquia, que publica artigos de Plínio Salgado e San Thiago Dantas, dentre outros.11
Em 1932, Plínio Salgado, Miguel Reale, Gustavo Capanema e Antônio de Toledo Piza lançam o Manifesto Integralista e criam a Ação Integralista Brasileira, embalada pela legenda “Deus, Pátria e Família”. O movimento conta com o apoio do fascismo europeu e recebe a adesão das classes médias, do clero e da oficialidade das forças armadas (RIBEIRO, 1985). Dois anos depois de sua fundação, em 1934, a Ação Integralista Brasileira se expande de forma impressionante através de mais de mil núcleos com milhares de camisas-verdes espalhados por todo o País (estima-se que eram mais de quatrocentos mil em 1935). Além das marchas, a Ação Integralista Brasileira realizava pesquisas, ministrava cursos e publicava centenas de panfletos e dezenas de livros (RIBEIRO, 1985), inclusive as obras de Alfredo Rocco (ALBUQUERQUE, 1986, p. 580). O integralismo rompe com Vargas em 1938,12 momento a partir do qual passa a ser uma ameaça ao Estado Novo.
No ano anterior (1937), sob o pretexto da violência verbal da campanha eleitoral, das ameaças do comunismo e da perigosa expansão do integralismo, Vargas compele o Congresso a decretar o estado de guerra de modo a legalizar formalmente o golpe dado contra o seu próprio governo (autogolpe), evitando a realização de eleições. Nesse momento ganha importância o papel de Francisco Campos, fascista declarado, Ministro da Educação e da Saúde entre os anos de 1931 e 1932 e Ministro da Justiça de Vargas entre 1937 e 1942, jurista que, ao lado de Azevedo Amaral e Lourival Fontes, comporia o corpo ideológico do Estado Novo, de que participavam também nomes de peso como Pontes de Miranda, Oliveira Vianna, Macedo Soares e Temístocles Cavalcanti.
Campos redige a Constituição de 1937, copiada da Polônia (e por isso apelidada de “A Polaca”), um texto que contém claros elementos autoritários por conferir proeminência ao Poder Executivo,14 dando-lhe o poder de dissolver o parlamento13 e de legislar através de decretos-lei. Ao Judiciário é vedado “conhecer de questão exclusivamente política” (art. 94) e a própria análise de constitucionalidade das leis pelo Supremo Tribunal Federal16 passa a admitir o controle do Parlamento, por provocação do Presidente da República,14 e também o veto do Executivo, através da edição de Decretos-lei.18 Contudo, a Constituição de 1937 nunca entra em vigor e Getúlio governa por sete anos em estado de emergência, o que lhe confere totais poderes e exclui a possibilidade de controle judicial de seus atos (RIBEIRO, 1985). Com o Estado Novo os partidos políticos são extintos e também o sufrágio popular.
O ano de 1933 marca o momento a partir do qual a ideologia do Estado Novo começa a surgir em textos de Azevedo Amaral, Getúlio Vargas e Francisco Campos. Em O Estado Nacional, coletânea de discursos, entrevistas e conferências proferidas por Campos entre os anos de 1935 e 1939, publicados pelo Senado Federal, tem-se o desenvolvimento da fundamentação doutrinária e filosófica do Estado Novo.
Em entrevista concedida à imprensa em novembro de 1937, publicada sob o título “Diretrizes do Estado Nacional”, Francisco Campos apresenta a figura de Getúlio Vargas como o fundador do novo Estado e guia da nacionalidade, o centro de convergência e o intérprete das aspirações cívicas, sob cujos ombros recaia a responsabilidade da tomada da decisão excepcional de instituição do Estado Novo, dadas pelas exigências do momento histórico e pelos reclamos do interesse coletivo (CAMPOS, 2001a).
Embora os primeiros anos da Revolução de 1930 tivessem operado relevantes feitos de proteção aos direitos dos trabalhadores, na visão de Campos o seu ímpeto acabou sendo canalizado pela política e pela reconstitucionalização promovida em 1934. Em sua concepção, a Constituição de 1934 teria criado “um formidável aparelhamento votado à abulia e à inação pelo próprio mecanismo de seu funcionamento, em que a iniciativa de uma peça encontrava
resistência de outra, cujo destino era, precisamente, retardar, amortecer ou deter-lhe o movimento” (CAMPOS, 2001a, p. 46), uma crítica clara ao princípio da separação de poderes, que enfraqueceria o Estado. Já na Carta de 37 haveria unidade, “vários poderes em um só poder” (CAMPOS, 2001a, p. 69).
Nesse cenário, os partidos políticos, privados de conteúdos programáticos, tornaram-se simples massas de manobra, de manipulação eleitoral e de “falsificação das decisões populares, ou em simples cobertura para ação pessoal de chefes locais”, instrumentos de uma guerra civil organizada e codificada (CAMPOS, 2001a, pp. 42-43). A democracia de partidos degenerava em divisão do País e em violência e a política partidária cumpria o papel de prometer o paraíso econômico aos eleitores, a plenitude gratuita dos bens, num processo de apropriação demagógica da economia pela política (CAMPOS, 2001a, p. 44).
No Estado Novo há um claro apequenamento do Parlamento, que havia sido fortalecido pela Constituição de 1934. Os vícios do poder legislativo consistiriam em sua incapacidade para legislar e no seu profundo alheamento aos interesses nacionais. Tomado por interesses privados de pessoas e grupos que se sobrepunham aos interesses da nação, o Parlamento seria o lugar dos privilégios e das vantagens de seus integrantes, o que se materializava inclusive pela manipulação do orçamento nacional, voltado à concessão de favores clientelistas (CAMPOS, 2001a). A incapacidade de legislar e de ligar-se aos interesses nacionais era aprofundada pela expressa vedação de delegação legislativa ao Executivo, contida na Carta de 1934. Para Campos, a atividade legislativa revestia-se de natureza eminentemente técnica, e não mais política, a exigir uma capacidade técnica que o Parlamento não possuía:
Um corpo numeroso, constituído de várias tendências, de grupos e até de matizes individuais não reúne, evidentemente, os requisitos próprios de uma obra legislativa homogênea e consistente. E é o que se observa nos mais importantes documentos legislativos, bastando citar, como exemplo expressivo, a própria Constituição de 34, trabalhada, de modo aparente e manifesto, por várias e opostas correntes, que quebraram, assim, o principal caráter de uma lei desse vulto – a sua unidade ideológica e técnica.
Daí o movimento geral em todo o mundo para retirar do Parlamento a iniciativa da legislação e estender cada vez mais o campo da delegação de poderes (...) (CAMPOS, 2001a, p. 55).
Há em Francisco Campos uma dura crítica à democracia liberal, da mesma forma que se vê no fascismo italiano. Em sua concepção elitista, os eleitores não teriam qualquer preocupação com a coisa pública e seriam alienados relativamente às questões de governo, cada vez mais técnicas. Os eleitores seriam massas despreparadas sequer à compreensão dos problemas mais simples e tal quadro justificaria restrições ao sufrágio universal, visto como um mito15 pelos ideólogos do Estado Novo, além do fortalecimento do poder do Estado (CAMPOS, 2001a). Há, então, uma clara rejeição à soberania popular, substituída pela soberania do Estado, e o problema constitucional do Século XX consistiria não mais em obstar o poder (conceito negativo de democracia), mas sim em criar-lhe novos encargos, e aos indivíduos novos direitos. E para que os homens tenham os seus direitos assegurados é necessário que o Estado exerça de modo efetivo o controle sobre todas as dimensões sociais (economia, política, educação etc), ou seja, é imperioso que se tenha um Estado forte (CAMPOS, 2001a).
Outra semelhança com o fascismo italiano e com o pensamento de Alfredo Rocco aparece na crítica que Francisco Campos faz ao liberalismo e ao marxismo, diretamente ligadas à construção do conceito campiano de Estado.
O liberalismo seria organizado aos moldes de um feudalismo econômico e político fundado na liberdade do individualismo e da livre concorrência (liberdade para os fortes, liberdade dos gangsters) em que a coletividade é colocada em situação de anonimato:
No Estado liberal, o econômico governa a Nação atrás dos bastidores, isto é, sem responsabilidade, porque o seu poder não tinha expressão legal, e por intermédio exatamente dos interesses mais suspeitos, porque de ordem exclusivamente financeira.
Na organização corporativa,16 o poder econômico tem expressão legal: não precisa negociar e corromper, insinuar-se nos interstícios ou usar de meios oblíquos e clandestinos. Tendo o poder, tem a responsabilidade, e o seu poder e a sua responsabilidade encontram limite e sanção no Estado independente, autoritário e justo (CAMPOS, 2001a, p. 66).
Campos sustenta que o liberalismo político e econômico conduziria ao comunismo, fundado “na generalização à vida econômica dos princípios, das técnicas e dos processos do liberalismo político” (CAMPOS, 2001a, p. 63). Contudo, suprimidas as condições criadas pelo liberalismo à implantação do comunismo, o marxismo teria perdido a sua atualidade, tornando-se uma teoria caduca no século XX (CAMPOS, 2001a).
O Estado Nacional nascido do autogolpe de Getúlio teria instituído um clima de ordem, nas ruas e no próprio Estado, passando a ser “um sistema animado de um espírito e de uma vontade, unificado em torno de uma pessoa”. (CAMPOS, 2001d, p. 191). Vargas reuniria em si, em comunhão de espírito com o povo, a autoridade que decide, o centro de vontade e de responsabilidade, o mandato da confiança pública que encarna o Estado. O Estado Novo é popular, autoritário17 e unificado sob uma consciência nacional, ordem e disciplina (CAMPOS, 2001d, p. 192-195), um produto das massas.18
3. O Tribunal de Segurança Nacional (1936-1945)
O ano de 1935 foi particularmente relevante para o novo cenário que já se desenhava nos primeiros anos após a Revolução de 1930.
Em 35 Prestes lança um manifesto contra Getúlio acusando-o de implantar uma ditadura fascista no Brasil e o governo fecha a Aliança Nacional Libertadora, liderada por Prestes e Miguel Costa, que defendiam o cancelamento da dívida externa, a nacionalização das empresas estrangeiras, a garantia das liberdades individuais e a reforma agrária (RIBEIRO, 1985).
Jogados à ilegalidade, os aliancistas, liderados pelos comunistas, iniciam um movimento revolucionário (a Intentona), entre 23 e 27 de novembro de 1935, que acaba sendo batido pelo governo. A Intentona, embora vencida, fortalece a ala mais reacionária do governo Vargas e dela resulta, como reação do governo, a criação do Tribunal de Segurança Nacional (1936), cuja missão inicial foi julgar os responsáveis pela revolta comunista liderada por Prestes. Também em 1935 são instituídos o Estado de Guerra e a pena de morte, estimando-se a existência de dezessete mil presos políticos no Brasil (RIBEIRO, 1985).
A polícia política, o integralismo e governo, tendo em mãos a Lei de Segurança Nacional (1935),19 implantam uma situação de terror no País, com fogueiras de livros em locais públicos, centenas de prisões, torturas, afastamento e prisão de professores, perseguição de educadores (Anísio Teixeira é um deles) e de escritores (por exemplo, Graciliano Ramos), com a chancela do Tribunal de Segurança Nacional (RIBEIRO, 1985).20
O Poder Judiciário mereceu especial atenção do varguismo, uma instituição vista como o locus das idiossincrasias, das formalidades e do conservadorismo, avessa aos processos de mudança e transformação, uma barreira obstrutiva dos desígnios econômicos, políticos e sociais do governo (CAMPOS, 2001a). A ideologia conservadora teria encontrado no Poder Judiciário “o instrumento destinado a moderar ou inibir os ímpetos democráticos da nação” (CAMPOS, 2001b, p. 103) e a partir de tal crítica nem mesmo o controle de constitucionalidade das leis, de natureza política, era considerado essencial ou papel típico do Supremo Tribunal Federal.21
A criação do Tribunal de Segurança Nacional22 respondeu à necessidade de moldar o Judiciário à nova ideologia, de estabilizar o novo regime e de eliminar o dissenso político, colocando em prática a ideia de que “a justiça é o Estado, o Estado é a Justiça” (CAMPOS, 2001c, p. 166). Havia uma certa desconfiança de que a justiça comum não puniria de forma rigorosa e rápida os revoltosos de 35, dado o seu perfil liberal e oligárquico, sendo o papel de eliminação do dissenso exercido pelo Tribunal de Segurança Nacional em duas fases distintas: a primeira, em que referido Tribunal atuou como órgão de primeira instância da justiça militar, com recursos, sem efeito suspensivo, ao Supremo Tribunal Militar; a segunda, como tribunal político do Estado Novo, um ramo especializado da justiça (ao lado da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho).
Em sua primeira fase o Tribunal dedicou-se ao julgamento dos revoltosos da Intentona Comunista, sobretudo de Prestes e de alguns dos “cabeças” do movimento. O primeiro processo foi julgado em 7 de maio de 1937, em sessão secreta,23 do que resultou a aplicação de pesadas sanções, sobretudo a Prestes, que foi condenado a pena de reclusão de dezesseis anos e oito meses.24 Cinco dias depois, em 12 de maio de 1937, foi realizado o julgamento de cinco congressistas, dentre eles João Mangabeira, dos quais apenas dois foram absolvidos.29 O segundo lote de “cabeças” da intentona foi julgado em 28 de julho de 1937 e já em novembro do mesmo ano, ou seja, apenas seis meses depois de sua primeira sessão, todos os implicados na Intentona Comunista já haviam sido julgados (CAMPOS, 1982).
Tratando-se de um tribunal sediado no distrito federal, os acusados tinham o ônus de se deslocarem à sua sede, em prejuízo ao direito de defesa, que devia ser exercido em apenas três dias25 e se limitava à possibilidade de indicação de no máximo cinco testemunhas de defesa (posteriormente esse número seria reduzido a duas). Além disso, os julgamentos eram realizados a partir da livre e íntima convicção dos juízes, um modelo inquisitorial em que as decisões não precisavam estar fundamentadas nas provas dos autos. Justamente por isso algumas condenações foram revistas ou anuladas pelo Supremo Tribunal Militar (CAMPOS, 1982).
A segunda fase do TSN foi marcada por uma mudança em seu design legal.26 Se antes se tratava de um órgão de primeira instância da justiça militar, com recurso ao Supremo Tribunal Militar, na segunda fase o TSN passa a ser um ramo especializado da justiça desvinculado da justiça militar, com julgamentos monocráticos de que caberiam recurso não suspensivos ao pleno do mesmo tribunal, composto por cinco juízes.27 Tal mudança foi fundamental e garantiu maior agilidade e eficiência ao papel repressivo do TSN, cujas sentenças deixavam de ser objeto de reavaliação por uma instância superior (o Supremo Tribunal Militar, como visto), o que acarretou a diminuição do abrandamento das penas e das absolvições (CAMPOS, 1982).
Nessa segunda fase, iniciada já sob o Estado Novo, a repressão judicial foi dirigida aos integralistas, que apoiaram e participaram do putsch de maio de 38 contra Vargas:
a repressão policial foi implacável e perto de 1.500 pessoas foram detidas, entre integralistas, simpatizantes e adversários de Vargas. O governo legislou imediatamente, expedindo, em 16/5/38, o Decreto-lei n. 428, que transformava os julgamentos do TSN em uma verdadeira blitz. Os prazos foram incrivelmente reduzidos, assim como o número de testemunhas foi limitado a duas para cada réu e, se houvesse mais de cinco réus, o número máximo delas não poderia exceder a três. A inquirição de cada testemunha não poderia ultrapassar cinco minutos, após o que a promotoria falava durante quinze minutos, seguindo-se a defesa por igual período de tempo. Se houvesse mais de um advogado, um seria escolhido para falar por todos e, trinta minutos após ter falado a defesa, a sentença era proferida (CAMPOS, 1982, p. 89).
O claro objetivo da mudança no procedimento legal, ou seja, a criação de um rito sumariíssimo de apenas cinco dias de duração, foi o de instilar o medo e implantar o terror entre os dissidentes políticos, o que de fato ocorreu e acabou sendo reforçado pela instituição da pena de morte por fuzilamento (Decreto-lei n. 431, de 18 de maio de 1938):27
O Tribunal que havia sido criado para condenar os comunistas e tivera depois sua ação estendida aos integralistas condenara vários adversários do governo sem coloração política, se envolvera com as ‘tricas e futricas’ das perseguições provincianas, estava, em fins de 38, ameaçado de ficar sem réus. É que diminuíra o número de presos, pois ninguém mais ousava investir contra o regime, temendo as pesadas consequências. Ele havia desempenhado o seu papel: desestimular a ação política, inibir manifestações. Amordaçar pelo medo (CAMPOS, 1982, p. 114).28
O TSN foi um tribunal de exceção dotado de amplos poderes, um tribunal ad hoc criado após a revolta vermelha de 1935. Ao longo de seus pouco mais de onze anos e oito meses de existência, julgou 6.998 processos envolvendo mais de 10.000 pessoas, das quais 4.099 foram condenadas a penas que variavam de multa (nos crimes contra a economia popular) até sessenta anos de reclusão (CAMPOS, 1982, p. 123). Enfim, uma verdadeira máquina de guerra posta ao serviço do fascismo “à brasileira” e à “defesa do Estado”.
Conclusão
Um ditado irônico do medievo dizia que quem tiver um juiz por acusador precisa de Deus como defensor; mas, às vezes, isso não é suficiente.
Os Tribunais do fascismo italiano e do estadonovismo brasileiro atuaram no sentido de racionalizar e graduar a repressão contra o dissenso, sob as sombras de uma legalidade autoritária que dava curso à racionalização do ódio à dissidência, abalando as estruturas do Estado de Direito. Intervenções, portanto, claramente políticas em que tais cortes se enxergavam enquanto dispositivos essenciais dos regimes autoritários, as antessalas da eliminação do dissenso político.
A manipulação de tais cortes pelos regimes autoritários aqui analisados buscavam afastar as incertezas naturais a qualquer julgamento, incertezas, ao menos em tese, decorrentes da dialética processual e do contraditório como elementos estruturais do processo. O modelo que se buscava superar era o do liberalismo processual e seus procedimentos de garantia fundados na idiossincrasia de um Poder que não contava com o apoio das massas.
Os julgamentos cumpriam apenas papéis simbólicos que comunicavam ao povo sinais de autoridade e de unidade, espetáculos intimidatórios e exemplares que, nos casos de maior repercussão (os julgamentos de Terracini e Gramsci, por exemplo), buscavam legitimar a violência. Os Estados fortes italiano e brasileiro tinham no nacionalismo e na unidade dois pilares fundamentais que não poderiam ser abalados por um Judiciário não completamente comprometido com os objetivos do fascismo e do estadonovismo, daí o controle quase absoluto exercido sobre juízes e tribunais.
Como pano de fundo teórico dos novos papéis judiciais tem-se a concepção de um Estado forte baseado na ordem e na unidade e que nega a soberania popular, a criar um tipo de unidade anônima, embora se sirva das massas como plataforma de legitimação do poder que exerce. Naturalmente, o Estado forte despreza a separação dos poderes e a democracia liberal, vistas como mitos que apenas enfraquecem a ordem estatal. Além disso, o Estado forte, tanto no Brasil quanto na Itália, gravitava em torno de uma personalidade carismática que produzia em si um tipo de simbiose ou unidade espiritual entre o Estado e a sociedade.
O principal objetivo do presente trabalho foi, no marco de perspectivas críticas sobre a teoria do estado e a problemática relação entre direito e política, o de produzir aproximações entre as concepções políticas do Poder Judiciário no fascismo italiano e no estadonovismo brasileiro. As distinções resultam dos próprios contextos históricos em que floresceram tais experiências e do humor das massas operadas por Mussolini e Vargas, não se podendo falar em identidade entre os fenômenos. Já as aproximações, mais numerosas, residem nas ameaças comuns que assombravam Mussolini e Vargas, advindas de significativas parcelas da população, além da coincidência de instrumentos legais criados para a “defesa do Estado” (leis de exceção, codificações draconianas e Tribunais submissos e autoritários), manejados, tanto lá como aqui, contra a “ameaça comunista” e em derrogação das garantias individuais de matriz liberal.
Olhar para o passado e resgatar as concepções teóricas sobre o Estado ancoradas nas décadas de 1930 e 1940 permitem refletir sobre os contraditórios papéis historicamente desempenhados pelo Poder Judiciário: nas cartas constitucionais forjadas a partir do século XVIII, os Tribunais aparecem como ferramentas contramajoritárias de garantia dos direitos fundamentais e da liberdade, um papel de suma importância; já nas experiências fascistas, figuram como aparatos de guerra e de intolerância ao dissenso, como dispositivos que minam a democracia. Tal contradição está encravada no momento presente, em que a judicialização da política, o ativismo judicial e a utilização do sistema de justiça como estratégia de eliminação da oposição e de criminalização da política operam para desestabilizar a democracia em várias partes do mundo, sobretudo na América Latina. Ou seja, tal como verificado nas experiências do Tribunal Especial para a Defesa do Estado (Itália) e do Tribunal de Segurança Nacional (Brasil), a produção de resultados políticos predeterminados é ainda uma nota persistente do Judiciário contemporâneo, o que nos faz pensar sobre as relações entre direito e política e sobre o papel do sistema de justiça como antiga e ainda eficiente máquina de guerra voltada à eliminação do dissenso político e da democracia.
Notas e Referências
1 A teoria crítica é historicamente situada e rejeita tipologias ideais fundadas em conceitos universais abstratos.
2 Geovanni Gentile foi professor de história da filosofia em Palermo (1906 a 1914) e em Pisa (1914 a 1917), um dos mais importantes intelectuais de sustentação do fascismo italiano. Foi também Ministro da Instrução Pública de Mussolini entre 1922 e 1925 e responsável por importante reforma do ensino na Itália, além de membro do Grande Conselho Fascista.
3“(...) for fascism, the life of society overlaps the exsitence of individuals and projects itself into the succeeding generations through centuries and millennia. Individuals come into being, grow, and die, followed by others, unceasingly; social unity remains always identical to itself. (...) For fascism society is the end, individuals the means, and its whole life consists in using individuals as instruments for its social ends”.
4 “os estados que não são governados por alguém são perturbados por dissensões e têm grandes dificuldades. Pelo contrário, os estados que são governados por um rei gozam de paz, prosperam na justiça e se alegram com a riqueza. O governo de multidões não pode ser sancionado, pois onde governa a multidão oprime-se os ricos como faria um tirano” (ROCCO, 2019, p. 63 – tradução livre). “the states wich are not ruled by one are troubled by dissensions, and toil unceasingly. On the contrary the states wich are ruled over by one king enjoy peace, thrive in justice and are gladdened by affluence. The rule of multitudes can not be sanctioned, for where the crowd rules it oppresses the rich as would a tyrant”.
5 O resgate do pensamento de Maquiavel mostra-se relevante uma vez que Rocco aponta uma relação de filiação entre o fascismo e Maquiavel (2019), o que demonstra uma leitura bastante distorcida do autor florentino.
6 Nos EUA dá-se algo diverso já no início do Século XIX, em razão do judicial review of legislation que já começa a surgir nas decisões da Suprema Corte. Na história norte-americana, o caso Marbury v. Madson (1803) é a primeira afirmação do judicial review da Suprema Corte. Neste precedente foi fixada a interpretação de que a legislação ordinária se encontra subordinada à Constituição.
7 À Escola Italiana, liderada por Carrara, viria opor-se, no início do século XX, a Escola Positivista capitaneada por Lombroso, Ferri e Garofolo.
8 “Na sua exposição de motivos à Câmara dos Deputados, o Ministro da Justiça Alfredo Rocco observou que a legislação sozinha era inadequada para prevenir os crimes e para satisfazer a opinião pública ‘com uma razoável e severa punição dos crimes cometidos” (LACCHÈ, 2015, p. 21 – tradução livre).
9 “Purgações, disciplina, forte hierarquização e avanços profissionais cuidadosamente sopesados pavimentaram o caminho da fascistização do judiciário, especialmente após Alfredo Rocco ter se tornado Ministro da Justiça” (LACCHÈ, 2015, p. 25 – tradução livre). Rocco, em 19 de junho de 1925, falando à Câmara dos Deputados, defende a necessidade de neutralidade política da magistratura, ou seja, que juízes e tribunais não façam política fascista ou antifascista. Quatro anos depois, em 1929, Rocco afirmava a sua satisfação com a penetração do “espírito do fascismo” na magistratura italiana, “mais rapidamente do que em qualquer outra categoria de funcionários e profissionais (in MENICONI, 2015).
10 A Revolução de 1930 foi o movimento armado liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que culminou com um golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes, candidato governista que bateu Getúlio Vargas. A Revolução de 1930 marcou o fim da República Velha e desde o seu início, com a instalação de um governo provisório (1930-1934), sucedido pelo governo constitucional (1934-1937), Vargas já exercia o protagonismo.
11 Para além da ideologia integralista, entre as décadas de 1920 e 1940 o Brasil mergulhou fundo na difusão da “ciência” eugênica: em janeiro de 1918 o médico Renato Kehl cria a Sociedade Eugênica de São Paulo; em 1922, é criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, no Rio de Janeiro, que tinha por objetivo modernizar o atendimento aos doentes mentais; em 1929 ocorre, também no Rio de Janeiro, o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia e no mesmo ano o médico Renato Kehl inicia a publicação do jornal “Boletim de Eugenía”, de tiragem mensal; em 1931 cria-se a Comissão Central Brasileira de Eugenia, presidida por Renato Kehl. Tais movimentos iriam refletir na Constituição de 1934 e na legislação do Estado Novo sobre imigração (Decreto-lei 3.175/41), que estabeleceu sistema de cotas de imigração para imigrantes japoneses.
12 O Levante Integralista ou Intentona Integralista foi executado pela Ação Integralista Brasileira (AIB) contra o Estado Novo. Ocorreu no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1938 e buscava depor Getúlio Vargas, que através do Decreto-lei nº 37/37 extinguiu as agremiações políticas brasileiras.
13“Art. 73. O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional e superintende a administração do país”.
14 “Art. 167 - Cessados os motivos que determinaram a declaração do estado de emergência ou do estado de guerra, comunicará o Presidente da República à Câmara dos Deputados as medidas tomadas durante o período de vigência de um ou de outro. Parágrafo único - A Câmara dos Deputados, se não aprovar as medidas, promoverá a responsabilidade do Presidente da República, ficando a este salvo o direito de apelar da deliberação da Câmara para o pronunciamento do País, mediante a dissolução da mesma e a realização de novas eleições”.
15 O Supremo Tribunal Federal foi alvo de várias ingerências durante a Era Vargas: seis ministros (Godofredo Cunha, Edmundo Muniz Barreto, Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, Pedro Afonso Mibielli, Pedro dos Santos e Geminiano Franca) foram aposentados compulsoriamente; os vencimentos dos ministros da corte foram diminuídos; sua composição foi reduzida; a idade de aposentadoria compulsória baixou de 75 a 68 anos, acarretando a aposentadoria imediata de Hermenegildo de Barros, Edmundo Lins e Ataulfo de Paiva (ROSENFIELD, 2020). A irresignação de Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque encontra-se registrada no livro “Culpa e Castigo de um Magistrado”, publicado originalmente em 1931.
16 “Art. 96, parágrafo único: “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”.
17 Como se deu relativamente ao julgamento do STF no Mandado de Segurança n. 623, em que foi declarada a inconstitucionalidade da incidência de imposto de renda sobre os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais. O Decreto-lei n. 1.564, de 5 de setembro de 1939, confirmou a validade dos “textos de lei, decretados pela União, que sujeitaram ao imposto de renda os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais” e tornou sem efeito “as decisões do Supremo Tribunal Federal e de quaisquer outros tribunais e juízes que tenham declarado a inconstitucionalidade desses mesmos textos” .
18 “O sufrágio universal mostra-se (...) um meio impróprio à aferição e à crítica das decisões políticas. Estas passam-se em regiões remotas ou inacessíveis à competência ordinária do corpo eleitoral. O problema atual não é, pois, o de estender o sufrágio (...). Trata-se, ao contrário, de organizar o sufrágio, reduzindo-o à sua competência própria, que é a de pronunciar-se apenas sobre o menor número de questões, e particularmente apenas sobre as questões mais gerais e mais simples” (CAMPOS, 2001, p. 60).
19 Campos defende um regime corporativo que alçaria o Estado à condição de justo árbitro dos interesses da coletividade, em substituição ao arbítrio dos interesses de grupos constituídos sob o liberalismo (CAMPOS, 2001).
20 “Sendo autoritário, por definição e por conteúdo, o Estado Novo não contraria, entretanto, a índole brasileira, porque associa à força o direito, à ordem a justiça, à autoridade a humanidade (...) com ele o Brasil sentiu pulsar, pela primeira vez, a vocação de sua unidade, tornando, assim, possível substituir, sem oposições nem violências, à política dos estados a política da Nação” (CAMPOS, 2001e, p. 199).
21 “À medida que cresce o número de indivíduos e se torna mais densa e compacta a coletividade humana, a autoridade tem de ser mais forte, mais vigilante e mais efetiva. Os estados autoritários não são criação arbitrária de um reduzido número de indivíduos: resultam, ao contrário, da própria presença das massas” (CAMPOS, 2001e, p. 200),
22 Além da Intentona Comunista, o trabalhismo oficial de Vargas não foi capaz de estancar as insatisfações dos setores proletários da população brasileira nem tampouco as greves que já espocavam em 1934, fatores que também concorreram à aprovação da Lei de Segurança Nacional (ALBUQUERQUE, 1986). O governo Vargas contou com variados instrumentos para combater o dissenso: o estado de sítio equiparado ao estado de guerra (Emenda n. 1 à Constituição de 1934); a Lei de Segurança Nacional; o direito de cassar patentes de oficiais, da ativa e da reserva; o direito de demitir funcionários públicos sem processo; a possibilidade atingir até mesmo os empregados de empresas privadas (CAMPOS, 1982).
23 Em janeiro de 1936, o Ministro da Justiça Vicente Rao cria a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, que tinha o papel de investigar a participação, em atos ou crimes contra as instituições políticas e sociais, de funcionários civis da União ou do Distrito Federal, de militares, de diretores, empregados ou operários de empresas, institutos ou serviços mantidos ou subvencionados pela União ou pela municipalidade, de profissionais da marinha mercante nacional e de empregados de empresas particulares e professores de estabelecimentos particulares. A comissão podia afastar indivíduos de seus cargos, prendê-los e coibir propagandas consideradas subversivas, cabendo-lhe organizar um plano para uniformizar em todo o país as medidas de repressão ao comunismo. (Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete- tematico/comissao-nacional-de-repressao-ao-comunismo).
24 “Atribuir a um tribunal a faculdade de declarar o que é constitucional é, de modo indireto, atribuir-lhe o poder de formular, nos termos que parecerem mais convenientes ou adequados, a própria Constituição. (...) O controle judicial da constitucionalidade das leis é, sem dúvida nenhuma, um processo destinado a transferir do povo para o Poder Judiciário o controle do Governo (...)” (CAMPOS, 2001b, p. 103).
25 Pela Lei n. 244, de 12 de setembro de 1936, cujos arts. 3º e 5º previam a competência do Tribunal para o julgamento dos militares e de civis nos crimes contra a segurança externa da República (Leis ns. 38, de 4 de abril, e 136, de 14 de dezembro de 1935), nos crimes contra as instituições militares (Lei n. 38, de 4 de abril de 1935) e nos crimes conexos.
26 “Esse foi o sempre o procedimento do TSN durante a sua primeira fase: relatório, sessão secreta, sentença. Sem debates” (CAMPOS, 1982, p. 54).
27 Prestes seria posteriormente condenado a trinta anos de prisão, na segunda fase do TSN, pelo assassinato de Elza Fernandes, crime que sempre negou ter cometido.
28 A condenação de João Mangabeira seria posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal Militar.
29 Nos processos mais volumosos e com muitos réus e advogados, o prazo para defesa se reduzia a apenas algumas horas (CAMPOS, 1982, p. 49).
30 Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937.
31 No caso de sentenças absolutórias, o juiz era obrigado a remeter o processo ao pleno para reavaliação (recurso
ex officio).
31 “Art. 2º Caberá pena de morte nos seguintes crimes:
1)tentar submeter o território da Nação, ou parte dele, à soberania de Estado estrangeiro;
2)atentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito à sua soberania;
3) tentar por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lo se torne necessário proceder a operações de guerra;
4) tentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição;
5)tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social;
6)insurreição armada contra os poderes do Estado, assim considerada ainda que as armas se encontrem em depósito;
7)praticar atos destinados a provocar a guerra civil, si esta sobrevem em virtude deles;
8)praticar devastação, saque, incêndio, depredação ou quaisquer atos destinados a suscitar terror, com o fim de atentar contra a segurança do Estado e a estrutura das instituições;
9)atentar contra a vida, a incolumidade ou a liberdade do Presidente da República. (...)”.
32 Para não ser extinto, a competência do TSN foi ampliada ao julgamento dos crimes contra a economia popular, sabotagem e espionagem.
ALBUQUERQUE, Antônio Joaquim Pires de Carvalho e. Culpa e castigo de um magistrado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Pap. Cruzeiro, 1934.
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.
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