Caríssimos leitores e leitoras, a comunhão de vida interespécies pressupõe – por parte dos seres humanos – maior empatia capaz de, historicamente, transformar nossa sensibilidade moral para se obter uma ética do cuidado de profundidade oceânica. Essa passa a ser uma exigência valorativa de nosso tempo, cujo desafio nem sempre é aceito de modo . Nesse caso, pretende-se destacar a relevância dos seres não humanos como Sujeitos de Direitos fundamentais, pois veja-se que, é inadmissível que em pleno século XXI, diante da vasta tecnologia emergente, nossos irmãos por Natureza sejam torturados diuturnamente em prol de interesse exclusivo do capital[1].
Na pós-modernidade[2] vivenciada, considerado os importantes avanços constitucionais, com enfoque no artigo 225 da Constituição da República, nota-se que uma vez havendo a tutela tanto do Direito do Presente, como do Direito ao futuro do Meio Ambiente, cumpre efetivar-se a proteção aos seres que habitam a nossa “Casa Comum”[3], inclusive os seres não humanos.
No Brasil, desde o Governo Provisório de Vargas, existem medidas especiais de proteção aos animais, que vão desde a esfera cível, até a penal, que concedem ao Ministério Público e a associações interessadas na causa animal, a legitimidade de ir a juízo representar os Direitos dos Animais[4].
No artigo 1º, §3º, o Decreto de nº 24.645/34 dispõe o seguinte: ‘’os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das Sociedades de Protetora de Animais’’[5].
Essa categoria ‘’animal’’, presente no respectivo Decreto, aborda com clareza que estes são os irracionais, bípedes, quadrúpedes, selvagens e domésticos, em seu artigo 17, muito embora, atualmente, passa-se ao imaginário popular que os Animais dignos de proteção são meramente os cães e gatos, grande equívoco, todos os animais presentes no planeta são portadores de Direitos[6].
Questiona-se acerca da validade desse Decreto, mas note que o mesmo possuía força de Lei à época, sendo assim, o mesmo somente poderia ser revogado pelo então Presidente Fernando Collor de Mello, na ocorrência de outra Lei aprovada pelo Congresso Nacional, o que não houve. Nesses moldes, compreende Herman Benjamin que o Decreto nº 24.645/34 continua vigente e deve ser observado atentamente, orientando uma cultura biocêntrica fundamental[7].
A cultura biocêntrica[8], todavia, ainda não efetiva os seus preceitos. A dominância da postura antropocêntrica alargada exerce forte influencia no imaginário jurídico brasileiro. Ao contrário, a Natureza – e não apenas o Meio Ambiente – serve ao ser humano e seus interesses. Não existe essa tomada de consciência em larga escala sobre o lugar dos humanos na cadeia vital. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano já sinaliza outros modos e compreensão sobre esse estar-junto-com-o-Outro-no-Mundo: os Direitos da Natureza representam esse giro paradigmático acerca do entendimento sobre sujeitos de direito.
Pode-se indagar, também, se os efeitos dos Direitos da Natureza garantiriam maior proteção ao Direito dos Animais. Na verdade, nenhum desses direitos exclui a proteção aos Humanos. Não se trata de caminhar de um excesso para outro. Deve-se, sim, observar se a abrangência dessas prescrições juridicas é capaz de alterar nossa sensibilidade moral perante o viver da Natureza e dos Animais, ou seja, se é possível o ser humano enxergar um genuíno direito à existencia[9] para além dos limites antropocêntricos.
Os Direitos da Natureza, nessa linha de pensamento, causam maior flexibilidade para a aceitação de que a Natureza pode ser titular de direitos. No entanto, essa afirmação já não ocorreria aos animais, pois é improvável aceitar que os animais não humanos sejam iguais aos seres humanos, especialmente quanto às suas principais características biológicas como a nossa racionalidade. Essa cegueira originada pelo excesso de luzes não permite identificar a vida como critério a ser protegido, desde uma perspectiva microscópica até a macroscópica. A preservação da Dignitas Terrae implica, aos humanos, o dever de proteção dos seres em seus habitats, seus processos, funções, ciclos.
Na estruturação de uma teoria dos Direitos dos Animais, a ideia seria tutelar uma coletividade de seres não humanos, ou a individualidade – nos casos de maus tratos, por exemplo. Atualmente, verifica-se uma tutela pautada na Lei 9.605/98 que versa sobre os Crimes Ambientais, um avanço, entretanto por vezes não atende especificamente a tutela Animal, ou seja, a inovação seria formular uma substituição processual específica neste tema, pelo fiscal da Lei ou pelo próprio representante do Animal, mas condizente com os avanços do vivenciado Estado Socioambiental de Direito[10], consagrado em nossa Constituição, não obstante a sua aceitação implique na ausência de choques entre as expressões “social” e “ambiental”[11].
Sobre o reconhecimento dos Direitos dos Animais, estes são reconhecidos inclusive na esfera internacional por diversos documentos internacionais, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO[12], essa que prevê o Direito de os Animais viverem em um Ambiente biologicamente equilibrado (art. 1º), bem como o Direito ao Respeito pelos Animais (art. 2º), ideia essa de compreensão da significância que os mesmos possuem no mundo[13].
Ademais, constata-se que os Animais, sim, possuem Dignidade, pois vejamos que até mesmo a Declaração de Cambridge sobre Consciência[14] (2012) ressalta que’’ o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos [...] também possuem’’.
Nesse caso, percebe-se que o Código Civil Brasileiro encontra-se em defasagem absoluta acerca desta temática, pois os Animais não são, (e nunca foram!!) coisas, principalmente ao se considerar que países como a Áustria, Alemanha, Suíça, França e Portugal[15], já trazem no corpo de sua legislação civil a previsão da senciência animal (senciente, latim, sentiens, que sente) = capacidade de sentir dor e prazer. Por esse motivo, cita-se importante julgado do STJ:
Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso desenvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais. Essa característica dos animais mais desenvolvidos é a principal causa da crescente conscientização da humanidade contra a prática de atividades que possam ensejar maus tratos e crueldade contra tais seres. A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor. A rejeição a tais atos, aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem justificativa razoável. A consciência de que os animais devem ser protegidos e respeitados, em função de suas características naturais que os dotam de atributos muito semelhantes aos presentes na espécie humana, é completamente oposta à ideia defendida pelo recorrente, de que animais abandonados podem ser considerados coisas, motivo pelo qual, a administração pública poderia dar-lhes destinação que convier, nos termos do art. 1.263 do CPC. (STJ, 2ª Turma, REsp 1.115.916/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, julgado em 01/09/2009, publicado em 18/09/2009)
De forma inequívoca, pode-se afirmar que os seres não humanos são nossos irmãos pela nossa cumplicidade vital e recíproca sobrevivência. Todos têm assegurado o direito à existência. Cabe ao Constitucionalismo Pós-Guerra, especialmente ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, o desenvolvimento dessa sensibilidade humana quanto à proteção da cadeia vital na sua integridade ecológica.
[1] “Nesse mesmo contexto, uma rápida consulta à legislação, restringindo-se às disposições do Código Civil que tratam dos animais, demonstra que ali eles são considerados bens, coisas com valor econômico e por isso de interesse jurídico. De todo modo, partindo de uma hermenêutica salvadora, a doutrina animalista contorna as disposições antropocêntricas e milita pela inconstitucionalidade de todas as disposições legais contrárias à norma do art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal que em tese reconheceria aos animais a qualidade de sujeitos de direito não humanos”. HACHEM, Daniel Wunder; GUSSOLI, Felipe Klein. Animais são sujeitos de direito no ordenamento jurídico brasileiro? Revista Brasileira de Direito Animal – RBDA, Salvador, v. 13, n. 03, p. 152/153, Set-Dez, 2017. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/24381/15021. Acesso em: 18 de jul. 2018.
[2] “A pós modernidade é, por isso, como um movimento intelectual, a critica da modernidade, a consciência da necessidade de emergência de uma outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da historia e da quebra de grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que sejam capaz de ir além dos horizontes fixados pelos discursos da modernidade” BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade: reflexões frankfurtianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 146.
[3] “A autêntica epistemologia do cuidado da “Casa Comum”, morada de todos, implica, conforme destaca Francisco, uma correta compreensão do Homem no exercício de sua autonomia e dotado de talentos, bem como de limitações, que demandam uma persistente atitude habitual de reconhecimento acerca da complexidade desta rede de vida interespécies”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; ZAMBAM, Neuro José. A “Casa Comum”: por uma epistemologia do cuidado e da justiça para a América Latina. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, Belo Horizonte, v. 14, n. 29, p. 110/111, out. 2017. Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/999/615>. Acesso em: 08 Ago. 2018.
[4] DE ALMEIDA SILVA, Tagore Trajano. Capacidade de ser parte dos animais não-humanos: repensando os institutos da substituição e representação processual. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 4, n. 5, 2014. p. 07.
[5] BRASIL. Decreto Nº 24.645 de 10 de Julho de 1934. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24645-10-julho-1934-516837-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 09 ago. 2018.
[6] SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Capacidade de ser parte dos Animais Não-humanos: repensando os institutos da substituição e representação processual. Revista Brasileira de Direito Animal, 2009, p. 08.
[7] BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno jurídico. Escola Superior do Ministério Público, nº. 2, julho de 2001. p. 155.
[8] “[...] Es importante advertir que el biocentrismo no niega que las valoraciones parten del ser humano, sino que insiste en que hay una pluralidad de valores que incluye los valores intrínsecos. Otros aspectos se esta situación se discuten más adelante, pero aquí ya es necessário señalar que esta postura rompe con la pretensión de concebir la valoración económica como la más importante al lidiar con el ambiente, o que ésta refleja la esencia de los valores en todo lo que nos rodea. Por el contrario, el biocentrismo alerta que existen muchos otros valores de origen humano, tales como aquellos que son estéticos, religiosos, culturales, etc., les suma valores ecológicos (tales como la riqueza en especies endémicas que existe en un ecosistema), e incorpora los valores intrínsecos. Al reconocer que los seres vivos y su soporte ambiental tienen valores propios más allá de la posible utilidad para los seres humanos, la Naturaleza se vuelve sujeto. Las implicaciones de ese cambio son muy amplias, y van desde el reconocimiento de la Naturaleza como sujeto de derecho en los marcos legales, a la generación de nuevas obligaciones hacia ella (o por lo menos, nuevas fundamentaciones para los deberes con el entorno)”. GUDYNAS, Eduardo. La senda biocéntrica: valores intrínsecos, derechos de la naturaleza y justicia ecológica. Revista Tabula Rasa, n. 13, Bogotá, julio-diciembre, 2010, p. 50/51.
[9] “La liberación de la Naturaleza de esta condición de sujeto sin derechos o de simple objeto de propiedad, exigió y exige, entonces, un trabajo político que le reconozca como sujeto de derechos. Un esfuerzo que debe englobar a todos los seres vivos (y a la Tierra misma), independientemente de si tienen o no utilidad para los seres humanos. Este aspecto es fundamental si aceptamos que todos los seres vivos tienen el mismo valor ontológico, lo que no implica que todos sean idénticos. Dotarle de Derechos a la Naturaleza significa, entonces, alentar políticamente su paso de objeto a sujeto, como parte de un proceso centenario de ampliación de los sujetos del derecho, como recordaba ya en 1988 Jörg Leimbacher, jurista suizo. Lo central de los Derechos de la Naturaleza, de acuerdo al mismo Leimbacher, es rescatar el “derecho a la existencia” de los propios seres humanos (y por cierto de todos los seres vivos). Este es un punto medular de los Derechos de la Naturaleza, destacando una relación estructural y complementaria con los Derechos Humanos”. ACOSTA, Alberto. La Naturaleza con Derechos Una propuesta de cambio civilizatorio. 2011, p. 9. Disponível em: http://www.lai.at/attachments/article/89/Acosta-Naturaleza%20Derechos%202011.pdf. Acesso em 13 de set. de 2016.
[10] HABERLE, Peter. ‘’A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal’’. In: SARLET, INGO Wolfgang (Org). Dimensões da Dignidade: ensaios da Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 116.
[11] “Com efeito, nem sempre o exercício da função social ou o ‘uso racional’ da propriedade é melhor para o meio ambiente. Há situações em que ‘não usá-la’ pode melhor atender ao interesse ambiental”. ARAÚJO, Giselle Marques de. Função ambiental da propriedade: uma proposta conceitual. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, Belo Horizonte, v. 14, n. 28, p. 270, jun. 2017. Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/985/546>. Acesso em: 08 Ago. 2018.
[12] Destaca-se que o texto foi originalmente proclamado em 1978, sendo posteriormente, em 1989, revisado pela Liga Internacional dos Direitos dos Animais e tornado público na sua nova versão pelo Diretor-Geral a UNESCO em 1990. Disponível em: http://league-animal-rights.org/em-duda.html. Acesso em 06 ago. 2018.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista Brasileira de Direito Animal. 2007, p. 79
[14] Pode-se conferir o ora documento mencionado e sua veracidade em: <http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf>. Acesso em: 06. ago. 2018
[15] Áustria – 1988, Código Civil, os animais não são coisas (tiere sind keine sachen), (§285a ABGB); Alemanha – 1990, §90a no BGB alemão; Suíça – 2003, art. 641a do Código Civil suíço; França – 2015, Código Civil francês, art. 515-14: os animais são seres vivos dotados de sensibilidade (Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité.); Portugal – 2017, Código Civil português: os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza (art. 201º-B). Informações extraídas da importante palestra proferida pelo Prof. Dr. Vicente de Paula Ataíde Junior, na ABDConst 2018 – Curitiba/PR, a data de 01. Jun. 2018.
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