Na nossa Tradição Ocidental a vida não foi valorada pela vida mesma. Ocorrem-me três modos de valorar a vida: pelo seu reconhecimento e gozo; como uma função para alcançar um fim; como um sentido inventado.
Os gregos entendiam a vida como um evento dentre eventos do Universo. Tudo, vida inclusive, estaria determinadamente ordenado num Cosmo absoluto e eterno. Ou se sofria a condição de vida, ou se a gozava.
Os estoicos buscavam a imperturbabilidade, a extirpação de qualquer paixão, a aceitação resignada da condição do mundo e no mundo. Pregavam e praticavam uma ética da conformação ao estado de coisas vigente.
O gozo da vida epicurista afastava preocupações com a morte. Cultuava a ética da reflexão inteligente: posto que o mundo é coisa dada, desapaixonadamente vivam-se os seus prazeres. E mais não pode ser feito.
O viver, assim, parece, ao tempo do auge grego, conforme suas principais correntes filosóficas, resumia-se à abdicação dos ímpetos humanos, seja resignando-se, seja comedindo o usufruto do estar vivo.
O estoicismo é a matriz ideológica do cristianismo, daí, pois, está subjacente à nossa civilização. É verdade que os cristãos adicionaram um valor à vida, mas só o fizeram para pôr o viver a serviço de uma causa (teleologia).
A existência em si não é um valor para a cristandade. Mais do que viver resignadamente, o cristianismo pede um viver em sacrifício por uma causa futura e de outro mundo, alienando o tempo e o lugar da vida concreta.
Eis a causa: a humanidade teria um pecado de origem, sofrendo, em decorrência, condenação à ruína eterna. A divindade cristã veio à terra para o resgate dos humanos. A promessa de redenção pede uma ética.
O divino sacrificou-se pela humanidade; a humanidade, então, lhe é tributária de holocausto eterno. A dívida não seria exigível; em não a pagando, todavia, o humano padecerá em inacabável castigo. Não há livre arbítrio.
O discurso cristão de livre arbítrio é uma fraude: o poder de escolha entre pecar e não pecar está sob contínua chantagem. O vivente, seguidamente vigiado, pode optar, mas, se optar errado, está danado eternamente.
Essa cilada capturou a História por quase dois milênios. E ainda respinga efeitos: muita gente vive a vida como tarefa para viver noutro tempo e lugar. Esse modo de pensar nega a historicidade dos acontecimentos; aliena.
Só o marxismo pôs as coisas no lugar: a humanidade é produção da história dos humanos; a história dos humanos é produção da humanidade. Acontece que os marxistas fizeram do marxismo uma religião mundana.
Para o marxista ortodoxo a vida tem o sentido dado pelo modo de produção vigente. Sartre, marxista ressabiado, sabia que a vida não comporta sentido precedente. A existência precede e determina a essência.
Para Sartre, é certo, somos produto da História, contudo, concomitantemente, nós a produzimos. A História não nos consegue homogeneizar, cada indivíduo a marca com sua subjetividade, estabelecendo diferenças.
Para Camus, ademais de a vida não ter sentido, estar vivo é um acontecimento absurdo. Sartre e Camus eram existencialistas. O primeiro queria construir sentidos com engajamentos; o segundo não abraçava ideais.
Pergunto-me: o quanto do viver vem do animal (Darwin)? E o quanto é pautado pelo que não nos sabemos (inconsciente, Freud)? Seguramente, estamos um tanto entre o bestial contido e os conteúdos recalcados.
O animal absurdo, moralmente refreado, caçando sentido para a vida. Sem respostas: angústia. Perdido na História (Heidegger), que não leva a lugar algum. O humano pode ser maior do que a condição humana?
A humanidade como massa é enquadrada em sistemas: de produção, de crenças, de legalidade, de diversão, de disciplina, de consumo, de ensino. Itens de poder que se referenciam, legitimam, suportam mutuamente.
Sistemas produzem ideologias, oferecem modos de pensar. Modos sistemáticos de pensar fortalecem sistemas de dominação. A humanidade consome modos produzidos de viver como se vivesse o sentido de vida.
A humanidade disciplinada (Foucault) demanda explicações conclusivas para os acontecimentos, incluindo a vida. Alguns humanos pensam que a vida é um acontecimento à parte dos acontecimentos gerais. Enganam-se.
Byung-Chul Han ensina que muitos subjetivamos interesses dominantes, cobrando-nos de nós mesmos resultados. Gerenciamo-nos e exigimo-nos diuturnamente sucesso. Isso nos cansa e adoece.
Estoicos nos fizeram objetos passivos do Cosmo; cristãos nos fizeram objetos culpados da sua divindade; marxistas nos fizeram objetos dialéticos da História; psicanalistas nos advertem que não nos sabemos de todo.
Existencialistas indagam: agora que sabemos de tudo isso, o que faremos? Bem, somos um acontecimento como outro qualquer, mas adquirimos consciência. Humano é o que tem consciência das circunstâncias (Sartre).
Podemos fazer acontecer sobre os acontecimentos. Não obstante, há quem debite a vida em crendices; há quem a consuma em consumismos baratos, ainda que caros; há quem trabalhe para si, servindo um sistema.
Vidas entre igrejas, shoppings, excesso de trabalho. Advém o gozo das redes sociais: demanda por curtidas, rancores escorrendo como agressões; vitrines de felicidades maquiadas, escoadouro de ressentimentos.
Não obstante os humanos, humanos sempre souberam se elevar por sobre a mesquinhez cotidiana e fazer mossa na História. Na melhor arte ou na pior guerra há grandezas humanas que referenciam a humanidade.
Estilística da existência (Foucault); fazer consigo sobre o que consigo foi feito (Sartre); vida como obra de arte (Nietzsche). Vida prazerosa (Epicuro). Sofisticar o acontecimento vida. Mais não há, nem há causa de haver.
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