Por Vivianne Pêgo de Oliveira Barbosa - 14/08/2017
INTRODUÇÃO
O Código de Processo Penal foi publicado em 1941, por isso, encontramos muitos pontos de confronto com a Constituição da República de 1989. E, conforme será demonstrada no decorrer deste trabalho, a principal discrepância entre eles está no fato de o Código Penal, em alguns momentos, permitir a confusão entre as funções de acusar, defender e julgar.
Para isso, serão analisados, especificamente, os artigos 385 e 156, I do CPP. Este último faculta ao juiz de ofício “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade.” (BRASIL, 1941). E o artigo 385 permite, nos crimes de ação pública, que o juiz profira “sentença condenatório, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.” (BRASIL, 1941).
A partir disto, o trabalho tem como objetivo tentar responder as seguintes perguntas:
- Qual o sistema processual penal adotado no Brasil?
- O artigo 385 e art. 156, I do CPP estão de acordo com a Constituição da Federal?
OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS NO BRASIL
O Processo Penal, assim como os demais ramos do direito, é organizado por sistemas, ou seja, é formado por um “conjunto de temas, colocado em relação, por um princípio unificador, que formam um todo pretensamente orgânico, destinado a uma determinada finalidade.” (COUTINHO, 1998, p. 165). Por isso, ele se modifica de acordo com o momento político de cada Estado, estabelecendo diretrizes a serem seguidas pelo direito penal (RANGEL, 2010. P. 49).
A doutrina costuma dividir os sistemas processuais penais em acusatório, inquisitório e misto. Entretanto, este trabalho não tem como objetivo aprofundar neste tema. Por isso, serão tratadas apenas as características do sistema acusatório e inquisitório que tenham relação direta com o tema proposto.
O Código de Processo Penal vigente no Brasil (CPP) é datado de 1941. Ele foi elaborado sob o cenário do Estado Novo e recebeu fortes influências do Código Italiano da década de 30. Nesta época, a Itália estava sob o governo do Duce Benito Mussolini e do desenvolvimento da ditadura fascista, ou seja, o CPP acabou absolvendo características do movimento político autoritário.
Conforme a Exposição de Motivos, elaborado pelo então Ministro Francisco Campos, o CPP tinha como objetivo implantar uma legislação que desse maior eficiência e energia à ação repressiva do Estado contra os que delinquem (caminham contra a “ordem social”).
As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. (BRASIL, 1941)
Fica claro que, a “defesa da sociedade” sobrepunha a defesa do cidadão. Maíra Zapater melhor esclarece ao dizer que:
[...]o Código de Processo Penal também é um decreto-lei imposto por Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo. Ou seja: todo o problemático contexto de restrição severa das liberdades civis e de graves violações de direitos humanos existente quando da promulgação do Código Penal servia igualmente de cenário ao então novo Código de Processo Penal. (ZAPATER, 2016)
No mesmo contexto, o Código de Processo Penal manteve o Inquérito Policial e abandonou a instrução preliminar judicial, mas não sob o argumento de que o juiz instrutor poderia trazer prejuízos para o processo e, principalmente, para o réu. O fundamento foi o da impossibilidade de o juiz atuar de forma rápida nos mais remotos povoados.
Visto que, “para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deve ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade” (BRASIL, 1941).
O Inquérito Policial, segundo o pensamento da época, era o modelo mais adequado e eficiente à realidade devido as grandes dimensões territoriais do nosso país e para “assegurar uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena” (BRASIL, 1941).
O CPP adotou uma postura altamente autoritária, o que demonstra a preferência pelo sistema processual inquisitório. E embora ele tenha extinguido, em tese, a figura do juiz instrutor, em vários momentos é permitida a atuação de ofício do magistrado.
Verifica-se que o Código de Processo Penal tem no juiz como uma figura ativa, autentico justiceiro de toga que deverá buscar, a qualquer preço, a verdade, seja ela o que for. Tem o juiz amplos poderes instrutórios e a produção de provas de ofício não é direito do julgador, mas seu dever. Daí fica fácil de perceber a figura do juiz inquisidor e da adoção do procedimento inquisitivo pelo Processo Penal Brasileiro que acaba ficando cada vez mais afastado das bases constitucionais democráticas. (SANTIAGO, 2011, p. 97)
Por outro lado, a Constituição da República de 1988 (CF) não adotou, expressamente, um sistema processual penal. Entretanto, em várias passagens podem ser percebidas a preferência pelo sistema acusatório como, por exemplo, no artigo 1º[1], uma vez que, o modelo acusatório é o único compatível com o Estado Democrático de Direito.
A CF separa as funções de acusar e julgar, deixando a cargo do Ministério Público a função privativa da acusação (art. 129, I da CF[2]) e prevê garantias processuais, por exemplo, isonomia processual[3], presunção de inocência e do devido processo legal[4] etc.
Salienta-se que, a diferenciação entre os sistemas acusatório e inquisitivo não se restringe à separação das funções de acusar, julgar e defender, é preciso identificar o princípio informador de cada um. Segundo Aury Lopes Junior (2014), com base nos ensinamentos do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o foco deve estar na instrução probatória, sendo que, o princípio dispositivo ou acusatório determina que a iniciativa probatória deve estar nas mãos das partes.
De outro lado, no princípio inquisitivo temos o juiz-ator, que aglutina as funções de acusar e julgar. Enfatizando a predominância da gestão de prova para determinar o núcleo fundador, COUTINHO (1998, p. 165) diz que:
Destarte, a diferenciação destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério de gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito crime através da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador.
Pode ser concluído que, a Constituição Federal, com base em seus princípios e preceitos estabelecidos, adotou o princípio acusatório, enquanto no Código de Processo Penal prevalece o princípio inquisitivo.
OS ARTIGOS 156, I E 385 DO CPP: a incompatibilidade com a Constituição da República
Na tentativa de tentar se enquadrar aos preceitos constitucionais, o CPP passou por várias modificações. Dentre as reformas, está a Lei 11.690/08, que introduziu alterações na gestão de provas e deu outras providências. No entanto, persistem resquícios do sistema inquisitório, dentre eles a possibilidade de o juiz condenar, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição e, também, nos casos em toma frente da gestão probatória.
Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada. (BRASIL, 1941) (grifos nossos)
A Constituição da República atribuiu ao Ministério Público, e não ao juiz, a titularidade da ação penal publica. E quando o órgão ministerial opina pela absolvição do réu, faz desaparecer a própria acusação. Além disso, “representa uma clara violação do Princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou, melhor ainda, plena exercício da pretensão acusatória.” (LOPES JUNIOR).
Paralelamente, a prova tem papel fundamental no processo penal, pois somente ela permite a reconstrução aproximada de um determinado fato histórico, ou seja, é todo elemento pelo qual se procura comprovar a existência e a veracidade de um fato, tendo como finalidade “permitir que o julgador conheça o conjunto sobre os quais fará incidir o direito” (BONFIM, 2008, p. 304)
Nesse diapasão, foi introduzido o inciso I no artigo 156 do CPP, que retirou o papel inerte do juiz e permitiu que ele atuasse na produção de provas na fase de inquérito policial, desde que fossem consideras urgentes e relevantes e adequadas aos requisitos da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
Sem dúvidas, esta possibilidade amoldou novamente ao sistema inquisitivo. Para Guilherme Madeira Dezem (2008, p. 52), este inciso deve ser interpretado sob o quadro do sistema acusatório, ou seja, “o magistrado somente poderá determinar a produção de provas que tenham sido requeridas pelos sujeitos atuantes no inquérito policial”.
Se o magistrado atuar de ofício no inquérito policial haverá violação do sistema acusatório e, também, haverá a transformação deste magistrado em um verdadeiro inquisidor, de maneira a que se possa questionar sua parcialidade pela vida da exceção. (DEZEM, 2008, p. 52)
O princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF) parte do pressuposto que antes da sentença condenatória transitada em julgado, todos são presumidamente inocentes. Neste sentido:
(...) a presunção de não culpabilidade somente poderá restar quebrada quando houver, no processo prova válida, produzida em conformidade com o Direito (prova lícita), em contraditório (produzida em contraditório jurisdicional) e desde que sejam assegurados ao acusado todos os meios de defesa e argumentação necessário (ampla argumentação). (SANTIAGO NETO, 2011, p. 124)
A possibilidade de o juiz tomar o papel da acusação e sair em busca de provas, ocasiona no que podemos chamar de “quadro mental paranoico”. Santiago Neto (SANTIAGO NETO, 2011, p. 80) com embasamento nos ensinamentos de Aury Lopes Júnior, Franco Cordero e Jacinto Coutinho, demonstra que:
Aury Lopes Júnior (LOPES JÚNIOR, 2010c, p. 171) no quadro mental paranoico traçado por Franco Cordero, há um primado da hipótese sobre os fatos, uma vez que o juiz que busca as provas, em um primeiro momento decide, definindo a hipótese, e, somente em um segundo momento, busca as provas dos fatos para justificar a decisão que já havia tomado, podendo tomar o “imaginário” como algo “real” (COUTINHO, 2000, p. 23) que o inquisidor atua secretamente na busca de uma confissão, assim, uma vez que formulam uma hipótese em relação ao objeto de investigação do contraditório leva a um pensamento paranoico no qual a hipótese acaba ocultando os fatos. (LOPES Jr.; CORDERO; COUTINHO apud SANTIAGO NETO, p. 2011, 80)
O juiz, quando toma a frente da gestão probatória, está, na verdade, buscando provas e elementos para confirmar a sentença já elaborada mentalmente. E mais, a probabilidade de ser condenatória é muito maior, pois, caso contrário, ela deveria caminhar para a absolvição do acusado.
Se a prova for insuficiente para convencer o magistrado sobre a procedência da hipótese acusatória, caberá a ele absolver o acusado, e não diligenciar na obtenção de novas provas. Os poderes instrutórios do juiz, nesse contexto, só podem se destinar a favorecer a acusação, haja vista que, para a absolvição, não há a necessidade de qualquer prova. Assim, tendo em conta que, no sistema acusatório, o imputado é considerado sujeito de direitos, fazendo jus à garantia da presunção de inocência, mostra-se inconcebível admitir a iniciativa probatória judicial. (ARMBORST, 2008, p. 28)
Nos dois casos aqui apresentados – arts. 156, I e 385 do CPP - há o claro desrespeito ao princípio da impessoalidade e da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF) – princípios reitores do processo penal -, uma vez que, o magistrado saiu do seu campo de atuação e começou a exercer o papel de assistente de acusação. Pois, “se o crime é um fato típico, ilícito e culpável, compete à acusação todo o ônus probatório de comprovar cabalmente seus elementos” (SANTIAGO NETO, 2011, p. 123).
Mas, enquanto não é promulgado um novo Código de Processo Penal que atenda a todas as premissas do Estado Democrático de Direito, é preciso ler e interpretar o Código de 1941 conforme a Constituição Federal. E não somente à luz das normas constitucionais, mas “também de projetar sobre estes campos a influência dos direitos fundamentais e dos princípios mais gerais do nosso constitucionalismo, muitas vezes superando antigos dogmas e definindo novos paradigmas” (SARMENTO, 2009, p. 8 e 9)
Para que isso seja possível, é imprescindível que os magistrados compreendam que o seu papel não é de ator, muito menos “heróis da sociedade”, mas sim expectadores e garantidores de direitos fundamentais.
CONCLUSÃO
A discrepância entre o Código de Processo Penal e a Constituição da República deve ser resolvida a partir da interpretação normativa. Devemos partir do pressuposto de que a CF não é um mero enunciado de intenções, mas indica claramente a preferência pelo processo penal acusatório, permitindo o diálogo e aumentando as expectativas de uma "decisão favorável (acusação e defesa) e humanitária" (GIACOMOLLI, 2008, p. 12)
Desta forma, os juízes não podem se restringir à simples interpretação da lei ordinária, mas devem se adequar aos preceitos constitucionais. E, caso haja divergência entre eles, deve se abster da aplicação da lei infraconstitucionais em respeito a Constituição. Logo, "em razão da nova Constituição Federal, aqueles provimentos legislativos, nitidamente inquisitoriais, não mais poderão conviver, de forma clandestina, em nosso processo penal, uma vez que não recepcionados pela nossa Lei Maior" (HAMILTON, 2000, p. 250)
Os artigos que possibilitam a instrução probatória do magistrado durante a fase de inquérito policial (art. 156, I do CPP) e a condenação diante do pedido de absolvição pelo MP (art. 385 do CPP) vão em confronto com o sistema acusatório consagrado pela Constituição da República. Desse modo, como dito anteriormente, a leitura deste dispositivo deve ser feita sob a luz da Constituição Federal.
Os magistrados precisam compreender e aceitar o papel de garantidor no Estado Democrático de Direito. Destarte, eles devem se abster da produção de provas e não condenar, quando o MP opinar pela absolvição, sob pena de usurpar a função acusatória do Ministério Público. E, quando ausentes às provas que possam condenar o réu, caminhar para absolvição e não para a busca descontrolada de provas.
Notas e Referências:
[1] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)” (BRASIL, 1988).
[2] “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação pública, na forma da lei; (...)”. (BRASIL, 1988).
[3] “Art. 5º (...) I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição;” (BRASIL, 1988)
[4] “Art. 5º (...) XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;” (BRASIL, 1988)
ARMBORST, Aline Frare. A atuação instrutória do juiz no processo penal brasileiro à luz do sistema acusatório.2008, 40 f. Monografia (Graduação). Disponível em: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2008_2/aline_frare.pdf Acessado em: 01/05/2017.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 3. Ed., ver., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
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ZAPATER, Maíra. O Código de Processo Penal de 1941: tudo o que você disser poderá ser usado contra você. Publicado 17/06/2016.Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/17/o-codigo-de-processo-penal-de-1941-tudo-o-que-voce-disser-podera-ser-usado-contra-voce/> Acessado em: 02/05/2017
. Vivianne Pêgo de Oliveira Barbosa é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP); Pós-Graduanda em Ciências Criminais com Contributos da Psicanálise na PUC – Minas; Analista Técnico Jurídico na Secretaria de Estado de Administração Prisional (SEAP). .
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