Os reflexos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro nas ações fiscais

26/12/2018

A chamada Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657/42 sofreu várias alterações por leis supervenientes, entre as quais a própria ementa, agora descrita como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), alteração esta introduzida pela Lei nº 12.376/10, que me parece muito mais apropriada, já que a sua aplicação nunca se restringia ao Código Civil como sugerido pela denominação anterior.

Evidentemente, esta lei tem aplicabilidade nos mais variados ramos do Direito, mas pretendo fazer um corte metodológico para uma abordagem reflexiva sobre o Direito Tributário, em especial no plano das ações de fiscalização tributária e nos julgamentos dos litígios, seja na esfera administrativa ou judicial.

A matéria específica que pretendo examinar é veiculada pelo art. 24 e seu parágrafo único, da LINDB introduzida pela Lei nº 13.655/18, que transcrevo.

“Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.                       

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”                          

Seguindo a tendência do novo CPC, Lei nº 13.105/18, que valoriza os precedentes na construção do direito, fazendo uma aproximação com o sistema consuetudinário do common law, de origem anglo-saxônica, o dispositivo enfocado  vincula as ações estatais no plano tributário às “orientações gerais” vigentes na época em que o ato sob análise foi realizado. 

O parágrafo único do artigo enfocado trata de identificar o sentido semântico da expressão  “orientações gerais”, que englobaria as interpretações, a jurisprudência administrativa e judicial, bem com as práticas reiteradas pela Administração.

Com esta nova ordem normativa, tanto o julgador como o agente fiscal atuante no controle do cumprimento das obrigações tributárias devem ter um olhar retrospectivo sobre a orientação vigente na época da ocorrência dos fatos em análise. E quando se fala em orientação, subentende-se não somente a lei, mas as jurisprudências, as interpretações manifestadas em decisões e as práticas oficiais rotineiras externadas aos contribuintes. Quebra-se o paradigma da jurisprudência atualizada como referência, quando esta é  contrária àquela que foi observada pelo contribuinte na época da ocorrência do evento jurídico tributário em análise.

Na verdade, esta nova orientação interpretativa do direito brasileiro, no plano tributário, se alinha com as normas gerais prescritas no Código Tributário Nacional,  as quais determinam a análise dos fatos jurídicos tributários com base na norma vigente na data de sua ocorrência. É neste sentido que ordena o art. 144 do CTN, determinando que o lançamento seja regido pela legislação vigente na época da ocorrência do fato gerador. Segue o art. 146, do mesmo Código, garantindo a segurança jurídica ao contribuinte, ao blindá-lo contra mudança de critério jurídico adotada pela autoridade administrativa no tempo, sem que lha seja informado antecipadamente. O Código cria ainda a figura das “Normas Complementares” relacionadas no art. 100, livrando  o contribuinte que as observar, de multas e juros (parágrafo único), em homenagem à sua conduta de boa-fé, normas todas ancoradas no princípio da segurança jurídica.  

Todavia, a LINDB não somente ratificou estas normas tributárias inspiradas na necessária previsibilidade, operando num campo de redundância, mas trouxe inovações que terão reflexos de relevância no sistema, determinando uma nova postura dos agentes julgadores, seja na esfera administrativa ou judicial.

A novidade se concentra  na valorização da aderência do contribuinte ao cumprimento das normas tributárias seguindo o entendimento manifestado pela administração tributária sobre a norma, seja através de interpretações, práticas reiteradas e jurisprudências, inclusive as consolidadas pelo Poder Judiciário, avançando para além da lei positivada. A postura do contribuinte continua sendo comparada com a lei vigente na época da ocorrência do evento tributário, mas também será confrontada com a jurisprudência, orientações  e práticas usuais externadas pela administração tributária sobre determinado tema. Ou seja, havendo jurisprudências, orientações ou as denominadas práticas reiteradas da Fazenda Pública, o agente público nas lides tributárias, além de observar a legislação vigente na época da ocorrência do evento tributário, deve também  absorver todas as orientações oficiais da época que possam ter servido de orientação ao contribuinte no cumprimento de suas obrigações tributárias, evidentemente, dentro dos limites da lei.  

Evidentemente, em nenhuma hipótese a LINDB tem força normativa a ponto de revogar dispositivos do CTN ou de outra norma tributária específica. Prevalece o critério da especialidade no confronto de normas. A sua eficácia opera no plano interpretativo, sem afrontar dispositivo legal específico. Cito como exemplo, a não observância pelo fisco estadual da Súmula nº 166, do STJ, segundo a qual “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de uma para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”,  por contrariar especificamente o art. 12, I, da LC 87/96.

Antevejo, no entanto, um terreno turbulento no confronta da nova lei de introdução com o efeito normativo das “Normas Complementares” arroladas nos incisos do art. 100, do CTN. Com base no dispositivo deste Código, estranhamente, o alinhamento do contribuinte com as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas, por exemplo, dispensa apenas os sectários legais (multa e juros), permanecendo o vínculo obrigacional com relação ao imposto. A nova lei de introdução, como é de abrangência geral, não poderia adentrar nesta particularidade. Penso que neste caso deve prevalecer a norma específica do Direito Tributário, embora sempre foi difícil assimilar a regra que impõe o pagamento do tributo pelo contribuinte que cumpriu com as denominadas norma complementares. Resta assim, como maior foco de aplicação da nova lei de introdução no campo tributária, as jurisprudências judiciais e administrativas.     

Tem-se pela frente uma nova forma de abordar as jurisprudências no exame do cumprimento das obrigações tributárias. A nova ordem exige um olhar retrospectivo para a jurisprudência firmada na data da ocorrência do fato gerador. O julgador não deve mais se preocupar, em todas as situações, em amparar a sua decisão na jurisprudência mais atualizada; deve ele voltar ao tempo da ocorrência do evento tributário em julgamento e confrontá-la com a jurisprudência contemporânea. 

Nos tempos atuais o intérprete aplicador do direito tributário empenha-se com todo o esforço, para conhecer a jurisprudência mais atualizada, visando a sua aplicação no caso concreto sob a sua análise, julgando que com esta atualização está contribuindo para  uniformização e atualização do sistema normativo; não se preocupa ele com a jurisprudência mantida no pretérito, na época da ocorrência do fato tributário em questão, a não ser se for requerido expressamente. Esta postura deve sofrer ajustes para o atendimento das novas regras anunciadas no LINDB.   

Em harmonia com o que estabelece o CTN, em seus artigos acima mencionados, este  alinhamento das exigências tributárias com as orientações ostentadas pelo ente tributário no tempo vem ao encontro da previsibilidade que firma o princípio maior da segurança jurídica, principal diretriz do direito. Esta segurança vem prescrita na Constituição Federal, no art. 5º. XXXVI, segundo o qual  “ a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” As regras do jogo podem não ser as melhores, mas devem ser claras e seguras, para que a pessoa, sujeita do direito, tenha como medir as consequências advindas de sua conduta.

Este novo cenário atribui a fisco uma maior responsabilidade na entrega de serviços de orientação através dos atos normativos infralegais, pareceres, decisões e julgamentos, e principalmente, adequar as exigência à jurisprudência vigente na época do evento tributário sob análise,  removendo pontos de incertezas que tanto afligem o contribuinte no sistema tributário de extrema complexidade e imprecisões normativas.  

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Azuis e linhas // Foto de: Fernando Palacios // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/palacios/4180100439/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura