Coordenador: Gilberto Bruschi
1. O problema da aplicação do NCPC aos procedimentos da legislação extravagante
Chegamos ao crucial momento em que as dúvidas na aplicação do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015) não são mais suposições teóricas doutrinárias, mas sim problemas concretos em processuais judiciais reais. Agora, com os processos tramitando à luz do novo modelo processual, é que a parte tem que tomar a decisão do caminho a seguir, e que o julgador deve solucionar a questão posta. É agora, com a lei processual atingindo sua razão de existir – regrar processos – que surgem as controvérsias realmente relevantes.
Uma das questões de grande relevância e complexidade é a aplicação do CPC/2015 aos processos submetidos a procedimentos especiais previstos na legislação extravagante. A dificuldade surge porque tais procedimentos especiais foram desenhados tendo como ponto de partida a sistemática processual agora revogada; as paredes desses procedimentos foram erguidas sobre o solo do CPC não mais vigente. Com o advento do novo modelo processual, é fundamental (embora sempre difícil) fixar as regras que podem ser simplesmente substituídas pelas novas, e as que se mantêm intactas diante da inovação legislativa. O problema é muito maior que a mera permanência da norma especial diante da alteração da norma geral. Não se cogita, aqui, da substituição das normas especiais pelas novas normas gerais; a questão que se propõe a enfrentar é a aplicação da nova legislação nos espaços deixados pela previsão omissa da legislação extravagante.
Um dos procedimentos especiais atingidos pela nova ordem processual é a recuperação judicial. Inaugurado na Lei 11.101/2015, o procedimento de recuperação judicial foi desenhado quando vigente o CPC/1973. Com pouco mais de dez anos de existência na entrada em vigor do CPC/2015, a recuperação judicial ainda vem buscando a sua maturidade em pontos que remanescem controvertidos na jurisprudência.
São várias as questões a serem resolvidas quanto aos impactos do CPC/2015 na recuperação judicial, inclusive quanto ao sistema recursal. Nesse início de vigência da nova ordem processual, o problema mais relevante passa ser a forma de contagem dos prazos: em dias úteis, por plena aplicação do CPC/2015; ou em dias corridos, no desenho vigente quando da criação da recuperação judicial?
2. A contagem de prazos segundo o CPC/2015
Ainda durante o trâmite legislativo, uma das novidades de maior destaque foi a mudança na contagem de prazos. Chegou com elogios, especialmente dos advogados, a notícia de que os prazos passariam a ser contados apenas em dias úteis, excluindo-se feriados e finais de semana. Era o reconhecimento, brincava-se, da dignidade da pessoa advogada, que veria assegurado seu direito ao repouso e ao lazer nos finais de semana.
A regra central da contagem de prazos está no art. 219 do CPC/2015. Para podermos compreender sua extensão e seus limites, impõe transcrevê-lo:
Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.
Veja-se que a regra se aplica aos prazos processuais contados em dias. A limitação do caput – somente prazos contados em dias, excluindo prazos em horas, meses, anos – não traz dificuldades. Assim, no que tange à recuperação judicial, sequer se cogita da aplicação do art. 219 do CPC/2015 ao prazo de um ano para pagamento dos créditos trabalhistas (art. 54 da LFRE), de dois anos do período de observação de cumprimento do plano (art. 61 da LFRE), de cinco anos anteriores ao pedido de recuperação sem haver utilizado do benefício (art. 48 da LFRE). Tampouco teria cabimento a aplicação da regra de contagem em dias úteis dos prazos fixados em horas, como os prazos de 24h para: decisão sobre requerimento de substituição do administrador nomeado (art. 30, § 3º, da LFRE); administrador assinar o termo de compromisso (art. 33 da LFRE); procurador do credor apresentar procuração para participar da assembleia (art. 37, § 4º, da LFRE); assim como o prazo de 48h posteriores à assembleia para ser entregue ao juiz a ata da assembleia geral de credores (art. 37, § 7º, da LFRE); e o prazo de 72h para convocação de nova assembleia quando o gestor por ela nomeado recusar assumir o encargo (art. 65, § 2º, da LFRE).
Afastados tais prazos em anos ou horas (a LFRE não prevê prazos em meses), a controvérsia recai sobre os prazos mais relevantes do processo de recuperação judicial, todos fixados em dias: para apresentação do plano, para o credor formular objeção ao plano, para convocação da assembleia, para habilitação, divergência e impugnação de crédito e, também, o controvertido prazo (“improrrogável”) de cento de oitenta dias de suspensão das ações individuais contra o devedor em recuperação.
Para se concluir pela aplicação (ou não) da contagem de prazos na forma do CPC/2015, deve-se responder a duas questões: (i) a regra geral processual encontra espaço para aplicação na especialidade do processo de recuperação?; e (ii) quais prazos no processo de recuperação são processuais e quais são materiais?
3. Sobre a especialidade do procedimento e a aplicação do CPC/2015.
Os que sustentam a inaplicabilidade do CPC/2015 ao processo de recuperação judicial fundamentam-se na especialidade desse procedimento.
Com efeito, o procedimento previsto para a recuperação judicial é de gigantesca especialidade, decorrente da peculiaridade do direito material envolvido. Afinal, de nada adiantaria a previsão legal da possibilidade abstrata de recuperação judicial se não fosse disponibilizado procedimento adequado, com técnicas ajustadas às necessidades do direito substancial.
Mas, no que não há especialidade, o processo deve ser aproximar o máximo possível do procedimento comum. Em outras palavras: o procedimento deve ser especial quando assim exigirem as especificidades do direito material; de outro modo, se desnecessária a especialização de determinado ato, deve-se observar o procedimento comum ordinário. Em verdade, o procedimento comum, conhecido e consagrado, deve ser a base, sofrendo as alterações exigidas para amoldamento ao direito material apenas nos pontos em que for necessária a especialização.
Por previsão expressa, na omissão da LFRE, as normas do Código de Processo Civil são aplicáveis (art. 189). Ora, a bem da verdade, essa previsão legal é até desnecessária, já que as disposições do CPC/2015 são aplicáveis a todos os processos judiciais, inclusive os previstos na legislação esparsa, subsidiariamente, como uma regra geral. A propósito, até o CPC/2015 assim prevê, nos arts. 1º, 13, 14 e 15.
A forma de contagem dos prazos é um dos pontos em que a LFRE é omissa. Há disposições específicas sobre a quantidade de prazo (trinta dias para objeção, por exemplo), mas não sobre a forma em que esses prazos são contados. Não há um dispositivo que diga se os prazos serão contados em dias corridos ou úteis. É indiscutível, portanto, que a LFRE não é completa nesse ponto, exigindo o preenchimento dessa lacuna.
Para tanto, deve-se buscar no ordenamento a regra de contagem dos prazos processuais. Essa regra está no art. 219 do CPC/2015 – o dispositivo que trata da contagem dos prazos apenas em dias úteis. Ora, não há outro dispositivo que concorra com o art. 219; não há outro dispositivo que diga que, em determinadas situações, os prazos processuais devam ser contados em dias corridos.
Assim, a única maneira de se preencher adequadamente a lacuna da LFRE sobre a forma de contagem dos prazos em dias é por meio do art. 219 do CPC/2015. Os prazos processuais fixados em dias devem, portanto, ser contados apenas em dias úteis, na forma do CPC/2015.
E mais: por previsão expressa, da sentença da impugnação cabe agravo de instrumento (art. 17), assim como da sentença de concede a recuperação judicial (art. 59 § 2º). É, evidentemente, o agravo de instrumento tratado nos arts. 1.015 e seguintes do CPC/2015, cujo prazo de interposição é de 15 dias. Parece-nos indiscutível que o prazo seja contado na forma em que é contado o prazo para interposição de qualquer agravo de instrumento – que é o mesmo, em procedimento comum, em ação de alimentos, em ação de despejo, ou na recuperação judicial e na falência. Dessa forma, o agravo de instrumento, assim como os possíveis embargos de declaração, agravo interno contra decisão monocrática no tribunal, recurso especial e recurso extraordinário, tem seu prazo contado em dias úteis. Ora, se isso ocorre com os recursos, não haveria porque tratar diferentemente os prazos das demais manifestações processuais.
Ultrapassada a premissa da aplicabilidade do art. 219 do CPC/2015, resta se identificar quais os prazos do processo de recuperação judicial que são de direito material, e quais são de direito processual, para se distinguir os que serão contados em dias corridos e quais serão computados em dias úteis.
4. Os prazos processuais e os prazos materiais.
Já se explicou que o art. 219 do CPC/2015 prevê a contagem em dias úteis apenas dos prazos processuais, excluindo de sua incidência os prazos não processuais, ou materiais, para usar a dicotomia clássica.
Aqui, não nos resta alternativa a não ser elencar os prazos contados em dias no procedimento da recuperação judicial, para tentar encontrar a sua natureza, se processual ou material.
No procedimento central, a partir da publicação do deferimento do processamento, o devedor tem 60 dias para apresentar o plano de recuperação judicial. Depois, os credores passam a ter 30 dias para objeção ao plano. A assembleia, ato seguinte, deve ser designada com 15 dias de antecedência, havendo pelo menos 5 dias entre a primeira e a segunda convocação, e deve ser realizar em até 150 dias do início do processo.
A nosso ver, todos esses atos são processuais. A apresentação do plano é, no aspecto processual, um complemento à petição inicial no que se refere ao mérito da ação. É apresentado nos autos, por meio de advogado, e com consequências processuais. Não é diferente nossa posição quanto à objeção, forma peculiar de defesa dos credores em resistência à pretensão do devedor; seria o equivalente à contestação. A assembleia geral de credores, conquanto seja um órgão da recuperação judicial, é também ato processual, vinculado que é ao procedimento da recuperação. Com enormes peculiaridades – como não ser presidida pelo juiz, não se realizar no fórum, ter formas especiais de convocação etc – assembleia corresponderia a uma audiência, com aspectos de mediação e conciliação, e aspectos de audiência do revogado rito sumário, por se tratar de complemento do direito de resistência dos credores, agora de forma colegiada. Sendo todos esses atos processuais, os seus respectivos prazos são contados em dias úteis, na forma do art. 219 do CPC/2015.
No procedimento de verificação de créditos, tudo começa com o prazo de 15 dias para habilitações e divergências ao administrador judicial, que tem 45 dias para consolidá-las na sua relação de credores. Publicada esta, inicia-se o prazo de 10 dias para as impugnações, em que sucessivamente, credor impugnado, devedor e administrador têm 5 dias para suas manifestações, culminando na sentença ou no saneamento para produção de provas, seguindo nesse caso o procedimento comum do CPC.
Quanto às impugnações, não temos maiores dificuldades em sustentar serem atos processuais, tanto no que se refere à inicial da impugnação, quanto nos atos que a compõem. Desenrolam-se de cabo a rabo na forma de incidente processual, com pedido, defesa, provas e decisão. As habitações e divergências administrativas, por sua vez, não têm resposta tão fácil. Isso porque não são apresentadas no processo, ao juiz, mas sim diretamente ao administrador judicial, e não necessariamente por advogado. Isso não é suficiente, contudo, para que percam sua natureza processual. A verificação dos créditos, inclusive na fase administrativa, é parte do procedimento de recuperação, parte do processo judicial e com efeitos no processo. Veja-se, por exemplo, a penhora é ato feito fora do processo, por auxiliar do juízo, o que não lhe retira o caráter de ato processual. Assim, também os prazos para habilitação e divergência devem ser contados em dias úteis.
Chegamos, então, ao último dos prazos em dias no procedimento de recuperação judicial: o de 180 dias de suspensão das ações e execuções movidas contra o devedor. Claro que, ao prever o prazo de 180 dias, imaginou-se que equivaleriam a seis meses. Mas, se contados em dias úteis, chega-se a aproximadamente 260 dias, ou quase nove meses. Esse cálculo chega a ser tentador para que opinemos pela contagem em dias corridos.
Todavia, essa suspensão irradia para outros processos, que estariam tramitando com prazos em dias úteis. Ficam suspensos esses atos processuais, que teriam prazos em dias úteis. Se em dias úteis seriam computados, o “não computo” também deve ser em dias úteis. Mais que isso: os atos suspensos são processuais, o que denota a natureza processual do stay period. Sendo assim, nada pode afastar a incidência do CPC/2015, para que também esse prazo seja contado em dias úteis.
Aliás, na letra do art. 6º, § 4º, esse prazo é “improrrogável”, não podendo ser excedido “em nenhuma hipótese”. Mas, como a jurisprudência é pacífica quanto à necessidade de extensão do stay period até a conclusão do processo recuperacional, passa a não ser tão relevante a forma de contagem desse prazo, que acaba sendo prorrogado corriqueiramente.
O que há de ser feito, e com urgência, é a alteração da LFRE, para adequá-la ao novo sistema processual, especialmente quanto à contagem de prazos. Mas, enquanto a lei posta é a original, a ela se impõe o respeito e a plena aplicação. Que se contem em dias úteis os prazos processuais da recuperação judicial!
Imagem Ilustrativa do Post: backlit // Foto de: Martin Lopatka // Sem alterações
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