Os honorários sucumbenciais podem ser arbitrados por equidade nas demandas em que se pleiteia do poder público o fornecimento de medicamentos?

20/08/2023

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira 

Não é de hoje que o tema do arbitramento dos honorários sucumbenciais por equidade toma conta dos debates doutrinários e jurisprudenciais. Como é sabido, o art. 85, § 8º, do CPC, prevê que, nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo, o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do § 2º.

Não tardou a, logo após o início da vigência do atual CPC, surgirem decisões, entre magistrados de primeira instância, bem como em tribunais estaduais e regionais, no sentido de considerar que a regra contida no § 8º também poderia se aplicar em causas de valor elevado. A discussão invariavelmente chegaria aos tribunais superiores, como de fato chegou, tendo sido possível observar, no próprio STJ – em um momento inicial -, acórdãos que confirmavam tal possibilidade, a exemplo do REsp 1789913/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 12/02/2019, DJe 11/03/2019, REsp 1771147/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Dje de 25/09/2019, AgInt no AREsp 1487778/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 26/9/2019.

Não à toa, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou, junto ao Supremo Tribunal Federal, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 71), a fim de provocar aquela Corte a afirmar a constitucionalidade dos parâmetros estatuídos no § 3º do art. 85, prescritos para a condenação em honorários nas causas em que for parte a Fazenda Pública. O relator da ADC 71 é o Ministro Nunes Marques, e o feito está ainda pendente de julgamento.

Por sua vez, o STJ afetou, entre dezembro de 2020 e março de 2021, os Recursos Especiais 1850512/SP, 1877883/SP, 1906623/SP e 1906618/SP à sistemática dos repetitivos (Tema 1.076), a fim de definir o alcance da norma inserta no §8º do art. 85 do CPC, nas situações em que o valor da causa ou o proveito econômico forem elevados.

O julgamento do tema repetitivo, na Corte Especial do STJ, foi iniciado em 15 de dezembro de 2021, sob a relatoria do Ministro Og Fernandes e finalizado em 16 de março de 2022. Em apertada maioria (sete votos a cinco), prevaleceu o voto do Relator, sendo firmadas duas teses, a saber: i) a fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa; ii) apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo.

É sabido que, não obstante as teses firmadas, que guardam caráter vinculante, nos termos do art. 927, III, do CPC, ainda se observa resistência por parte de alguns magistrados. No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por exemplo, quando do julgamento do Processo 1.0000.22.035871-5/001, no âmbito da 20ª Câmara Cível, decidiu-se por não aplicar o aludido precedente, por se entender que o tema não se encontrou satisfatoriamente amadurecido no STJ, em razão da apertada votação. Concluiu-se por ignorar o que restou pacificado no STJ, porque seria “temerário receber o referido decisum com credenciais de precedente obrigatório e vinculante, o que desvelaria verdadeira ofensa ao princípio da segurança jurídica, posto que não existe pacificação do entendimento jurisprudencial sobre a matéria”.

Por óbvio, a respeito, indispensável que haja uma fiscalização, em especial por parte da OAB, quanto à obediência aos ditames daquelas teses obrigatórias, valendo-se inclusive dos instrumentos legais – em especial recursais – para provocar a reversão das decisões que não respeitarem os limites do § 8º do art. 85.

Os limites da tese firmada pelo STJ chegaram também ao STF, quando do RE 1412069, que gerou o tema 1.255, a fim de se aferir a possibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem exorbitantes. A ideia, fruto de recurso interposto pela União, é que se debata, à luz dos artigos 2º, 3º, I e IV, 5º, caput, XXXIV e XXXV, 37, caput, e 66, § 1º, da Constituição Federal, a interpretação conferida pelo STJ. Com a chegada ao STF do Ministro Cristiano Zanin, reconheceu-se a questão constitucional e a repercussão geral, por 6 votos a 5, razão pela qual o tema deve ir a julgamento de mérito[1].

Mas, o que dizer então, das ações que dizem respeito ao fornecimento, por parte do poder público, de medicamentos? Ainda que não seja em julgamento de recursos ou incidentes que formam precedentes obrigatórios, as turmas que compõem a Primeira Seção do STJ, que lidam com matérias afetas ao direito público, vêm enfrentando a questão da forma de arbitramento dos honorários sucumbenciais em tal tipo de demandas.

Via de regra, aplica-se o art. 292, § 2º, do CPC, que prevê que o valor das prestações vincendas será igual a uma prestação anual, se a obrigação for por tempo indeterminado ou por tempo superior a 1 (um) ano. Assim, compreende-se que, nessas ações que visam ao fornecimento de medicamentos, ajuizadas contra os entes componentes da Fazenda Pública, o valor da causa deve corresponder a um ano de medicamento, ainda que se saiba que, nesse interregno temporal, o paciente pode vir a não mais necessitar da medicação, pode falecer, pode ser curado, pode surgir um novo fármaco mais eficaz, dentre outras variáveis.

A verdade é que em boa parte das ações, considerando o custo elevado da medicação, mormente aqueles indicados para doenças oncológicas ou raras, considerando-se um ano de tratamento, o valor da causa supera a cifra dos milhões, sendo de se questionar se realmente é o caso de se aplicar os parâmetros do § 3º do CPC.

Com efeito, não parece ser o caso de aplicação do § 3º, mas de incidência do permissivo contido no § 8º e em estrito respeito ao Tema 1.076 do STJ. Ocorre que, nesse tipo de demanda, em que se busca o fornecimento de medicamentos para o tratamento de enfermidades, o real fim perseguido pela ação não é representado pelo valor atribuído à causa, mas sim a preservação da vida e/ou da saúde do autor da ação, bens constitucionalmente assegurados.

Sendo assim, é de se depreender que o valor do bem em litígio (vida e/ou saúde) é inestimável. Não se está, nesses casos, a pleitear da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município uma obrigação pecuniária em sentido estrito, mas sim que se concretize o direito fundamental à vida e/ou à saúde, não se revelando conteúdo econômico ou patrimonial em essência.

A utilização dos parâmetros do § 3º, considerando o que se extrai da própria leitura dos seus incisos, parte do pressuposto de que haja um valor da condenação ou um proveito econômico obtido pelo vencedor da demanda, a fim de que incidam as faixas percentuais lá estabelecidas. O que aqui se sustenta é que, restando ausente um valor específico de condenação – afinal de contas a obrigação é de fazer – ou um proveito econômico concreto, não há fundamento para que sejam utilizados ditos percentuais do § 3º nas demandas que visem ao fornecimento de medicamentos.

Não se está a defender a flexibilização ou a superação do precedente firmado pela Corte Especial do STJ, quando foram firmadas as teses do Tema Repetitivo 1.076. Pelo contrário, defende-se o respeito ao precedente obrigatório, já que restou claro que apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação, o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório, ou quando o valor da causa for muito baixo. Estamos diante de evidente situação em que o valor é inestimável.

O que ocorre é que, quando se analisa tal precedente, fala-se muito na questão dos valores irrisórios ou baixos, para se fazer um contraponto com os valores elevados, mas acaba se ignorando a questão dos valores inestimáveis. Inestimável é quando não se pode determinar o valor, ou seja, quando não se identifica benefício econômico imediato, pouco importando se o valor da causa apontado na exordial era baixo ou elevado.

Para tanto, identificamos diversos recentes julgados[2] no STJ, nas duas turmas que compõem a Primeira Seção, compreendendo pela incidência do § 8º do art. 85 do CPC, isto é, pela possibilidade do arbitramento dos honorários por equidade, nas ações em que se vise ao fornecimento de medicamentos, por representar valor inestimável.

Supreendentemente, noticiou-se na página do STJ[3] que a Segunda Turma teria afastado a apreciação equitativa de honorários em ação em que se pedia medicamentos, no REsp 2.060.919/SP. Segundo o voto do Relator, Ministro Herman Benjamin, a fixação da verba honorária com base no art. 85, §8º, do CPC/2015 estaria restrita às causas em que não se vislumbra benefício patrimonial imediato, como, por exemplo, as de estado e de direito de família. Causa estranheza dito voto, porque tal julgado se deu em 06 de junho de 2023, menos de um mês após aquela Turma, sob a mesma Relatoria, no AgInt no REsp 1808262/SP, ter esposado o entendimento de que a jurisprudência da Primeira Seção autoriza o arbitramento de honorários advocatícios por critério de equidade nas demandas em que se pleiteia do Estado o fornecimento de medicamentos, haja vista que, nessas hipóteses, não é possível mensurar, em geral, o proveito econômico obtido com a ação, por envolver questão relativa ao direito constitucional à vida e/ou à saúde. Com a devida vênia, a decisão mais recente, não obstante amplamente noticiada, é isolada e contraria a posição que vinha sendo consolidada nas duas turmas da Primeira Seção.

Resta esperar que brevemente o STJ possa também enfrentar o tema específico, em sede de repetitivo, a fim de que forme precedente obrigatório, no sentido de que, quando se tratar de ações contra a Fazenda Pública, em que o objetivo é a obrigação de fazer, consistente no fornecimento de medicamento, não é o caso de aplicação dos parâmetros do § 3º do art. 85 do CPC, em razão da ausência de proveito econômico, mas sim de arbitramento da verba honorária por equidade, fruto do caráter inestimável da vida e/ou da saúde do demandante, valores efetivamente protegidos e perseguidos com a ação judicial.

 

Notas e referências

[1] Recentemente, noticiou-se inclusive que o Conselho Federal da OAB, a Advocacia-Geral da União e o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal peticionaram ao STF, informando sobre a intenção das entidades de chegarem a uma solução consensual para tal controvérsia. Assim, pugnaram pela suspensão da deliberação do plenário virtual. https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-oab-e-conpeg-informam-supremo-sobre-intencao-de-chegar-a-acordo-envolvendo-honorarios, acesso em 08 de agosto de 2023.

[2] Nesta linha, dentre outros, AgInt no REsp 1808262/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, DJE 19/05/2023; AgInt nos EDcl no REsp 1878495/SP, Primeira Turma, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, DJE 20/04/2023; AgInt nos EDcl no AREsp 2100231/MT, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, DJE 30/09/2022; AgInt no REsp 1976775/RS, Primeira Turma, Relatora Ministra Regina Helena Costa, DJE 28/09/2022.

[3] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/31072023-Segunda-Turma-afasta-apreciacao-equitativa-de-honorarios-em-acao-que-pede-medicamentos.aspx, acesso em 08 de agosto de 2023.

 

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