Os efeitos da [des] pretensiosidade na compreensão estrutural do Direito

02/09/2017

Por Thiago M. Minagé – 02/09/2017

No atual contexto político e principalmente jurídico que estamos imersos, nunca fez tanto sentido [infelizmente] o ditado popular, onde afirma que: a teoria não se aplica na prática. Aprendi [lendo, vendo e ouvindo] Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que toda fala [dita ou escrita] deve ser contextualizada, para melhor, se fazer entender, frente ao público que pretende alcançar, logo, pensei: nada melhor que utilizar-me de alguns exemplos de fala que [des] pretensiosamente acabam por perpetuar um simplismo perigoso e distorcido do direito, e pior, passa-se para alunos e iniciantes nos estudos do direito, de uma forma que, acabam por entronizar essa simplificação do complexo, como se, realmente, simples fosse.

Uma democracia se forma e principalmente se consolidada diante de uma multiplicidade de opiniões que certamente, em algum momento se chocam no espaço de fala e atuação. No entanto, algumas falas, carecem de conteúdo ou mesmo de estrutura que as fundamente. Essas falas precisam ser desconstruídas para inviabilizar sua proliferação e consequente distorção dos institutos jurídicos, tais como: O Direito Penal, é a proteção dos bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, na proteção de bens jurídicos[1]. No âmbito processual fica ainda mais complicado, quando nos deparamos com definições do tipo: Direito Processual Penal é o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal objetivo[2].

Pois bem, a experiência não dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo, ou mesmo a especulação permite que a observação dos fatos seja verdadeira instância de confirmação última, ou seja, a teoria e a prática se relacionam intimamente, de forma complementar, tendo na análise dos fatos o resultado que pode negar ou comprovar a premissa teórica adotada.

Para falar de algum instituto afeto às ciências criminais e em especial ao processo penal, necessário entender que a natureza teórica do conhecimento científico de que estamos tratando, decorre dos pressupostos epistemológicos e regras metodológicas em um verdadeiro conhecimento causal, que inspira a formulação de leis com vistas às [i] regularidades observadas, anteriormente em âmbito social e que, agora, de forma abstrata passam a prever o comportamento futuro dos fenômenos. Observando determinados fatos sociais, valora-se o respectivo fato de forma negativa, impondo uma sanção para aquele que porventura vier a ter com ele algum tipo de relação. Consequentemente, o tratamento processual a ser imposto observa a mesma lógica causal, dispensando ou ignorando toda e qualquer condição pessoal, de forma individualizada, como se o tempo e o lugar fossem irrelevantes para a incidência legislativa no seio social, presumindo, assim, comportamentos lesivos a serem evitados de forma antecipada.

As leis, enquanto categorias de inteligibilidade repousam em conceito de causalidade escolhido. Não de forma aleatória e, sim, um tipo de causa formal que privilegia o como funciona, em detrimento de, qual o fim das coisas[3]. Aqui está o principal ponto de distinção entre o que é conhecimento científico e, o que é conhecimento prático comum. Neste, a causa e a intenção estão de mãos dadas, naquele, desconsidera-se a intenção. Dessa forma, a ciência consegue intervir, manipular e transformar o real, cuja premissa é a ordem e estabilidade do mundo, fundamentando seu rigor na verdade que afirma existir e busca encontrar[4].

O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se perfaz de forma utilitária e funcional, eis que, pretende dominar em detrimento da compreensão do real com constantes inversões ideológicas[5]. O controle da massa se torna mais fácil e eficaz, de acordo com os interesses defendidos pelos detentores do exercício do poder[6]. Por isso, insistentes perguntas a frequentes críticas às repostas sobre a privação da liberdade cautelar e sua finalidade. A resposta certa seria: não importa a finalidade, e, sim, porque é assim que deve ser.

Peca-se pelo erro de considerar como suficiente a ‘força de um poder bom’ para satisfazer as funções atribuídas ao direito. E, mesmo que se considere a existência de um poder bom, como se fosse simples reduzir a complexidade do direito em uma bondade, é necessário o estabelecimento de um complexo sistema de direitos e garantias, que tenha por finalidade, limitar, vincular, funcionalizar e, se for o caso, deslegitimar, a ponto de neutralizá-lo quando exercido de forma ilegal e arbitrária[7].

Ocorre que, com o advento de uma constituição que deve servir de premissa para toda legislação existente e, também, a por vir, identificamos que há uma aparente tensão a ser equilibrada entre toda uma ordem de conhecimento legislativo científico utilizável e aplicável em âmbito social. Essencial um modelo de racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva[8] com a necessidade de uma coordenação de várias garantias concorrentes e articuladas, formando uma circularidade, que deflagram uma conectividade recíproca, conferindo efetividade umas às outras de forma sucessiva[9].

Contudo, observamos que existe uma real divergência entre os dispositivos legislativos legais com o modelo constitucional. Daí surge uma nítida [in] efetividade constitucional, garantidora de direitos, colocando o modelo garantista como uma ideologia mística inalcançável[10]. No entanto, garantismo designa um modelo normativo de direito que preza pela estrita legalidade, onde, no plano político, tem como finalidade maximizar a liberdade e minimizar a violência, consequentemente, acarretar no plano jurídico a vinculação do exercício do poder punitivo do estado a preceitos garantidores de direitos individuais[11].

O principal desafio é: adequar as técnicas legislativas e, principalmente, as judiciárias para que assegurem a efetivação dos direitos fundamentais descritos na Constituição, eis que, para além da elaboração teórica de direitos e garantias, faz-se necessário o desenvolvimento de uma prática processual que corresponda ao formulado[12]. Transcende a própria questão jurídica por se tratar de uma constatação fática, em que as instituições públicas demonstram sua real evolução democrática no exercício do poder, garantindo ou violando direitos[13].

Logo, qualquer manifestação [anti] garantista, nada mais é, que um ataque às leis, à constituição, aos direitos individuais e principalmente ao estado democrático de direito. Dizer ou propagar essa falácia, mesmo que de forma despretensiosa, acaba por proliferar uma fala ofensiva e criminosa frente aos ditames constitucionais.


Notas e Referências:

[1] PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro v.1. São Paulo: RT, 2008.

[2] Essa referência se refere a uma passagem que menciona o Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho que tem um histórico extremamente importante para o estudo do processo penal, porém, um jurista de seu tempo. No endereço eletrônico http://webartigos.com/artigos/direito-processual-penal/62003

[3] PAVARINI, Massimo. O encarceramento de massa. In: BATISTA, Vera Malaguti. ABRAMOVAY, Pedro Vieira (Orgs). Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 295. “Se toda a população mundial que teve uma experiência com o cárcere desse as mãos, formariam uma longa fila capaz de dar quase duas voltas ao mundo na altura da linha do Equador”.

[4] No fundo, a ideia que sustenta esses sistemas normativos é que um discurso torna-se falacioso e potencialmente manipulador, na medida exata, em que se torna retórico. E ele se torna retórico, na medida em que trata os problemas em função da situação (de considerações periféricas), ele usa uma língua mal feita (a língua natural), ele é mantido por indivíduos comprometidos por afetos. Daí vem a solução: para ter uma boa argumentação, saiam da linguagem, dos afetos, da situação, da interação.

[5] BIZZOTTO, Alexandre. Inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normais constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 205. “Também é o que ocorre na inversão ideológica do discurso garantista. Através da interpretação de institutos constitucionais, há a subversão das finalidades das normas constitucionais de conteúdo garantidos com a fática ampliação do sistema penal, permitindo-se a abertura de caminhos para facilitar a criminalização secundária. São utilizados fundamentos que deveriam servir para limitar o Estado Penal com o resultado de ampliação da atuação deste. Com a inversão ideológica, os postulados do Estado Democrático de Direito são manipulados para permitir, sob a proteção da formalidade do discurso garantista, a concretização de violações penais aos direitos fundamentais, sob a influência de conceitos gerados pela ideologia da defesa social”.

[6] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 22-23. SANTOS, Bartira Macedo Miranda; RIBEIRO, Luis Gustavo Gonçalves; CASTRO, Matheus Felipe. Direito Penal e Constituição. XXIV Congresso Nacional do CMPEDI. UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. Florianópolis: CONPEDI, 2015. “Partindo dessa visão, a Criminologia Crítica procurou investigar quais seriam as razões para que tal rotulação ocorre-se, passando a explicar tais fenômenos a partir da análise econômica das sociedades, apontando a seletividade do sistema penal como uma variável estrutural do empreendimento capitalista”.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução: ZOMER, Ana Paula; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES, Juarez; GOMES, Luiz Flávio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 752.

[8] FERRAJOLI, op. cit., p. 683.

[9] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 92.

[10] FERRAJOLI, 2002, loc. cit.

[11] FERRAJOLI, 2002, loc. cit.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2007.

[13] FERRAJOLI, op. cit., p.752.


Sem título-15

Thiago M. Minagé é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Professor substituto da UFRJ/FND. Professor de Penal da UNESA. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor da Pós Graduação ABDConst-Rio. Colunista do site www.emporiododireito.com.br. Autor do Livro Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Membro do IAB. Advogado Criminalista.

E-mail: thiagominage@hotmail.com


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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