Os Direitos Humanos sangram

17/03/2018

“É preciso ter força

 É preciso ter raça

 É preciso ter gana sempre

 Quem traz no corpo a marca

 Maria, MARIELLE

 Mistura a dor e a alegria” 

A execução da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes na noite da última quarta-feira (14) fizeram sangrar os direitos humanos. Marielle, mulher negra, nascida na favela da Maré, além de legitima representante de classes que sofrem historicamente com a discriminação – de gênero e racial – Marielle vem de uma comunidade como muitas do Rio de Janeiro que sofrem com a violência policial. Não é sem razão que a vereadora eleita com quase 50 mil votos exercia seu mandato em defesa dos mais vulneráveis e vitimas do Estado autoritário e opressor.  A vereadora Marielle, comprometida com políticas progressistas, apresentava um discurso comprometido com os direitos humanos, a igualdade e a justiça social que, sem se intimidar, denunciava a violência praticada cotidianamente contra os discriminados e miseráveis.

Como bem assinala Cançado Trindade

O Direito dos Direitos Humanos não rege a relação entre iguais; opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Não busca obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa de interesses superiores, da realização da justiça. É o direito de proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se têm devido em grande parte a mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão.[1]  

Não se pode esquecer que Marielle Franco era uma mulher negra e de origem humilde, que levantava sua voz contra o preconceito racial.  Neste diapasão, levando em consideração a violência contra o jovem negro, a Anistia Internacional, em sua seção brasileira, lançou em 2014 uma campanha intitulado “jovem negro vivo”, com o propósito de chamar atenção para violência contra os jovens negros, assim se manifestou a ONG:[2]

O Brasil é o país onde mais se mata no mundo, superando muitos países em situação de guerra. Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticada por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Mais absurdo que estes números, só a indiferença. A morte não pode ser o destino de tantos jovens, especialmente quando falamos de jovens negros. As consequências do preconceito e dos estereótipos negativos associados a estes jovens e aos territórios das favelas e das periferias devem ser amplamente debatidas e repudiadas. O destino de todos os jovens é viver. Você se importa? Eu me importo! Quero que as autoridades brasileiras assegurem aos jovens negros seu direito a uma vida livre de preconceito e de violência. E priorizem políticas públicas integradas de segurança pública, educação, cultura, trabalho, mobilidade urbana, entre outras. Eu quero ver os jovens vivos! Chega de homicídios. 

Um dia antes de sua morte a vereadora Marielle, referindo-se à violência da Polícia Militar, postou no Twitter: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?

No último domingo (10), Marielle denunciava uma ação do 41º BPM (Irajá) na Favela do Acari. Segundo a socióloga e vereadora, moradores reclamavam da truculência dos policiais durante abordagem a moradores naquela comunidade.

Precisamos gritar para que todos saibam o que está acontecendo em Acari neste momento. O 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão (...) escreveu a guerreira Marielle

Em dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Administração da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo da Universidade Federal Fluminense, para obtenção do título de Mestre em Administração, Marielle Franco escreveu sobre: “UPP – A redução da Favela a três letras: uma análise de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”.

Segundo a própria Marielle Franco o objetivo da dissertação é demonstrar que “as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), enquanto política de segurança pública adotada no Estado do Rio de Janeiro reforçam o modelo de Estado Penal”. No referido trabalho Marielle apresenta criticas ao avanço do Estado Penal que pelo discurso da “insegurança social”, aplica uma política voltada para repressão e controle dos pobres. Nesta linha, Marielle também se colocou contra a intervenção militar, que hoje querem se apropriar do seu corpo e de sua fala.

Pobres, negros, favelados e “esquerdistas”, vem sendo tratado pelo Estado neoliberal e autoritário como “inimigos”. Inimigos que devem ser excluídos e eliminados. Inimigos que não tem direitos, porque não são pessoas, não são cidadãos. Nesta lógica fascista, somente os “homens de bem” tem direitos e garantias.

O considerado “criminoso/perigoso” e, portanto, tratado como “inimigo” quem mais precise da acolhida dos direitos humanos, porque é o “inimigo” quem mais sofre com as constantes violações de Direitos Humanos.

Marielle Franco, formado em sociologia, era a própria voz dos direitos humanos, a voz dos discriminados e marginalizados, que sozinhos não se fazem ouvir. Por atingir, principalmente, as causas que ela representava é que seu assassinato atingiu o coração da democracia.

Contudo, em nome de Marielle vozes em todo mundo se fizeram ouvir na defesa intransigente dos direitos humanos e do Estado democrático de direito.

 

Marielle, Presente!

 

[1] Cf. Antônio Augusto Cançado Trindade na apresentação da obra Direitos humanos e direito constitucional internacional. Flávia Piovesan. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[2] OLIVEIRA, Antonio Leal e GOMES, Raoni Vieira. Seletividade racial no sistema penal brasileiro: apontamento para a reconstrução da memória racial nacional a partir das teses de Walter Benjamim. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 25, n. 135, setembro de 2017, p 73-96.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 27.08 - Laranjeiras. Projetil de arma letal // Foto de: Bruno Bou Haya // Sem alterações

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