Os detentos números e a linha abissal que está do outro lado da janela: A solidão dos números presos

23/03/2016

 Por Andrey Lucas Macedo Corrêa, Ana Miguel Gomes Regedor, Karina Pinhão e Valdemar Gomes - 23/03/2016

He set out for Toulon. He arrived there, after a journey of twenty-seven days, on a cart, with a chain on his neck. At Toulon he was clothed in the red cassock. All that had constituted his life, even to his name, was effaced; he was no longer even Jean Valjean; he was number 24,601. What became of his sister? What became of the seven children? Who troubled himself about that? What becomes of the handful of leaves from the young tree which is sawed off at the root?

Victor Hugo (Les Miserables)

Escrevemos essa coluna para difundir angústias. Não é algo propriamente prazeroso de se fazer apesar de fundamental principalmente no que se refere à organização estatal prisional nos detalhes que passam despercebidos em nosso cotidiano.

Todos os dias alunos do curso de Direito Penal aprendem nas salas de aula das Faculdades de Direito que é função da pena a ressocialização daquele que precisa ser “corrigido”. Por outro lado, em regra, na estrutura das cidades, os estabelecimentos prisionais estão localizados fora dos perímetros urbanos, ou, quando isso não é possível, estão localizados nas zonas periféricas das cidades. Sendo assim, que tipo de ressocialização é essa que coloca o o confinado a parte da sociedade, em um processo de exclusão social extremo. Exclusão está que já se observa, na maior parte dos casos desde da juventude, sobretudo negra, da periferia e que se perpetua até mesmo após o cumprimento da pena. É de se concluir que o estabelecimento penitenciário apenas representa o caráter mais agudo dessa condição.

Deixando de falar obviedades cuja seriedade, todavia, não se nega. Fato é que tais mudanças no sistema prisional e social, acima mencionados, são constituídos dentro de uma estrutura capitalista que merece mudanças das quais estamos longe de alcançar. Mas não é esse o tema angustiante que trazemos, por ora, mas outro, com ele relacionado: a desumanização dos presos através da usurpação de seus nomes.

No exato momento em que escrevemos essa coluna, devidamente alojados na biblioteca norte-sul do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), a realidade do outro lado da janela volta a se repetir e a nos angustiar. Por questões históricas que o Estado Português não conseguiu transpor, o estabelecimento prisional de Coimbra está localizado no centro da cidade, em um prédio imponente com uma abóboda prata cintilante – o que, todavia, não torna a exclusão acima mencionada menos evidente. Esse prédio está localizado exatamente à frente das janelas do CES e todos os dias a rotina se repete: os cidadãos daquele local não têm nomes, são tratados apenas como números. Números chamados por um alto-falante.

É interessante que em um mesmo poema Mário Cesariny[1] capta a simplicidade e a importância do nome e reflete sobre a condição de estar preso:

[...] o desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraça, e imaginou-se banqueiro para começar o dia e o presidiário, ouvindo a sineta das nove, começou o seu dia sem dar início a coisa alguma.

[...]

Pois os fascistas, os nossos bons fascistas querem que a gente vote por um nome por um nome calcula essa coisa qualquer que qualquer fulano tem! Vota por Salazar ora pois ó meu povo vota por sete letras muito bem arrumadas em três sí-la-bas.

De acordo com o artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, “Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica”.  Propomos aqui uma leitura em conjunto com a previsão do artigo 5º “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. A este propósito, a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada em 2002 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reitera os direitos fundamentais inerentes a cada ser humano num protocolo que tem por objectivo o estabelecimento de um sistema de visitas a efetuar por peritos de organismos internacionais a locais onde “se encontrem pessoas sob detenção ou a cumprir pena de prisão”.

Nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito à integridade pessoal, “moral e física das pessoas é inviolável” (artigo 25ª). O artigo 26º a) salvaguarda que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, da capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Na mesma linha, o Código Civil (CC) português estipula, no seu artigo 72º/1, o direito ao nome, “Toda a pessoa tem direito a usar o seu nome, completo ou abreviado, e a opor-se a que outrem o use ilicitamente para sua identificação ou outros fins”. Uma vez que esse se trata de “um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal”, é protegido em absoluto pelo Código Penal art.º 143 e seguintes. Não podendo ser afetado mesmo em caso de uma “suspensão de direitos fundamentais na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência“, Artigo 19º-C CRP. Joaquim Canotilho e Vital Moreira concordam que a proliferação de comportamentos degradantes suscita questões pertinentes; não obstante, o desenvolvimento jurídico deste termo remete para “tratamentos susceptíveis de causar nas vítimas sentimentos de medo, angústia e inferioridade de forma a humilhá-las e revoltá-las”[2].

O direito ao nome, cfr. Artigo 72ª/1 do CC, diz-nos que “Toda a pessoa tem direito a usar o seu nome, completo ou abreviado, e a opor-se a que outrem o use ilicitamente para sua identificação ou outros fins”. Estas regulamentações, de ordem restritiva, encontram-se assentes em razões de interesse público, inerentes à proteção de um indivíduo, titular de direitos fundamentais, e à salvaguarda das “dimensões constitucionais da identidade linguística[3]”. A este propósito, vem sendo reconhecido que este direito diz respeito não apenas à dimensão de conservação e preservação da identidade mas também a questões suscitadas pela mudança de identidade.

Entre tantas conclusões possíveis para essa realidade, preferimos abordar nessa coluna uma em especial:

A sala em que estamos nesse momento reflete uma das instituições com pensamento mais emancipatório da Europa, do outro lado da janela, está representada uma instituição com caráter emancipador quase nulo. Para refletir sobre isso buscamos o prof. Boaventura de Sousa Santos, quando ele escreve sobre as linhas abissais[4] existentes na sociedade e entre as sociedades, entre o norte-global e o sul-global. Mas para além das perspectivas macro, é indubitável que a linha que separa a universidade da penitenciária aqui em Coimbra, apesar de representar geograficamente apenas alguns metros, sociologicamente retrata-se como um abismo. Abismo esse que é possível de ser visto por conta de um defeito no sistema que tenta por vezes extirpar de nosso instinto primeiro, a visão, qualquer percepção da realidade em que estamos verdadeiramente inseridos. Do outro lado da janela há (não)cidadãos, que nada mais têm, nem seus nomes, são apenas números... 471, 19, 25 (citação em tempo real). É mais fácil assim... um número não tem sentimentos, não tem personalidade, não tem singularidade, o número é aquilo que se usa para quantificar, não para qualificar, nada mais apropriado para um sistema que cumpre muito bem seus objetivos, a exclusão e desumanização da pessoa presa e que aqui em Coimbra, por uma fatalidade arquitetônica, nos permite perceber a existência dos (humanos) números, que vivem do outro lado da janela.

Uma ótima semana a todos!


Notas e Referências:

[1] Poema Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, vale a pena ouvir a declamação de Viegas: https://www.youtube.com/watch?v=XYfuC88wOII

[2] CANOTILHO, J.J. Gomes e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1º a 107º.

[3] Ibidem.

[4] SANTOS, B. D. S. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.


Andrey Lucas Macedo Corrêa. . Andrey Lucas Macedo Corrêa - Nº 2015171846 FDUC . . .


Ana Miguel Gomes Regedor. . Ana Miguel Gomes Regedor - Nº 2008004184 FDUC . . .


Karina Almeida Pinhão. . Karina Pinhão - Nº 2015173535 FDUC . . .


Valdemar Gomes. . Valdemar Gomes - Nº 2015241886 FDUC . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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