A Ciência, estigmatizada e desvalorizada por setores importantes da chamada nova direita que chegou ao poder em diversos países, e que atualmente exerce influência sobre vários grupos e correntes de pensamento, com os movimentos terraplanistas, antivacina e antiglobalismo - seja lá o que isso possa significar, tornou-se agora a pedra angular, a salvaguarda do futuro da humanidade, única arma capaz de enfrentar e debelar a pandemia do novo coronavírus.
Confrontada por um sentimento de impotência e medo diante dos desafios inéditos para a maior parte das pessoas e atônita diante de posturas e iniciativas pouco eficazes e mesmo contraditórias das autoridades públicas, inclusive posturas negacionistas da gravidade do problema adotadas por governantes de alguns países, a sociedade descobriu a necessidade urgente de valorizar a ciência e a pesquisa como instrumentos para superar a pandemia e devolver algum grau de segurança e estabilidade em um cenário de desagregação e incerteza provocado pelos efeitos devastadores da pandemia na área da saúde e pelo impacto econômico e social das medidas adotadas para enfrentar o vírus.
Num cenário de crise e insegurança, espera-se ineditamente por uma solução formulada não pelos governantes mas pelos cientistas. É na ciência que estão depositadas as esperanças de cura imediata para a doença e do desenvolvimento de uma vacina capaz de imunizar a humanidade e a sociedade dos efeitos deletérios e devastadores, em diversos sentidos, do novo vírus.
Mas a pergunta que se deve fazer é: qual Ciência poderá nos salvar ? Qual Ciência se revelará redentora da humanidade ? Ou, o que se pretende aqui examinar, qual o modelo de Ciência que se imagina capaz de oferecer uma resposta eficaz para o problema que atormenta de modo tão dramático a humanidade e a sociedade?
O conhecimento científico, ou a pesquisa científica, traduzida no método de pensamento concebido por Descartes, e posteriormente celebrizado por Newton, que dominou todos os setores do conhecimento humano nos últimos 300 anos, influenciando decisivamente até mesmo as ciências das relações humanas ou sociais, como o direito, tem bases que remotam à Idade Média, quando foram alcançados importantes avanços em áreas como a física e a metodologia científica. Como observa Marco Aurélio Greco[1], os avanços tecnólogicos e científicos desse período permitiram desenvolver uma visão quantitativa da realidade, apoiada em duas ideias básicas: medir a realidade e visualizar - descrever, apreender - esta mensuração.
No lugar de uma visão qualitativa do mundo, que até então dominava o conhecimento humano, fortemente influenciada pela religião e que tornava a realidade pouco mensurável (“imaginem fazer contabilidade com algarismos romanos!”, exemplifica Marco Aurelio Greco), surge uma nova postura, ou uma nova concepção do pensamento, que pode ser designada de “objetiva”, fundada na convicção de que a realidade, qualquer que seja o setor do conhecimento, pode ser medida, mensurada[2].
Essa ideia de quantificação da realidade levou à obsessão da busca pelo “ser” das coisas, pelo ideal de se revelar e descrever “as relações internas do objeto”, a essência ou o significado “puro”, “neutro”, “ontológico” do objeto[3].
E foi exatamente a busca pela mensuração e revelação das relações internas do objeto que forneceu as bases para o desenvolvimento do que se tornaria sinônimo de conhecimento “científico”, traduzido em um “método científico” que se limita a descrever o objeto e as relações internas que o constituem, segundo uma lógica causal e objetiva, exigindo, assim, uma postura de neutralidade, extremamente formalista e causalista, do cientista perante o objeto.Estudando a evolução do pensamento científico e a grande mudança de postura que passou a dominar o conhecimento humano, Marco Aurélio Greco destaca a importância da ideia de “causa” no desenvolvimento da ciência ou da pesquisa fundada em um método que se tornou sinônimo de conhecimento científico. Como anota o autor:
ao desenvolver um pensamento objetivo e quantificador, é possível visualizar com maior clareza o nexo concreto que existe entre certos eventos a ponto de poderem ser identificadas relações imanentes que permitem afirmar que uns decorrem dos outros, de modo que estes são a causa geradora daqueles. Esta ideia de “causa” impregna o pensamento tomista, bastando lembrar que, na sua visão, Deus é considerado como “ato puro”, portanto, causa final e eficiente de tudo que foi criado. Além disso, para Santo Tomás, uma das vias para explicar racionalmente a existência de Deus é através do conceito de “causa incausada”[4].
Trata-se, claramente, de uma “visão estática de mundo” e que “se volta para o passado”, ou seja, para conhecer o mundo é preciso conhecer a relação necessária com determinado evento anterior do qual o evento investigado é, inexoravelmente, resultado.
Essa concepção de mundo e a obsessão pela busca da “natureza das coisas”, que explica a postura de neutralidade do cientista como mero observador perante o objeto da ciência impregnou também o estudo das relações humanas, como o Direito, levando alguns (positivistas), como alerta Marco Aurélio Greco, a focarem a norma (dimensão formal do Direito) como único objeto a merecer o qualificativo de “jurídico”. Na medida em que somente seria “ciência” aquela atividade voltada ao conhecimento da realidade existente e que tivesse objeto e método próprios, procura-se exluir do campo desta “ciência” os fatos, pois eles seriam objeto da Sociologia. Por isso afirma-se que o objeto da Ciência do Direito são as normas e não os fins, ou valores, porque estes seriam objeto da Política[5]. E mais adiante, complementa:
Esta ideia de dar cientificidade ao estudo do Direito, sob a luz de um racionalismo de cunho idealista e feição eminentemente positivista, levou a supor que o método desta ciência seria, fundamentalmente, um método dedutivo (semelhante ao adotado em várias Ciências Exatas e superiormente exposto nos estudos de Aristóteles). Esta é uma visão que encontrou particular espaço no sistema romano-germânico do Direito, especialmente em Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito.[6]
Enfim, o grande prestígio dessa visão causalista e determinista de mundo permitiu o predomínio, por mais de 300 anos, do pensamento científico que, em termos práticos, confunde-se com um método de investigação da realidade que se orienta pela busca do “ser” do objeto e pela identificação das “relações internas”, imanentes, que o compõem e que permitem descrever as “causas” de todos os fenômenos da realidade, seja no campo das ciências da natureza - exatas - seja no campo das ciências sociais - das relações humanas e sociais.
Esta visão atende a um ideal de segurança e previsibilidade e coloca a Ciência como sinômino de confiança, reserva de garantia para a solução dos problemas enfrentados pelo homem.
Trabalhando sobre uma premissa de que todo fenômeno tem uma “causa”, o pensamento “científico” opera sobre um mundo “pronto, feito por Deus” (como reconhece Einstein)[7], e o cientista, quanto mais sucesso lograsse alcançar na busca pelo conhecimento do objeto, mais perto estaria de compreender a obra de Deus. Vale dizer, a observação mais uma vez é de Greco, “não haveria nem um papel criativo na atividade do cientista, nem um elemento imponderável ou imprevisível no mundo, pois tudo resultaria das leis impostas por Deus para organizar a natureza”[8].
Todavia, novas “descobertas” da ciência, particularmente na área da física, colocaram em xeque a visão causalista da realidade e o “conhecimento científico” calcado na busca das relações internas ou no “ser” do objeto. No século XX passou-se da física da certeza, ligada a física de Newton, que até certo ponto era determinista, para a Física da certeza relativa, inspirada na física de Einstein e sua Teoria da Relatividade, sendo que este ponto de partida levou a Física da Incerteza, que é resultado da teoria quântica[9].
Se da ótica da física clássica dizia-se que “dada certa causa dar-se-á certa consequência”, hoje, à luz da teoria quântica e da visão sob a ótica do tempo, “dada certa causa, provavelmente dar-se-á certa consequência”. O conceito-chave não é mais o de “causa” mas o de “probabilidade", de modo que não é possível afirmar que os eventos atuais conduzirão a um determinado “ponto” no futuro; só é possível afirmar que eles conduzirão a algo situado dentro de uma certa “área”. Vale dizer, não há certeza de que uma determinada consequência irá efetivamente ocorrer. Pode ser que sim, mas pode ser que não[10].
Esse “estado de incerteza” do conhecimento científico, detectado particularmente nos domínios da Física e, por isso, certamente sem qualquer reflexo prático para a sociedade e para o dia a dia do homem comum, nos assalta agora diante da descoberta de um “novo vírus” que produz impactos gravíssimos nas relações sociais e econômicas como resultado de uma inesperada pandemia de consequências globais.
Confinados em nossos próprios lares em época em que se multiplicam as chamadas "fake news", somos bombardeados por toda a sorte de informações, inclusive por notícias falsas e injustificadamente alarmistas, e acabamos por espera uma solução salvadora, quase mágica, da ciência, que ofereça uma resposta rápida e eficaz para a ameaça do vírus, ou seja, que nos traga a cura, em todos os sentidos, devolvendo-nos um cenário de normalidade e segurança.
E nos angustiamos à medida em que constatamos que os pesquisadores - cientistas - ainda sabem muito pouco sobre como o vírus se comporta e sobre como cada indivíduo e cada organismo reage à infecção. Ficamos atônitos e cada vez mais aflitos na mesma proporção em que restam frustradas as esperanças de uma saída rápida do problema e a aparente ineficácia das medidas adotadas para controlar a disseminação do vírus. Como explica Slavoj Zizek:
o que é surpreendente é quão pouco parece que entendemos (incluindo cientistas) como a epidemia se comporta. Muitas vezes recebemos avisos conflitantes das autoridades. Recebemos ordens estritas para nos limitarmos a evitar a infecção viral, mas quando o número de infecções diminui, surge o medo de que tudo o que podemos fazer seja tornar-se mais vulnerável durante a segunda onda esperada do ataque do vírus. Todas as esperanças de uma saída rápida (calor do verão, imunidade de grupo, vacina) são frustradas. (...) Somos informados de que alcançamos o achatamento da curva, então tudo está indo um pouco melhor, mas ... a crise está ficando cada vez mais longa. O desejo secreto de todos nós, e o que pensamos sem parar, é um: quando isso vai acabar? Quando isso aconteceu?... [11]
Parece claro, portanto, e essa percepção começa a se generalizar na sociedade, que não há uma solução mágica, uma resposta pronta e imediata da ciência, tal como a concebemos, para o vírus e para todos os problemas, de ordem social e econômica, provocados pela pandemia.
Aliás, o alerta é mais uma vez de Zizek,
é razoável ver na epidemia atual o anúncio de um novo período de problemas ecológicos. Em 2017, a BBC descreveu o que poderia nos esperar como resultado de nossa maneira de intervir na natureza: "As mudanças climáticas estão derretendo o permafrost, congelado há milhares de anos, e, à medida que os solos se derretem, eles liberam vírus antigos que, permanecendo adormecidos, estão ressurgindo para a vida.
O paradoxo dessa situação é que a constatação da inevitável superação do modelo tradicional que marcou o conhecimento científico, típico de uma "visão estática do mundo", abre as portas para o reconhecimento de que a realidade e a natureza são muito mais complexas do que julgávamos e que não é possível, sempre, prever as consequências de determinada causa. Diante disso, no lugar da desvalorização da ciência, apregoada, como dito, por determinados grupos e movimentos, cresce o reconhecimento da necessidade da pesquisa e do conhecimento científico como fundamental para a humanidade.
De resto, do ponto de vista social e humano, a pandemia talvez possa nos legar, como propõe Zizek, “um modo de vida mais modesto, no qual a escassez de comida é compensada pela cooperação em escala global e na qual temos um sistema de saúde global mais bem preparado para os seguintes ataques”[12].
O desafio naturalmente é enorme mas essa talvez seja a mais relevante oportunidade já vivida em tempos de paz, ou seja, sem enfrentarmos os horrores e a destruição de uma guerra, de buscarmos a superação de determinadas práticas e de determinado estilo de vida para construirmos uma sociedade global mais justa e mais humana.
Notas e Referências
[1] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p.16
[2] Neste sentido, Marco Aurélio Greco descreve que compreende-se que o tempo pode ser medido “pelo relógio (em que olhar para os seus ponteiros já permitia saber a hora, e o primeiro relógio foi dessa época), a música (pelo pentagrama e as notas cuja duração era representada pelo seu desenho, de modo que bastaria olhar para saber qual a nota e sua duração), a contabilidade (com a introdução dos algarismos arábicos que permitiam não só cálculos mais elaborados como identificar facilmente a dimensão da quantidade) etc." (GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 16.
[3] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 17.
[4] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 20.
[5] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 25-26.
[6] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 27.
[7] Como observa Marco Aurélio Greco, ao afirmar que a descoberta científica é “quase um êxtase”, “Einstein está afirmando que o mundo é um mundo feito, é um mundo pronto, e que o cientista, por mais que se aprofunde, quando muito consegue melhor entender o que Deus fez. Nas suas palavras, ‘Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido pó pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas’ (Como vejo o mundo, na coletânea Einstein por ele mesmo). In Contribuições, cit. p. 25 e nota de rodapé no. 30.
[8] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 25.
[9] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 34.
[10] GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”) São Paulo: Dialética, 2000, p. 34.
[11] ZIZEK, Slavoj. "Nossa sociedade global possui recursos suficientes para coordenar nossa sobrevivência", disponível em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones/organicemos-una-forma-de-vida-mas-modesta/?ssm=TW_CM. Acesso em 25/05/2020
[12] ZIZEK, Slavoj. "Nossa sociedade global possui recursos suficientes para coordenar nossa sobrevivência", disponível em: https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus-covid-19/predicciones/organicemos-una-forma-de-vida-mas-modesta/?ssm=TW_CM. Acesso em: 25/05/2020
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