Por Alexandre Morais da Rosa e Carla Joana Magnago - 08/09/2016
Quando a testemunha/informante é indagada sobre algo acreditamos no que ela diz ou duvidamos de tudo? A pergunta formulada deste modo é sem sentido. Isso porque não sabemos se poderemos acreditar/duvidar da testemunha até que o “evento depoimento” aconteça e, então, possamos extrair o atributo de qualidade e credibilidade.
Daí a importância de certo ceticismo no ambiente do Processo Penal para que possamos fazer perguntas adequadas sobre o conteúdo do depoimento. Acreditar em vítimas, policiais, servidores públicos em face de suas insígnias ou lugares é um redutor de complexidade do Processo Penal.
A questão é que nem sempre as vítimas, policiais ou servidores públicos dizem o que viram, sentiram ou ouviram. Entre a percepção do evento e o depoimento existe o período de tempo em que as informações coletadas precisam ganhar sentido. Os indicativos externos não somente corroboram com o sentido buscado através dos depoimentos, como engravidam os processos, fazendo com que o encadeamento de sentido vertido em um depoimento seja decorrente das próprias capacidades do agente, do que for (des)confirmado por terceiros (outras pessoas, mídia/imprensa, provas, preconceitos, estigmas, etc.).
O modo como se depõe em um processo judicial dialoga com múltiplos fatores. Por isso o sistema jurídico indica mantras que são entoados para evitar a dúvida[1]. Parte-se, assim, de lugares dados que facilitam a atribuição de veracidade, mas que são invencionices ingênuas – e por isso seduzem – do modo como pensamos. Ao invés de nos debruçarmos sobre o conteúdo do depoimento, muitas vezes a questão é deslocada para outra pergunta: qual o motivo que a testemunha/informante teria para mentir? Esta questão paralela, também importante, ao ser respondida, substitui o questionamento de coerência e integridade do próprio depoimento. É um viés do pensamento humano que facilita a tomada de decisão ao preço da racionalidade.
É uma forma de ingenuidade astuta que exclui a racionalidade e traz a marca da credibilidade em face da embalagem. Ao invés de a credibilidade vir a priori, devemos suspender o julgamento para decidir Tendo Tudo em Conta (TTC), como aponta Peczenik. É claro que nunca saberemos, com 100% de certeza, se o conteúdo do depoimento é verdadeiro, até porque a memória não é uma fotografia – e por vezes até cenas dadas são suscetíveis de interpretação – , embora possamos atribuir credibilidade à narrativa. A concordância com o que a testemunha diz deve ser a conclusão depois do percurso do “evento” e não algo que se parte como sendo verdadeiro.
Este modo de pensar forma parte do dogmatismo que permeia o direito, segundo o qual o axioma é tido como verdadeiro desde o início. Suspender o julgamento para depois de toda a prova produzida, colocar-se na posição de advogado do Diabo, ou seja, da lógica da presunção de inocência – que deveria ser pressuposta –, exige que somente se acredite no conteúdo do depoimento se tivermos um bom motivo para dar credibilidade. Pensar o contrário é apostar que ninguém mente, confunde-se ou se equivoca. É presumir culpado ao invés de inocente.
No conto da celebração da desconfiança[2], podemos entender que duvidar dos depoimentos das testemunhas ou informantes não se trata de jogar as fichas na mesa apostando pela mentira:
No primeiro dia de aula, o professor trouxe um vidro enorme:
- Isto está cheio de perfume – disse a Miguel Brun e aos outros alunos. – Quero medir a percepção de cada um de vocês. Na medida em que sintam o cheiro, levantem a mão.
E abriu o frasco. Num instante, já havia duas mãos levantadas. E logo cinco, dez, trinta, todas as mãos levantadas.
- Posso abrir a janela, professor? – suplicou uma aluna, enjoada de tanto perfume, e várias vozes fizeram eco. O forte aroma, que pesava no ar, tinha se tornado insuportável para todos.
Então o professor mostrou o frasco aos alunos, um por um. Estava cheio de água.
A testemunha não precisa de motivos para mentir, tampouco para dizer a verdade, a questão central não se reduz a tal maniqueísmo processual, e sim diz respeito ao quanto estamos, todos, vulneráveis a sentir o perfume do frasco aberto com água.
Notas e Referências:
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis; Empório do Direito, 2016, p. 464-466.
[2] GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Trad: Eric Nepomucemo. Rio Grande do Sul. L&PM, 2016, p. 156.
. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .
. . Carla Joana Magnago é Advogada Criminalista. . . .
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